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O cuidado das almas: a magia como um perigo para o rebanho

PARTE II. A MAGIA ENTRE PERSEGUIDORES E PERSEGUIDOS NO SÉCULO XIV:

CAPÍTULO 3. O CRIME DE MAGIA SOB A INQUISIÇÃO DE JOÃO XXII (1316-1334)

3.3. O cuidado das almas: a magia como um perigo para o rebanho

O envolvimento dos religiosos com eventuais desvios morais foi objeto de preocupação do papado e dos seus inquisidores delegados desde o início da trajetória dos papas franceses. Clemente V, antes mesmo de se estabelecer em Avinhão, ainda na cidade de Pessac, em março 1307, escreve para o abade de um mosteiro vizinho ao da diocese de Périgueux, comissionando-o para que investigasse a respeito de um certo Ademar, outro abade, de um mosteiro beneditino pertencente à Périgueux (Caso 1). Nesta carta, o papa afirma que é sempre penoso ou incômodo (molestum) quando são ditas coisas terríveis e perversas (sinistra) a respeito das pessoas religiosas ou devotas, mas quando são acusados os prelados, “ficamos ainda mais preocupados, uma vez que estes, pela observância da devoção e pela pureza da vida, devem mostrar em si mesmos como é preciso que os outros se comportem na casa de Deus”81. “Se essas enormidades são toleradas, o que é condenável”,

segue o documento, “disso procedem exemplos mais perniciosos e são provocados escândalos ainda mais graves”82. Embora não coloque a questão literalmente nesses termos, aqui o papa

Clemente está evocando as recorrentes preocupações pastorais a respeito do cuidado das almas do rebanho. Na sequência, as acusações do sortilegio e do homicídio do abade Ademar 

81 AAV, Reg. Vat. t. 54, n. 343, fol. 67v-68r apud THÉRY-ASTRUC, J. “Excès”, “affaires d’enquête” e gouvernement de l’Église (v. 1150-1350). Les procédures de la papauté contre les prélats “criminels”: première approche (Annexe 1). In: GILLI, P. (Ed.). La Pathologie du Pouvoir: vices, crimes et délits des gouvernants: Antiquité, Moyen Âge, époque moderne. Leiden; Boston: Brill, 2016. p. 206 (O texto está na íntegra, na versão latim-francês). No original: “eo gravius provocamur quo ipsi per religionis observantiam et nitorem vite in seipsis ostendere debent qualiter oporteat alios in domo Domini ambulare”.

82 Ibid. p. 207. No original: “quove enormitates eorum dampnabilius tollerantur, cum ex eis exempla magis perniciosa proveniant et graviora scandala generentur”.

são associadas, sem mais detalhes, a “diversos outros crimes dos quais era e ainda é público e

notoriamente difamado”83 (grifo nosso), o que, por um lado, explica a preocupação do papa a

respeito dos scandala mencionados. Por outro, ainda situa o processo sob a referência das definições da bula Qualiter et quando, de 1216, que tornava indissociáveis os processos inquisitoriais da investigação da infamia dos suspeitos e prescrevia a punição, sobretudo, como uma forma de caridade em direção aos que provocavam “barulho” ou clamor.84

Outro caso em que os desvios dos monges acabam extrapolando os muros do claustro é o episódio já mencionado do monge cluniacense de Cahors, que praticou alquimia e nigromancia (Caso 7). Na carta deste processo, o papa João XXII afirma que o religioso trouxe pelos seus próprios passos, ou por sua própria responsabilidade, uma comoção, uma agitação condenável (commotionem dampnabilem pedes suos) ao mosteiro. Sua fama ainda era conhecida por todos (omnibus publice habebatur). O papa pede que o inquérito se desenrole tendo em vista a salutis do monge, ou seja, sua salvação, sua saúde — entendida aqui precisamente no sentido espiritual —, que deveria ser tratada com um remédio apropriado (oportuno remedio). Esse tratamento da cura faz a prática da magia ser entendida como uma doença (pestem) que poderia se alastrar, como aparece em termos literais no caso a seguir.

