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A magia sob a jurisdição dos inquisidores (2): Zanchino Ugolini e Nicolau Eimérico

PARTE I. AS DEFESAS E AS CONDENAÇÕES DA MAGIA NA LONGA-DURAÇÃO

PASTORAIS ÀS INICIATIVAS PAPAIS SOBRE A MAGIA CLERICAL

2.5. A magia sob a jurisdição dos inquisidores (2): Zanchino Ugolini e Nicolau Eimérico

Por volta de 1330, o inquisidor e jurista Zanchino Ugolini publicou a obra intitulada

Sobre os hereges (De haereticis ou mesmo Super materia hereticorum). Muitas das suas

preocupações vão ao encontro daquelas de Bernardo ou das do autor da Summa do ofício da

inquisição. No começo do capítulo dedicado aos que enquadrou como “adivinhadores,

encantadores e similares”196, Zanchino tratou inicialmente dos magos (magici) e dos

astrólogos (mathematici). Explicou que estes “são os que não apenas tentam profetizar as coisas futuras e conhecer todas as coisas ocultas”197, fazendo aí uma possível referência às

forças (vis) secretas ou escondidas que a magia natural procurava estudar198, “mas que

também por uma certa arte mágica, fazendo imagens de cera e de outras coisas” tentam, a partir disso, influenciar, mover (torquere) e também torturar, no sentido de provocar a dor (cruciare), o coração ou íntimo (cor) de alguém.199 Em outro manuscrito do texto, este último

termo é substituído por corpus, no sentido de que o corpo físico seria influenciado200. Pode-se

inferir, possivelmente, no sentido de provocar a doença, a luxúria ou o desejo. Por esses mesmos meios, nas palavras do inquisidor, os magos possuiriam o poder de fazer dobrar ou de fazer inclinar a vontade (flectere voluntatem) das outras pessoas.

Considerando as narrativas dos manuais de magia natural e também os relatos dos inquisidores a respeito do que chamamos de uma magia de imagens, parece possível resumir essa ars ou scientia em pelo menos dois tipos de procedimentos que ganharam a atenção 

195 Ibid. p. 159. No original: “Sacramentum enim eucharistie seu Corporis Christi, in quo est fons gratie et salutis, nullo modo potest esse causa efficiens maleficiorum nec alicujus eorum que sunt contraria gratie et saluti”.

196 Zanchini Vgolini. De Haereticis. Romae apud haeredes Antonij Bladij impressores Camerales, 1568. p. 173. No original: “[Capitulum XXII] De divinatoribus et incantatoribus et similibus”.

197 Ibid. p. 174. No original: “[Magici, sive mathematici] sunt illi, qui non solum conantur vaticinari futura et scire omnino occulta”.

198 Mais sobre esse assunto, no primeiro capítulo desta tese.

199 Zanchini Vgolini. De Haereticis... op. cit. p. 174. No original: “sed per quandam magicam artem (puta faciendo imagines cereas, vel aliter) [conantur cor alicuius torquere seu cruciare]”.

200 Se trata da versão selecionada do texto que está no compêndio de fontes organizado por Joseph Hansen. Ver: HANSEN, J. (Ed.). Quellen und Untersuchungen zur Geschichte des Hexenwahns und der Hexenverfolgung in Mittelalter. Bonn: Carl Georgi, Universitäts-Buchdruckerei und Verlag, 1901. p. 60. No original: “corpus”.

pelos inquisidores, não necessariamente separados um do outro, e nem colocados aqui em ordem de importância:

1) Há o manuseio dos talismãs, que envolve basicamente o processo de gravar ou de marcar símbolos ou sinais em pedras e anéis, com o intuito de conduzir, filtrar ou prender uma certa força (a princípio de origem celestial ou astrológica) nesses objetos; e 2) Há também a feitura e a moldagem de estatuetas, visando representar pessoas reais, que ocasionalmente seriam seguidas pelo batismo. Em função dessa consagração, seriam transformadas em equivalentes ou espelhos das pessoas verdadeiras, as quais sofreriam as consequências do que era feito, antes, com os bonecos que lhes representavam.

