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PARTE II. A MAGIA ENTRE PERSEGUIDORES E PERSEGUIDOS NO SÉCULO XIV:

ESTUDO DE CASOS

Notas sobre documentação selecionada

1. O objetivo da primeira parte desta tese foi identificar, na longa-duração dos debates teológicos e jurídicos, alguns dos principais elementos constitutivos daquilo que foi enquadrado como “magia” pelas autoridades ou pela ortodoxia, até o final da Idade Média. São alguns destes elementos, dito de forma ampla: 1) há uma antiga preocupação a respeito das práticas mágicas no contexto clerical. Dito de outra maneira, os clérigos — que em tese deveriam ser os responsáveis pelo bom comportamento dos fiéis das suas comunidades — parecem ter constituído um grupo historicamente associado à magia. Geralmente uma magia de caráter erudito, definida pela prática, leitura e escrita de coisas que a ortodoxia frequentemente enquadrou como diabólicas. 2) Eventualmente, existiram alguns movimentos de legitimação da magia, como por exemplo, a partir de uma defesa daquilo que foi enquadrado como uma “magia natural”. Essas defesas, no entanto, seguiram negando o envolvimento dos demônios e defendendo o zelo de uma fé ortodoxa. 3) Identificamos perseguições em direção a essas práticas que, sob a alçada inquisitorial, se deram a partir do momento em que a magia foi enquadrada na categoria de heresia. Em outras palavras, estamos falando de homens religiosos (inquisidores, sob a alçada papal) perseguindo outros homens que, na sua maioria, também são religiosos (clérigos).

A segunda parte desta tese pretende identificar como e de que forma essas aparentes contradições aparecem em alguns casos específicos no final da Idade Média. Foi selecionada uma documentação que visa recorrer tanto aos testemunhos dos perseguidores quanto ao que nos deixaram os perseguidos a respeito da magia: do primeiro grupo, foi selecionado um conjunto de processos inquisitoriais, movidos pelo papado, em direção a alegados praticantes de magia do reino da França. Estes processos, que aparecem na forma de cartas enviadas pelos papas em direção aos seus inquisidores locais, serão analisados no Capítulo 3. A respeito do que disseram os perseguidos, foram selecionados dois manuais que visavam ensinar práticas alegadamente mágicas: os textos da Ars Notoria e do Liber Iuratus. Estes documentos serão estudados no Capítulo 4.

As fontes da segunda parte da tese são cronologicamente mais circunscritas que as da primeira parte: elas estão situadas principalmente na primeira metade do século XIV. Os processos inquisitoriais aqui analisados foram movidos, na sua maioria, sob os pontificados

de João XXII (1316-1334) e Bento XII (1334-1342). A versão glosada da Ars Notoria aqui analisada atualmente é datada nas primeiras décadas do XIV. O Liber Iuratus, influenciado pela Ars Notoria, também é atribuído ao início do século XIV, tendo sido escrito provavelmente escrito sob o pontificado de João XXII ou Bento XII. Quanto à localização espacial, também parece ser possível fazer uma delimitação: os processos são situados geograficamente, na sua maioria, no sul da França. Quanto aos manuais, apesar de não haver indicações de que sejam originalmente franceses, existem evidências significativas que apontam para sua circulação naquela região. A seguir, uma análise mais precisa desse corpus documental e sobre o porquê da sua seleção para esta investigação.

2. Em 1913, Jean-Marie Vidal publicou uma obra intitulada Bullaire de l'inquisition

française au XIVe siècle et jusqu'à la fin du Grand Schisme.1 O texto trouxe a transcrição sem

tradução, mas com comentários em nota, de aproximadamente 350 cartas, muitas inéditas até então, tomadas diretamente das Regesta Vaticana e Avenionensia da Chancelaria Apostólica.2

Esses textos são basicamente correspondências enviadas, na sua grande maioria, do Palácio dos Papas em Avinhão, em direção a bispos ou inquisidores de diferentes localidades da França (principalmente na região meridional) a fim de tratar de diversos affaires jurídicos, a exemplo de hereges, judeus ou praticantes de magia. Estes últimos foram enquadrados por Vidal como os representantes da “praga” daquela época.3 Neste tese, nos interessa esse grupo

em particular. No Capítulo 3, foram analisadas 28 cartas coletadas por Vidal, o que corresponde a um total de 22 processos.4 Trata-se do número total de processos, no Bullarium,

que tratam do crime de magia.