No Caso 2 não vemos apenas um suspeito, como nos Casos 1 e 7, mas várias pessoas suspeitas de praticar nigromancia, geomancia e outras artes. Na carta de 1318 em que são apontados clérigos (dentre eles um médico) e um barbeiro, vemos a referência a uma tal “fama vulgar” (vulgaris fame) que teria chegado até os ouvidos do papa em Avinhão. A carta inicia da seguinte forma:

O pontífice romano, cujo ofício devido concerne principalmente à salvação das almas, deve estar apto para corrigir imediatamente os filhos que se desviam da fé.85

Fazendo referência direta à ideia da saluti animarum, na sequência do documento, João XXII entende que são práticas perigosas não apenas por chegarem aos ouvidos de muitos, mas principalmente porque podem ser, antes disso, uma empreitada coletiva, realizada atestadamente a partir da associação de várias pessoas. Segundo os relatos, os clérigos e os outros membros residentes da cúria daquela diocese “seguiram isso não 

83 Ibid. No original: “nonnullis aliis criminibus de quibus erat et est publice ac notorie diffamatus”. 84 Ver a a discussão que envolve as notas 115-117 das páginas 91-92, Capítulo 2 desta tese.

85 AAV, Reg. Vat. t. 109, n. 550, fol. 133v. In: HANSEN, J. Quellen... op. cit. p. 2. No original: “Romanus pontifex, ad quem ex oficii debito principaliter pertinet saluti animarum intendere, eo vacare debet instantius circa corrigendos fllios exorbitantes a fide”. Grifo nosso.

ocasionalmente, mas várias vezes, colocando em perigo não apenas as suas próprias almas, mas também as dos outros”86, diz o papa. Esses excessos fizeram valer a fama, portanto, que

chegou ao conhecimento do pontífice.

João XXII ainda se refere a essas práticas como uma praga ou uma peste supersticiosa (pestem superstitionum), uma associação que, como visto, não é nova em termos retóricos, e que deveria ser punida não apenas na vida, mas também na morte. O pontífice ressalta, a respeito de um dos clérigos acusados na carta de 1318:

Não faz diferença que o já mencionado Tomás tenha partido, [pois] no que toca a crimes desse tipo, é permitido acusar a memória do defunto que deve ser devidamente punido depois da morte, se for comprovada a perfídia.87

Aqui a magia é enquadrada como um crime de grandes proporções por duas razões que se retroalimentam: primeiro porque é qualificada como algo que tem o “sabor da depravação herética” (sapiant heretice pravitatis); segundo porque seu exercício ocorre no espaço da associação coletiva, à vista dos outros, quiçá em público. Isso demanda, por sua vez, uma correção que também se dê no espaço pedagógico, do exemplo, o que explicaria a punição post mortem, uma vez que esses desvios seriam, como dito expressamente, uma ameaça à salvação dos outros. Há aqui um interesse que é, sobretudo, de caráter pastoral.88

São diversos os processos que enquadram a magia como uma prática coletiva. O episódio a respeito do presbítero anônimo que escondeu imagens no cemitério de Carcassonne (Caso 5) menciona, infelizmente sem mais detalhes, que o suspeito estaria preso naquele lugar junto aos seus cúmplices (cum suis cumplicibus), e, portanto, não teria agido sozinho. Quando João XXII escreve ao cardeal Bertrando, em 1326, a respeito do cônego de mesmo nome que conjurou tempestades e mandou seus comparsas até as forcas da cidade para tomarem as partes de dois homens mortos (Caso 9), o pontífice usa os termos familiares, possivelmente no sentido de amigos, conhecidos, mas mais provavelmente de servos ou subordinados, e

complices, no sentido de parceiros. Neste documento, está enfatizado em mais de um

momento o caráter coletivo e de conhecimento público dessas práticas: segundo as denúncias, 

86 Ibid. p. 3. No original: “[necnon aliqui alii residentes in curia] non semel sed pluries institisse feruntur, nedum in suarum sed in quamplurium aliarum periculum animarum”.