Em ambos os casos, estamos falando de práticas de manipulação e transformação da matéria. E sobre esses recursos, que parecem ser uma constante na preocupação dos inquisidores, Zanchino recorre a uma argumentação conhecida ao dizer que “é realmente herético acreditar que alguma coisa seja divina a não ser Deus, e que possam criar ou transmutar [ou mudar201] uma coisa em outra, como Deus, que é o criador de todas as

coisas”202. Dito de outra maneira, segundo a ortodoxia, os magos estariam reivindicando

poderes que seriam possíveis apenas ao Criador.

A novidade, no entanto, é que o autor recorre ao cânone Episcopi para legitimar a sua opinião, o qual, até então, não parece ter sido evocado nesse sentido. Zanchino faz referência à passagem do cânone que menciona as mulheres que alegadamente poderiam voar durante a noite, cavalgando com a deusa Diana e assim por diante.203 Esse texto, costumava ser

invocado, por parte dos juristas, para mencionar a necessidade dos bispos de supervisionarem suas comunidades a fim de evitar o espalhamento dos maléficos, provavelmente no contexto da tradição comum da magia.204 Agora, no âmbito das preocupações inquisitoriais, segue

sendo retomado, mas a partir de preocupações mais precisas, a saber, a da magia praticada pelos letrados. Como será visto a seguir, o cânone Episcopi foi retomado por outros autores em razão dessas mesmas preocupações.

Outra passagem bastante curiosa do tratado Sobre os hereges é a que menciona a existência de dois tipos de sortes, ou seja, de dois tipos possíveis de adivinhação. Nas

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201 Em HANSEN, J. (Ed.). Quellen... op. cit. p. 61. No original: “mutari”.

202 Zanchini Vgolini. De Haereticis... op. cit. pp. 175-176. No original: “Haereticum enim est credere, quod aliquid sit divinum praeter deum, vel quod aliquidpossit creari, vel transmutari ab alio, quam a Deo, qui est creator omnium”.

203 Ver nota 35 cf. supra.

palavras de Zanchino: “ocorre que as vezes as sortes são lícitas e as vezes são ilícitas”205.

Primeiro206, o inquisidor explica a respeito dessas adivinhações, afirmando que “elas são

ilícitas quando feitas por meio de encantamentos mágicos, praticadas por vaidades, para saber antecipadamente alguma coisa futura ou para investigar algo que é absolutamente oculto”207.

Aqui, de forma genérica, e sem grandes novidades, o termo magia segue como um adjetivo de depreciação. Seguindo a tradição, é associado tanto à vanitas, que aparece pelo menos desde Isidoro de Sevilha, quanto à ideia da curiositas divinandi208, ou seja, à investigação daquilo

que não diz respeito aos homens, o que é mencionado tanto por Agostinho quanto por Guilherme de Auvergne, por exemplo.

Sobre as adivinhações que seriam permitidas, Zanchino afirma: “as sortes que são, de fato, lícitas, são praticadas de uma maneira específica e em função da necessidade, por exemplo, em razão de interromper quaisquer contendas ou discórdias, como é provado no caso de Matias”209. Em uma sentença curta, infelizmente deixando detalhes de lado, o autor

faz referência ao episódio bíblico em que, após a morte de Judas, os apóstolos se reuniram para escolher quem ficaria no lugar do falecido e, não havendo consenso, utilizaram as sortes e escolheram Matias.210 Essa sentença é outra importante evidência de que algumas práticas

passíveis de serem chamadas de mágicas poderiam, a depender do contexto, ser vistas como justificadas. A explicação de Zanchino lança uma luz sobre o episódio já mencionado da carta

Ecclesia vestra nuper, escrita pelo papa Honório III, a respeito dos clérigos que se utilizaram

da adivinhação para escolher um bispo na ocasião de uma eleição. A explicação de Zanchino nos permite supor que esses bispos poderiam ter recorrido à adivinhação na melhor das intenções, seguindo, inclusive, um precedente bíblico.

