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A magia como um problema de ordem eclesiástica

PARTE II. A MAGIA ENTRE PERSEGUIDORES E PERSEGUIDOS NO SÉCULO XIV:

CAPÍTULO 3. O CRIME DE MAGIA SOB A INQUISIÇÃO DE JOÃO XXII (1316-1334)

3.4. A magia como um problema de ordem eclesiástica

As referências aparentemente genéricas dos “muitos” ou “diversos” (multos, plurium,

quamplures, multociens e assim por diante) que são constantemente evocadas na

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117 Noverint universi, quod nos officialis Tholosanus vidimus... In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 120. No original: “Nichil ad te, quia tu es ita loquax, quod nichil potes secrete tenere”.

118 Ibid. No original: “Tamen si tu velles esse fidelis et tenere secrete, ego bene dicerem tibi”.

119 Ibid. No original: “Et tunc ipse deponens promiso, quod nemini revelaret ymmo secrete teneret, quidquid sibi diceret”.

120 Ibid. No original: “Ego loquebar Petro Engilberti, quod perquireret michi unum hominem qui secrete talliaret michi unum molle ad similitudinem istius ymaginis in lapide”.

documentação podem ser interpretadas de pelo menos duas maneiras. Por um lado, de forma ampla, esses termos podem se referir à sociedade como um todo, ao rebanho, à toda Cristandade que seria prejudicada em razão dos erros dos magos. Por outro, quando esses termos se referem aos acusados, é preciso dizer que, pelo menos sob o olhar dos inquisidores nesse contexto do século XIV, o que está sendo visado é um grupo particular.

Na esfera das preocupações papais, esses termos indefinidos muito dificilmente visam mulheres, por exemplo. Quanto aos leigos, eles aparecem de forma apenas marginal nos processos. Restam, finalmente, os homens religiosos: ainda que os monges apareçam de forma significativa, em 9 Casos ao total,122 a maioria dos processos envolve clérigos seculares,

chegando ao número de 12 Casos.123 Em outras palavras: estamos falando de eclesiásticos

(papas e inquisidores) investigando outros eclesiásticos (com frequência, membros do alto escalão, como bispos, arcebispos e abades de mosteiros, mas também clérigos de maneira geral). Isso nos leva a um enquadramento importante: a despeito da retórica da salvação das almas e da preocupação com todas as ovelhas do rebanho, a luta contra a magia parece ter se desenvolvido, sobretudo, como um problema interno da Igreja, na hierarquia eclesiástica.

As investigações de pelo menos outros dois historiadores, que situam os processos aqui analisados em um recorte cronológico mais amplo, parecem reforçar essa hipótese. Um desses estudos é o que foi desenvolvido por Julien Théry-Astruc a respeito de um conjunto de 570 processos movidos contra clérigos criminosos entre os séculos XII e XIV.124 Esses casos,

que se desenvolveram pelo menos desde 1198, sob o pontificado de Inocêncio III, também aparecem na forma de litteras enviadas pelos papas aos seus delegados inquisidores e direcionadas aos clérigos, sobretudo os prelados, ou seja, membros eminentes da hierarquia eclesiástica. Os negotia se desenrolaram em grande parte no reino da França, principalmente no Sul. Também denunciados pela fama, os suspeitos são investigados por uma série de “excessos” ou “enormidades”, termos utilizados como um agravante moral em relação aos seus erros que, antes de merecerem necessariamente uma punição em um sentido condenatório, deveriam ser corrigidos a fim de que os comportamentos inadequados fossem

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122 Trata-se dos Casos 1, 4, 7, 8, 10, 11, 22, 23 e 24.

123 A saber, os Casos 2, 5, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 18, 19 e 22.

124 Ver: THÉRY-ASTRUC, J. Inquisitionis Negocia: Les procédures criminelles de la papauté contre les prélats, d’Innocent III à Benoît XII (1198-1342). Première approche: aperçu sur les sources de la pratique. Mémoire remis à l’Académie des Inscriptions et Belles-Lettres. Rome: École française de Rome, 2004.

emendados, retificados ou reformados.125 “São mais do que simples repressão”, explica o

autor, “tratam-se de meios de fiscalização, controle e pressão”126.

Théry-Astruc não tratou com profundidade a questão da magia naqueles processos. As cartas editadas por Jean-Marie Vidal (em que aparecem os clérigos magos) não entraram no seu recorte. Isso nos permite uma importante aproximação, dadas as semelhanças desses

corpora documentais: parece possível estender também aos processos dos clérigos magos

essas mesmas ansiedades de correção e reforma, que, segundo as pesquisas de Théry-Astruc, se desenvolvem ao longo de pelo menos três séculos. Este autor considerou as inquisitiones feitas sobre os clérigos ao longo desse tempo, como um instrumento de governo, como uma forma de exercer a autoridade apostólica aos crimes que seriam, dito de forma ampla, uma ameaça à ordem.