87 Ibid. No original: “non obstante quod predictus quondam Thomas in fata decesserit, cum de talibus agatur criminibus, de quibus etiam licet memoriam accusare defuncti, cuius post mortem comprobata perfidia debite plecti debet”. Grifo nosso.

88 A execução post mortem não era exatamente algo incomum no que diz respeito às práticas processuais inquisitórias. Sabemos, por exemplo, que Bernardo Gui queimou mais hereges mortos do que vivos. Ver: AMES, C. C. Righteous Persecution: Inquisition, Dominicans and Christianity in the Middle Ages. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2009. p. 220.

as artes maléficas “eram realizadas não apenas na casa em que o mesmo Bertrando morava, na cidade de Agen, mas também em vários outros lugares”89. Diz ainda que essas artes

atentavam “contra os bons costumes e para o prejuízo de muitos”90 (grifo nosso). Mais adiante

o papa ainda revela saber que “Bertrando recebeu muitos em sua casa”,91 os quais também se

utilizavam das mesmas ciências e artes (scientiis et artibus), se associando publicamente com essas pessoas (convesando publice cum eisdem). Infelizmente, o texto não dá mais detalhes a fim de esclarecer quem seriam exatamente os outros envolvidos.

Até aqui vimos diversas referências em que clérigos e leigos se envolveram para praticar magia. Alguns casos nos apontam para evidências literais de que seriam relações publicamente conhecidas. Por exemplo, em 21 de dezembro de 1336, ao escrever ao conde Gastão de Foix, autoridade leiga da região de Pamiers, o papa Bento XII o felicita por ter contribuído com a prisão de dois homens (Caso 15). Ambos eram suspeitos de se envolverem com sortilégios, factionibus ou “coisas feitas” — termo comumente associado às obras ou operações de magia de imagem —, malefícios e artes mágicas. Um deles, presbítero, era chamado Pedro de Coaraza. O outro, Devi de Solies, provavelmente leigo, pois seu título não é mencionado. “É dito que são publicamente tidos como suspeitos”92 (grifo nosso), escreve o

papa. Algo semelhante aparece no Caso 18: em janeiro de 1337, Bento XII escreve ao inquisidor Guilherme Lombardo para que proceda contra dois acusados: Pedro da diocese de Tarbes, presbítero, e um tal João de Salvis, leigo de Arles, suspeitos de “invocações de demônios, malefícios, factionibus, artes mágicas e crimes similares e detestáveis”93. Segundo

consta na carta, eles eram bastante difamados (vehementer diffamati) em razão desses erros. De forma indireta, sem necessariamente mencionar a fama ou a coisa pública, a ideia de que as práticas mágicas poderiam tocar outras pessoas para além de quem era efetivamente suspeito pode ainda aparecer em outros processos mencionando o manuseio das ymagines. No Caso 6, por exemplo, na carta em que o cardeal Guilherme envia em nome do papa, vemos que aos inquisidores de Toulouse e Carcassonne é atribuída a função de procurar por aqueles que fazem imagens de cera a fim de provocar malefícios. Isso é colocado nos seguintes termos: babtizant, sive faciunt babtizari, que quer dizer literalmente, “batizando ou fazendo 

89 AAV. Reg. Vat. t. 113, n. 1096, fols. 193v-194r. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 113. No original: “nedum in domo quam idem Bertrandus in civitate Agennensi inhabitabat, sed aliis locis pluribus”. 90 Ibid. No original: “contra bonos mores, et in detrimentum plurium [utebatur]”.