Antes, Bernardo Gui escreveu sobre as práticas que se espalhavam pelas terras vizinhas e enfatizou constantemente a necessidade de investigação a respeito da infamia que corria a respeito dos acusados. Zanchino, na mesma direção, insiste que o crime dos magos 

205 Zanchini Vgolini. De Haereticis... op. cit. p. 176. No original: “Quia quandoque sortes sunt licitae et quandoque illicitae”.

206 A ordem da explicação é invertida, sem grandes alterações significativas, na versão do texto analisada por Hansen. Ver: HANSEN, J. (Ed.). Quellen... op. cit. p. 61.

207 Zanchini Vgolini. De Haereticis... op. cit. p. 176. No original: “illicitae sunt, quae fiunt per magicas incantationes, vel ad exercendas aliquas vanitates, seu ad praesciendum aliqua futura vel ad inquirendum aliqua prorsus occulta”.

208 Ver mais: GIRALT, S. Magia y ciencia en la Baja Edad Media: la construcción de los límites entre la magia natural y la nigromancia (c. 1230- c. 1310). Clio & Crimen. n. 8, 2011. pp. 25-31.

209 Zanchini Vgolini. De Haereticis... op. cit. p. 176. No original: “Licitae vero sortes quae fiunt ex causa quodammodo ex causa necessitatis, puta causa dirimendi aliquas contentiones seu discordias, ut probatur in Mathia”.

210 Em Atos 1:26, “E, lançando-lhes sortes, caiu a sorte sobre Matias. E por voto comum foi contado com os onze apóstolos” (ARC – Lê-se versão Almeida Revista e Corrigida). Na Vulgata: “Et dederunt sortes eis et cecidit sors super Matthiam et adnumeratus est cum undecim apostolis”.

poderia ser notório (notorium) e que os adivinhadores, que definiu como ariolos, não poderiam ser recebidos em casa, por exemplo. Citando diretamente a bula Accusatus, insiste que “ao inquisidor, no entanto, é apenas confiada a jurisdição nos casos de heresia”211 e que

este não deveria se intrometer (non intromittet) naquilo que não manifestasse o sabor herético, devendo se concentrar, portanto, no caso “das artes mágicas que anteveem as coisas futuras, coisas que são próprias apenas de Deus”212, uma vez que seriam heresia. Nesse caso, também

seria apropriado ao inquisidor ir na direção dos idólatras e àqueles “que dizem e acreditam que podem realizar [coisas] a partir de outro lugar que não de Deus, ou que [dizem e acreditam que] alguma coisa possa vir de outra origem que não a de Deus, que tudo fez e faz, de modo que para além dele nada pode ser divino”213. Aqui, Zanchino pode estar falando

indiretamente tanto da magia de imagens quanto da magia natural. Na sequência, para além das correções impostas aos leigos, o autor destaca que “se for clérigo (...) outras penas também podem ser movidas pelo bispo para a punição”214, associando, novamente, o grupo

preciso dos letrados como um nicho particularmente dado a essas práticas. Ele faz essa associação como o autor anônimo da Suma do ofício da inquisição quando deu detalhes a respeito de como isso era feito. Zanchino, o autor anônimo e também Bernardo Gui são influenciados por uma tradição que os precedeu, como visto até agora, que de forma muito parecida e em várias ocasiões destacou esse grupo no conjunto dos praticantes da magia.