Em outras palavras, ainda que estivessem enraizados na ideia de uma “saúde coletiva”127, o grupo de criminosos visados foi, antes disso, bastante circunscrito: os clérigos.

Não há razão para não inserir a magia (uma vez sabendo quem são os seus alegados praticantes e a retórica que envolve a perseguição) dentro dessas mesmas preocupações, as quais, situadas na longa-duração, estão no âmbito da emenda, do reparo ou da correctio típica dos religiosos.

Outra investigação — ou um conjunto de investigações — que situa os processos aqui analisados também em recorte cronológico mais amplo são os estudos qualitativos, mas sobretudo quantitativos, realizados por Richard Kieckhefer em seu calendário de julgamentos, organizado em razão dos casos que enquadrou pelo motivo de “bruxaria”.128 Por meio de um

mapeamento de processos que teriam acontecido entre 1300 e 1500 no contexto da Europa, Kieckhefer dividiu esse grande período em quatro diferentes fases de desenvolvimento. Durante a primeira fase, entre os anos 1300 e 1330, a taxa de acusações ainda seria baixa e mais da metade dos processos era oriunda do reino da França. O autor fala de uma forte

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125 Idem. “Atrocitas/Enormitas. Esbozo para una historia de la categoría de ‘enormidad’ o ‘crimen enorme’ de la Edad Media a la época moderna”. In: DELL’ECINE, E.; MICELI, P.; MORIN, A. (Org.). Artificios Pasados: Nociones del derecho medieval. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, 2017. pp. 136-137.

126 Idem. “‘Excès’, ‘affaires d’enquête’ e gouvernement de l’Église (v. 1150-1350). Les procédures de la papauté contre les prélats ‘criminels’: première approche”. In: GILLI, P. (Ed.). La Pathologie du Pouvoir: vices, crimes et délits des gouvernants: Antiquité, Moyen Âge, époque moderne. Leiden; Boston: Brill, 2016. p. 205. No original: “étaient des moyens de surveillance, de contrôle et de pression bien plus que de simple répression”. 127 Ibid. No original: “[nécessité qui était celle du] salut collectif”.

128 Ver: KIECKHEFER, R. “Calendar of Witch Trials”. In: Idem. European Witch Trials: Their Foundations in Popular and Learned Culture, 1300-1500. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1976. pp. 106- 147. Mais sobre as divisões cronológicas propostas por Kieckhefer, precisamente no segundo capítulo da obra, intitulado “Chronological Survey”, pp. 10-26.

“característica política”129 dos processos. Na segunda fase, entre 1330 e 1375, o território

francês continuaria ocupando certo protagonismo, mas apenas em relação a suspeitos “não importantes”130. Na terceira fase, entre 1375 e 1435, Kieckhefer identifica uma mudança

significativa: há um aumento substancial dos processos, muito provavelmente em razão da incorporação do método inquisitório pelas cortes municipais. Haveria uma ampliação dessas investigações para além do contexto eclesiástico, agora nos tribunais civis. Já na última fase, entre 1435 e 1500, essas mudanças tomariam novas proporções, motivando processos marcados por uma nova noção de “bruxaria”: uma em que acusações de envolvimento com o Diabo ganhariam cada vez mais detalhes e certo protagonismo nos relatos das investigações.

Jean-Patrice Boudet, a partir dos recortes de Kieckhefer, afirma que nessa última fase haveria o que chamou de um “duplo processo de democratização e feminilização”131 nos

processos: em vez de homens de alto escalão acusados de magia, agora vemos, sobretudo, mulheres de classes inferiores sendo acusadas de incantationes, de maleficium, e assim por diante. Michael Bailey, também a partir do mapeamento de Kieckhefer, comenta a questão de gênero em termos quantitativos: antes de 1350, cerca de 75% dos suspeitos em processos de magia eram homens. Na segunda metade do século XIV, esse número chega a 42%, e, no século XV, a quantidade de homens processados cai até os 30% dos números absolutos. Nos séculos seguintes esse número é ainda menor.132

Aqui parece oportuno perguntar: o que nos dizem os processos contra os clérigos magos até aqui estudados — que não foram considerados no mapeamento de Kieckhefer — em relação a este “calendário”? Pelo menos três respostas parecem ser possíveis.

Em primeiro lugar, os processos dos clérigos aqui analisados tendem a inflar os números da “primeira fase” (entre 1300 e 1330) que Kieckhefer diz terem sido baixos em relação às perseguições posteriores: este autor identificou 48 processos neste recorte na Europa. Nesta tese estão sendo analisados 11 casos deste mesmo período do contexto francês, dos quais apenas três foram identificados por Kieckhefer133. Isso eleva em cerca de 20% a

contagem inicial proposta pelo autor do calendário. Se englobarmos a década seguinte, outros 10 processos estudados nesta tese foram deixados de lado, o que aumentaria em cerca de 40% 

129 Ibid. p. 10. No original: “[most remarkable (...) their] political character”. 130 Ibid. p. 16. No original: “unimportant suspects”.