91 Ibid. No original: “Bertrandus in domo sua receptaverat multociens”.

92 AAV. Reg. Vat. t. 131, n. 372, fol. 101v. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 238. No original: “publice vehementerque suspecti fore dicuntur”.

93 AAV. Reg. Vat. t. 132, n. 10, fol. 4v; Reg. Aven. t. 51, fol. 40. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 240. No original: “[super] invocationibus demonum, maleficiis, factionibus, artibus magicis et similibus criminibus detestandis”.

batizar”,94 no sentido de que são visados, por um lado, aqueles que executam o batismo das

imagens e, por outro, aqueles que pedem, mandam ou comissionam outros para fazê-lo. Esse enquadramento também aparece no episódio dos monges de Mirapoix (Caso 22): o inquisidor precisava descobrir se era verdade que os monges foram pegos “fabricando ou mandando fabricar”95 (fabricando vel fabricari faciendo) a tal imagem que revelaria tesouros. Já no

processo em que as acusações de magia foram atribuídas a Guilherme de Béziers (Caso 19), essa expressão é evocada em dois momentos. Primeiro, como de costume, em relação às imagens: os relatos dizem que o bispo “teria fabricado ou mandado fabricar”96 (fabricasse seu fabricari fecisse) esculturas de cera para atacar João XXII. Além disso, a fórmula também

aparece fazendo menção aos textos ou escrituras (litteras seu scripturas) de conteúdo mágico que o papa teria manuseado. Ele teria composto esse material ou mandado fazê-lo97

(composuerant seu componi fecerant), função que poderia ser delegada a um monge copista, por exemplo.

Postas essas referências diretas e indiretas da participação coletiva nos ritos mágicos, parece ser possível afirmar que não é totalmente infundado, portanto, o entendimento, por parte dos perseguidores, de que a magia seria como um cancer que se espalha e adoece o rebanho ou mesmo como uma raposa de muitas caudas.98 Esses temores que se colocam em

termos metafóricos também respondem, por sua vez, por meio de alegorias e simbologias: O já mencionado Caso 4, de 1319, a respeito do presbítero Pedro Ademar, do clérigo Pedro Ricardo, da ordem dos carmelitas, e da mulher Enquede, evoca alguns desses enquadramentos. João XXII inicia o texto de forma comovida, dizendo que “chegou aos nossos ouvidos, não sem dor no coração”99 o relato de que esses filhos de Belial100 (filii Belial)

“erram pelas sendas dos vícios”101, uma vez que ao fazerem imagens e consultarem os

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94 AAV. Reg. Vat. t. 98, n. 2. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 61.

95 AAV. Reg. Vat. t. 127, n. 758; Reg. Aven. t. 53, fol. 253v. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 265. 96 AAV. Reg. Vat. t. 124, n. 343, fol. 100v. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 251.

97 Ibid.

98 Para mais exemplos desse enquadramento da magia como algo que se dá a partir da associação ou do envolvimento de várias pessoas, ver as indicações da nota 182, página 104, Capítulo 2 desta tese.

99 AAV, Reg. Vat. t. 69, n. 963. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 53. No original: “Ad audientiam nostram non sine dolore cordis”.

100 Belial aparece na literatura judaico-cristã como o nome de um dos principais demônios submetidos ao Diabo na hierarquia infernal e, eventualmente, como outro dos nomes do próprio Diabo. O termo aparece associado, por exemplo, aos termos Satan em hebraico e diabolos em grego. Ver, respectivamente: BROECK, R. “Intermediary beings I: Antiquity”. In: HANEGRAAFF, W. (Ed.). Dictionary of Gnosis & Western Esotericism. Leiden; Boston: Brill, 2006. p. 618a; BAILEY, M. Historical Dictionary of Witchcraft. Lanham et al: Scarecrow Press, 2003. p. 36; RUSSEL, J. “Devil”. In: GOLDEN, R. M. (Ed.). Encyclopedia of Witchcraft. The Western Tradition. v. 1, A-D. Santa Barbara: ABC-CLIO, 206. p. 271a.