Muitos desses topoi seguem em uso na literatura inquisitorial. Por volta de 1376, o dominicano catalão Nicolau Eimérico completou o seu Directorium inquisitorum, ou

Diretório (no sentido de apontar direções, servindo de guia) dos inquisidores, que também

tem sido traduzido pela historiografia como Manual dos inquisidores. Esse texto, de forma pouco precisa, foi interpretado como um ponto “culminante” dos escritos dos inquisidores e também da literatura legal sobre os diferentes tipos de magia na época215. No entanto, o Diretório parece ser melhor compreendido nos termos empregados por Michael Bailey, que

além de destacar a relevância desta obra na longa duração — uma vez que foi mais reproduzida do que o manual do outro dominicano, Bernardo Gui, por exemplo216 —, também

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211 Zanchini Vgolini. De Haereticis... op. cit. p. 177. No original: “Inquisitor autem, cui est solummodo commissa iurisdictio in causis haeresis”.

212 Ibid. No original: “magicis artibus praescire futura: quod quidem est proprium solius Deus”.

213 Ibid. No original: “dicentes et credentes, se posse consequi ab alio quam a Deo, vel aliquid posse fieri praeter nutum Dei, per quem omnia facta sunt et fiunt, et praeter quem nihil potest esse divinum”.

214 Ibid. p. 180. No original: “si quis clericus. Item potest alia poena arbitraria pro motu Episcopi castigari”. 215 Erroneamente porque a ideia de um ponto culminante pressupõe, como consequência, noções de apogeu e declínio, categorias que não parecem ser mais suficientes para explicar a complexidade das tradições e dos debates intelectuais ao longo do tempo. O termo usado por Edward Peters aparece em: PETERS, E. et al. (Org.). Witchcraft... op. cit. pp. 214-215. No original: “culmination [of the inquisitorial and legal doctrine...]”.

notou que, no seu próprio momento histórico, foi um importante tratado em razão do esforço de Eimérico em desenvolver teorias legais e teológicas para sustentar a autoridade dos inquisidores.217

Sua importância no que diz respeito às relações entre o malefício e a heresia, que aqui nos interessam, aparece em diversos momentos. No tratado de Eimérico reaparecem, por exemplo, as antigas metáforas da heresia, uma evidência do sucesso e da permanência dessas associações. À semelhança de Bernardo Gui, que prescreveu fórmulas ou formas de registros processuais, Eimérico aponta uma fórmula de aviso, de advertência ou admoestação (admonitionis) a ser proferida publicamente, como uma espécie de sermão, a respeito dos hereges descobertos: “muitas pessoas venenosas, inimigas de Cristo, da Igreja e da verdadeira e santa fé, como antigas serpentes, infectam pelo veneno da heresia, [são também] raposinhas de caudas misturadas”218 que ainda “perambulam pelas vinhas do Senhor”.219 O autor

completa, recorrendo provavelmente a outra figura de linguagem, que por este venenum os hereges infectam o íntimo, as entranhas ou o coração (praecordia) de muitas pessoas (multorum), o que reforça novamente os antigos conceitos de heresia como um erro sempre associado à coletividade e muito raramente enquadrado como erro individual.

No que diz respeito precisamente aos maléficos e à experiência prática dos inquisidores de terem tido contato direto com esses casos, em diversas ocasiões na Secunda

pars do seu Diretório, Eimérico atesta que ele e muitos dos seus colegas tiveram a

oportunidade de ler os livros dos magos. Na Questão 28, “sobre os livros condenados segundo os inquisidores de Aragão”,220 o inquisidor faz uma lista das diversas obras a que os

investigadores tiveram acesso, enquadradas aqui como “livretos heréticos e errôneos”221 e

“condenados por causa dos muitos erros encontrados neles”.222 Na Questão 43, dedicada aos

invocadores de demônios, Eimérico dá detalhes a respeito de um livro “atribuído a Salomão”, exemplar de uma literatura que hoje é classificada como “salomônica”.223 Esta obra, dentre

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217 BAILEY, M. Magic and Superstition... op. cit. p. 124.