131 BOUDET, J.-P. “La genèse médiévale de la chasse aux sorcières: jalons en vue d’une relecture”. In: NABERT, N. (Org.). Le mal et le diable: Leurs figures à la fin du Moyen Age, Nathalie Nabert. Paris: Beauchesne, 1996. p. 45. No original: “un double processus de démocratisation et de féminisation [des accuses de crime de sorcellerie]”.

132 BAILEY, M. “From Sorcery to Witchcraft: Clerical Conceptions of Magic in the Later Middle Ages”. Speculum. v. 76, n. 4, 2001. pp. 986-987.

o número original estabelecido por Kieckhefer em relação à mesma época.134 Essa quantidade

pode ser ainda maior: por um lado, em relação aos números totais do contexto europeu — estudos recentes, sobretudo a partir de arquivos locais e no contexto secular, têm aumentado os índices propostos no Calendário;135 por outro, também em relação aos casos movidos pelos

papas, uma vez que o trabalho de edição das litteras atualmente guardadas nos Arquivos Apostólicos ainda não está terminado.136

Em segundo lugar, as cartas analisadas neste capítulo podem relativizar o que Kieckhefer reconheceu como o contexto inicial de um “clima político” ideal para fomentar a “obsessão”137 pelas acusações de magia. A ideia de que os julgamentos teriam sido usados

sobretudo como um pretexto na luta dos poderosos pode ter surgido porque, no calendário, foram considerados os processos mais conhecidos na historiografia, como os mencionados no começo deste Capítulo, envolvendo as acusações de magia. Como visto até aqui, inúmeros outros casos trazem nomes menos conhecidos e eventualmente suspeitos anônimos. E mesmo que os prelados (autoridades da Igreja) tenham sido investigados, diversos outros inquéritos foram direcionados a monges ou clérigos seculares que não eram necessariamente autoridades.

Em terceiro lugar, os processos aqui analisados podem ajudar a explicar por que exatamente uma gradual incorporação do procedimento inquisitorial por parte dos tribunais leigos acabou por desenvolver uma também gradual perseguição às mulheres na virada do século XIV para o XV. Não que os tribunais eclesiásticos procurassem especificamente por homens, mas essa foi uma consequência natural, uma vez que esses tribunais podiam apenas abrir inquéritos em direção aos que estavam sob a sua jurisdição; e estes eram, a saber, os membros do clero. O que procuravam os inquisidores do século XIV quando inquiriam aqueles suspeitos praticar magia: procuravam por homens religiosos, membros da Igreja e pastores do rebanho.

Dito de outra forma, os papas não focaram sua atenção nas mulheres praticantes de magia antes da primeira metade do século XIV por duas razões: primeiro porque não eram 

134 Kieckhefer enumerou 23 processos entre 1331 e 1340. Destes, 5 foram identificados nesta tese, em um total de 15 desse período: tratam-se dos Casos 16, 18, 21, 22 e 24. Ou seja, outros 10 processos aqui analisados não entraram no Calendário proposto por Kieckhefer.

135 Há, por exemplo, os estudos de Pierrette Paravy sobre os processos do Delfinado que também elevam os números apontados por Kieckhefer. Ver mais: BOUDET, J.-P. “La genèse...”. op. cit. p. 40.

136 Ver: VALLIÈRE, L. Les lettres pontificales du XIVe siècle: histoire de leur édition et questionnements actuels. Lusitania Sacra. n. 22, 2010. pp. 25-43.

137 KIECKHEFER, R. European Witch Trials... op. cit. p. 10. No original: “[The] political climate [was ideal for fostering the] obsession”.

elas que estavam sob a sua jurisdição mais imediata, mas sim os membros do clero; segundo porque a magia, sob a alçada dos inquisidores naquele momento, era um problema sobretudo de disciplina eclesiástica, de correção religiosa, uma vez que ainda era indissociável (sob o olhar dos perseguidores) de práticas e saberes típicos de um contexto letrado, educado, mas também devocional, ritualístico e religioso.

Em resumo, há aqui uma relação de aparente paradoxo: são diversas as referências, por parte dos perseguidores, que enquadram a prática da magia como um problema coletivo, da societas de todos os cristãos. Por outro lado, quando examinamos os processos, percebemos que o público-alvo das investigações é fundamentalmente restrito: a saber, os clérigos. Mas não há necessariamente uma contradição nisso: são visados os clérigos porque, como apresentado no processo do abade de Périgueux (Caso 1), são justamente os que precisam dar os melhores exemplos; sendo pastores, são os que precisariam vigiar o rebanho e os últimos que deveriam se comportar como raposas — como visto até aqui, estamos falando de preocupações e ansiedades que se colocam de diversas formas simbólicas. No entanto, não apenas: o exercício da cura também se deu de forma objetiva e prática, de modo que para salvar e cuidar dos espíritos, junto ou mesmo antes disso, parece ter sido preciso, também, controlar os corpos.