101 AAV, Reg. Vat. t. 69, n. 963. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 53. No original: “per devia vitiorum vagantes”.

demônios “não apenas eles se precipitam no Gehena102, mas também arrastam muitos com

suas palavras”103 (grifo nosso). Eles fariam isso não apenas pelas suas ações, mas também

com seus exemplos (exemplis). João XXII prescreve ao então inquisidor Jacques Fournier a necessidade da inquisitio para que, caso se confirmasse a infâmia dos suspeitos, fossem então “punidos como criminosos maléficos a fim de que os outros fiquem com medo de cometer perversidades”104 (grifo nosso). Em outras palavras, se o caminho da depravação poderia

convencer, talvez o exercício e a aplicação da justiça também pudessem resgatar as ovelhas perdidas por meio do exemplo.

Em 17 de junho de 1336, Jacques Fournier, não mais como inquisidor, mas agora como papa Bento XII, evoca analogias semelhantes (Caso 17). Ao escrever a Guilherme Lombardo, oficial de Avinhão, sem mencionar nenhum suspeito em particular, o pontífice aponta a necessidade da investigação em direção a “quaisquer pessoas eclesiásticas ou mundanas, religiosas ou seculares”105 envolvidas com as heresias, com os malefícios ou com

os sortilégios, dentre outras coisas. Deveriam ser investigados “independentemente do seu

status, da sua ordem, da sua observância [ou da sua regra], da sua dignidade ou da sua

condição”106, complementa o papa, listando títulos que apontam para a possibilidade de que

não apenas nobres, mas também altos membros da hierarquia eclesiástica pudessem se envolver com essas práticas. E como visto até aqui, isso de fato ocorreu.107

Nessa carta, o pontífice entende que a cúria romana108 é um lugar “onde a fé deve

brilhar como um raio de luz”,109 de modo a fazer com que fujam os erros tenebrosos e

sombrios (errorum tenebris profugatis). Essas analogias não são estranhas às iniciativas contra a magia: na bula Super illius specula, de João XXII, já havia sido evocada a ideia de

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102 O termo, com raízes na tradição judaica, serve como um equivalente figurativo para o lugar dos condenados ou mesmo para o inferno. No Novo Testamento, o conceito aparece por exemplo em Mateus 23, 23: “Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da condenação do inferno?” (ARC) ou“serpentes genimina viperarum quomodo fugietis a judicio gehennæ” (Vulgata); e ainda em Lucas 12,5: “Mas eu vos mostrarei a quem deveis temer: temei aquele que, depois de matar, tem poder para lançar no inferno; sim, vos digo, a esse temei” (ARC) ou “ostendam autem vobis quem timeatis timete eum qui postquam occiderit habet potestatem mittere in gehennam ita dico vobis hunc timete” (Vulgata).

103 AAV. Reg. Vat. t. 69, n. 963. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 53. No original: “sicque non solum seipsos precipitant in gehennam, sed et multos trahunt verbis”.

104 Ibid. p. 54. No original: “puniantur (...) malefici et ceteri perversa presumere terreantur”.

105 AAV. Reg. Vat. t. 131, n. 153, fol. 434r. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 230. No original: “quascumque personas ecclesiasticas vel mundanas, religiosas vel seculares”.

106 Ibid. No original: “cuiuscumque status, ordinis, religionis, dignitatis vel conditionis existant”.

107 Para uma visão geral desse aspecto, ver os cargos ou títulos que antecedem os nomes dos acusados na Tabela 1 deste capítulo.