218 Nicolai Eymerici Ordinis Praed. Directorium inquisitorum (cum commentariis Francisci Pegñæ, in hac postrema editione iterum emendatum, & auctum, & multis litteris Apostolicis locupletatum). Romae: in ædibus Populi Romani, apud Georgium Ferrarium, 1587. p. 408bB. No original: “cetero nonnulas personas pestiferas Christi et Ecclesie, ac verius sanctae fidei inimicas, antiqui serpentis veneno heresis esse infectas vulpinis caudis intrincatis”.

219 Ibid. p. 408bB. No original: “vineam Domini [Sabaoth] discurrentes”. 220 Ibid. p. 316aA. No original: “De libris damnatis ab Inquisitoribus Aragoniae”. 221 Ibid. p. 316aB. No original: “Libri hereticales & erronei”.

222 Ibid. p. 316aE-bA. No original: “[Isti libelli] condemnati propter multos errores in eis repertos”.

223 Mais sobre as categorias conceituais historiográficas, na Introdução desta tese. Sobre exemplos dessa literatura salomônica, no Capítulo 4.

outras coisas, explicaria como “os demônios juram dizer a verdade”,224 de modo que ali “os

poderes de Lúcifer e de outros demônios são falsamente induzidos e são mostradas orações a Lúcifer e a outros demônios, orações [que são] nefastas [e que os próprios] demônios revelam”.225 Eimérico afirma que essas situações “também aparecem no livro que é atribuído a

Honório, o necromântico, que se intitula ‘Tesouro da necromancia’ ou ‘dos necromânticos’”226, texto que será analisado mais adiante, na segunda parte desta tese.

E como exatamente Eimérico teve acesso ao conteúdo desses manuais? Ele explica:

Tais livros eu capturei dos necromânticos, li, e [conforme a] tradição, foram publicamente queimados. [Essas coisas] também aparecem, de fato, em diversas confissões dos invocadores de demônios e em outras inquisições feitas por mim e por outros inquisidores da depravação herética227 (grifo nosso).

Como visto até aqui, a inquisição é, antes de tudo, uma forma de investigação. Provavelmente utilizando da sua experiência e também da dos seus pares como um recurso de autoridade para legitimar o próprio exercício inquisitorial, Eimérico torna indissociável a necessidade das provas e da infamia, da possibilidade da condenação efetiva dos crimes dos maléficos ou, mais precisamente, dos necromânticos. Dito de outra maneira, para além dos recursos retóricos e alegóricos que também são instrumentalizados em direção à perseguição daquilo que é oculto, secreto ou que se esconde, a perseguição aos praticantes da magia se sustenta antes de mais nada no princípio de que esses inimigos são reais, são muitos e são perigosos.

Esse perigo foi destacado pelos inquisidores de duas formas que se retroalimentaram: 1) Por um lado, de forma genérica, pelas narrativas heréticas (firmadas na longa duração) das raposas que têm muitas caudas e que destroem os vinhedos de Deus ou mesmo de um cancer que se espalha e assim por diante. 2) Por outro lado, de forma mais precisa, a partir das descrições dos crimes, dos erros ou dos desvios dos magos que passaram a ser descritos de forma cada vez mais detalhada (direta ou indiretamente), descobertos em função das investigações e das averiguações — dito de outra forma, pelas inquisitiones.

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224 Nicolai Eymerici. Directorium... op. cit. p. 338aC. No original: “quo iurant demones advocati de dissenda veritate”.

225 Ibid. 338aD. No original: “potestas Luciferi et aliorum daemones mendaciter est inserta & orationes nefariae a daemonibus revelate Lucifero et allis daemonibus exhibente”.

226 Ibid. No original: “Apparet etiam in libro, qui Honorio necromantico inscribitur qui Thesaurus necromantiae aut necromanticis appellatur”.

227 Ibid. p. 338aD. No original: “Quos quidem libros a necromanticis per me captis avulsi et legi et publice traditi comburendos. Apparet etiam et de facto in diversorum invocatorum Daemonum confessionibus & aliis Inquisitionis prout me et alios Inquisitores haeretice pravitatis”.