108 A Sé apostólica continua sendo chamada dessa forma, mesmo não estando exatamente em Roma, mas em Avinhão.

109 AAV. Reg. Vat. t. 131, n. 153, fol. 434r. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 229. No original: “[apud romanam Curiam] ubi fidei eiusdem radius lucere debet clarius”.

que a Igreja estava no alto de uma torre de vigia ou de observação (specula) a fim de olhar por aqueles muitos, tanto quanto possível (quamplures), que se afastavam da luz da verdade (veritatis lumine) e que por muitos erros se enganavam ou se confundiam (tanta erroris

caligine obnubilantur).110 Quanto às associações dos magos ao Diabo ou ao inferno que João

faz em 1319, na carta citada anteriormente, se tratam de enquadramentos tradicionais, lugares- comuns que se desenvolveram ao longo dos séculos, desde Agostinho e Isidoro de Sevilha.111

Em resumo, as referências de que a prática da magia aconteceria a partir do envolvimento ou da associação de várias pessoas podem ser encontradas em pelo menos três diferentes momentos, nos documentos aqui analisados, de forma indissociável:

1) Elas aparecem na ocasião da delegação do processo em que os suspeitos são nomeadamente listados, estando eles frequentemente inseridos em grupos de religiosos ou de religiosos e leigos que se envolvem tendo em vista os crimina. 2) Essas associações também surgem a partir do entendimento, em termos objetivos,

de que esses episódios eram de conhecimento comum, se davam na esfera da coisa pública e repercutiam na infamia — como visto, segundo as definições de Latrão, na ausência de uma denúncia formal, a infamia bastava para o início de um processo.

3) Em termos simbólicos, isso ainda se coloca nos enquadramentos teológico- jurídicos que interpretam a magia como uma doença que se espalha, os magos como raposas que destroem vinhedos ou, ainda, a Igreja e seus delegados — que se colocam como pastores vigiantes de um rebanho de ovelhas que podem se perder. Essas evidências, por sua vez, impõem outros limites à categoria conceitual do “submundo clerical”112: os malefícios não parecem ter se desenrolado exatamente em um

submundo, dado o caráter público e de associação que, repercutido, é enfatizado em diversos momentos nos processos que visam corrigir esses excessos. Isso não quer dizer que a necessidade do segredo ou do ocultamento não tenha feito parte do horizonte das práticas mágicas em pelo menos algum nível. Essa necessidade existe, mas se compararmos o que dizem os manuais de magia a respeito disso113 com o que revelam, atualmente, os processos

que foram tomados em direção aos clérigos acusados de práticas mágicas, parece possível afirmar que a preocupação de se levar essas práticas para longe dos olhos dos curiosos esteve muito mais na teoria do que na prática.

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110 Ver mais nas páginas 123-124 do Capítulo 2 desta tese. 111 Ver mais no item 1.1 desta tese.

112 Mais sobre o “submundo clerical”, na Introdução e no item 1.4, Capítulo 1 desta tese. 113 Mais sobre este ponto, no próximo capítulo desta tese.

Jean-Patrice Boudet e Julien Vèronese, analisando como a questão do mistério ou do ocultamento foi inserida em um conjunto de manuais de magia, chegaram à conclusão que, entre aquilo que era orientado e ensinado por esses textos e o que efetivamente acontecia, a obrigação do segredo parece ter sido seguida, pelo menos em parte, de forma “nebulosa”114.

Vejamos pelo menos dois exemplos de como isso se apresenta nos processos movidos pelos papas contra os clérigos magos no século XIV:

O processo movido contra os monges de Boulbonne, da diocese de Mirapoix, acusados de batizarem imagens e de se envolverem com alquimia (Caso 22). Na carta em que Bento XII escreve ao abade deste mosteiro, o pontífice enfatiza que os monges “a ninguém revelaram nem espalharam”115 sobre suas práticas, fazendo-as de forma oculta, clandestina

(clandestine). E que de forma desconsiderada (per inconsiderationem) em relação aos outros monges do monastério, não contaram a eles (non advertencium) que uma imagem permaneceu por vários dias escondida no altar da capela daquele lugar. A despeito dessas