É provável que eles, em algum momento, se deparassem com praticantes efetivos de uma magia erudita, clerical ou letrada. Como no caso de Eimérico, que mencionou explicitamente ter encontrado livros que por depois de lidos por ele foram queimados, ou, como Bernardo Gui e outros que descreveram em detalhes como os clérigos batizavam imagens ou praticavam outros atos.

Assim como não houve exatamente um consenso dos penitenciais a respeito da duração das penas que deveriam ser aplicadas aos que praticavam a magia, também há diversidade no que diz respeito ao entendimento dos inquisidores daquilo que poderia ser considerado herético ou não. Se, por exemplo, para o autor da Suma do ofício da inquisição, a prática de observar as mãos de alguém para adivinhar o futuro era motivo de preocupação228,

para o autor do Diretório nem tanto. Sobre os “que agem meramente pela arte da quiromancia, que adivinham pelas linhas das mãos e [a partir disso] julgam os efeitos naturais e os condicionamentos dos homens (...) a respeito destes, o inquisidor não se envolve”229.

Citando diretamente a bula Accusatus de Alexandre IV, que delimitou a atuação dos inquisidores àquilo que tinha sabor de heresia, e a Ex tuarum, sobre o sacerdote que adivinhou com o astrolábio, Eimérico enfatiza que em qualquer um desses casos “não há a intenção de invocar os demônios”230, o que automaticamente retira essas preocupações da alçada

inquisitorial, havendo “apenas” (mere) divinatio e sortilegium, que aqui não seriam necessariamente sinônimos de heresia, ainda que atos condenáveis mesmo assim.

Esse entendimento, recorrente na literatura inquisitorial, de que nem toda adivinhação ou feitiçaria seria demoníaca por si só, pode ser interpretado como uma extensão de outros tipos de discussões. A saber, as que aconteceram tanto no contexto da física e da scientia

naturalis quanto no da teologia, que também se preocupou em destacar os limites e as

fronteiras de até onde os demônios poderiam ir. Já o enquadramento da demonolatria como uma forma de heresia segue, pelo menos no Diretório de Nicolau Eimérico, como algo fora de qualquer questionamento. Os que fazem adivinhações e sortilégios passam ao âmbito da heresia justamente quando resvalam no culto aos demônios. Explicando a questão em termos muito parecidos aos de Zanchino Ugolini — que falou sobre como os magos influenciavam o íntimo ou o coração (cor) dos homens231 —, argumenta que esses hereges adoradores dos

demônios “fazem essas e outras coisas para adivinhar o futuro ou penetrar no íntimo dos 

228 Ver nota 163 cf. supra.

229 Nicolai Eymerici. Directorium... op. cit. p. 336aAB. No original: “qui agunt mere ex arte chiromantiae, qui ex manus lineamentis divinant et iudicant de effectibus naturalibus et conditionibus hominis (...) de istis non se habet intromittere Inquisitor”.

230 Ibid. No original: “non ea intentione ut daemones invocaret”. 231 Ver nota 199 cf. supra.

homens”, coisas que sem dúvida “manifestam o sabor da heresia”232. Esses sortílegos e

adivinhadores, que também seriam demonólatras, “não escapam do julgamento do inquisidor, e são punidos pela [mesma] lei que trata dos hereges”233, remetendo novamente à Accusatus.

A associação da heresia ao culto aos demônios, que é um dos pilares da argumentação de Eimérico no que diz respeito aos praticantes da magia, entendida aqui de forma ampla, não chega a ser necessariamente algo “novo”, como defendeu Pierrete Paravy.234 Décadas antes,

como visto, a associação já apareceu em Bernardo Gui e em Zanchino Ugolini, apenas para mencionar os inquisidores, pois se formos a Rábano Mauro, por exemplo, percebemos que a conexão é bem mais antiga.