Na ocasião da sua publicação, a obra de Vidal foi bem recebida, não apenas pela historiografia francesa, mas também por autores de língua inglesa e italiana, por exemplo.5 No

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1 VIDAL, J.-M (Org.). Bullaire de l’Inquisition Française au XIVe siècle et jusqu’a la fin du Grand Schisme. Paris: Librairie Letouzey et Ané, 1913.

2 As Regesta Vaticana são cópias feitas em pergaminho a partir das cartas e de outros documentos escritos originalmente em Avinhão, feitos em papel. Depois que o papado retornou a Roma as Regesta Vaticana foram levadas junto para a Itália e as Regesta Avenionensia foram deixadas no Palácio dos papas. Posteriormente, também essa outra coleção foi levada para Roma. Atualmente, ambas as coleções estão guardadas nos Arquivos Secretos do Vaticano, estando as Regesta Vaticana em melhor estado de conservação. Ver: MOLLAT, G. “Registres pontificaux”. In: NAZ, R. (Ed.). Dictionnaire de droit canonique. v. 7. Paris: Letouzey et Ané, 1958. cols. 536-538; BROM, G. Guide aux Archives du Vatican. 2. ed. Rome: Loescher (W. Regenberg), 1911. 3 VIDAL, J.-M (Org.). Bullaire... op. cit. p. XLVIII. No original: “Plaie du temps”.

4 O número de processos e cartas diverge pois, eventualmente, encontramos duas ou mais cartas tratando de um mesmo caso.

5 Ver, respectiamente: MOLLAT, G. Bullaire de l'inquisition française au XIVe siècle et jusqu'à la fin du Grand Schisme, J.-M. Vidal. In: Revue d'histoire de l'Église de France, t. 4, n. 23, 1913. pp. 589-90 ; BROECKX, E. Bullaire de l'Inquisition Française au XIVe siècle, J. M. Vidal (Review). In: Revue d’Histoire Ecclésiastique. v. 15, n. 1, 1914. p. 353; JOHNSON, C. Bullaire de l'Inquisition Française au XIVe siècle par J.-M. Vidal

entanto, nas décadas seguintes, a edição desta obra em particular seguiu sendo citada apenas ocasional e esporadicamente, muito em razão das notas biográficas que acompanham a transcrição desses documentos que visavam situar historicamente os personagens ali mencionados.6 Em detrimento deste Bullarium editado por Vidal, de tomo único, foram

privilegiadas outras edições das cartas pontifícias, que seguiram sendo publicadas ao longo de todo o século XX e que visaram cobrir as correspondências de diversos pontificados, independente do assunto ou do tema. Essas outras obras eventualmente foram publicadas em diversos tomos, e não incorporaram as cartas já editadas por Vidal no seu Bullarium. Para além de Vidal, que fez outras edições para além das cartas de temática inquisitorial, essas grandes edições foram dirigidas por pesquisadores como Guillaume Mollat, Auguste Coulon e Eugène Déprez.7 Isso fez com que até recentemente as cartas de temática inquisitorial do

contexto francês do século XIV não tenham sido objeto de um estudo sistemático, seguindo na historiografia essa tendência das citações ocasionais e localizadas.8

Nos anos 90 surgiu a plataforma virtual Ut per litteras apostolicas, visando reunir, gradualmente, muitas dessas cartas editadas fisicamente até então. A primeira edição em formato CD-Rom, em 2002, contabilizou um total de 100 mil cartas papais, de pontificados de diversos séculos, e a última versão, de 2011, chegou a um total de 250 mil cartas. A unificação de todos esses documentos foi um elemento importante que contribuiu para que essa plataforma tenha sido utilizada em diversas pesquisas recentes. Porém, nesse processo de digitalização, o Bullarium de Vidal ficou de fora da plataforma Ut per litteras apostolicas.9

Isso fez com pesquisas que se utilizam desse importante banco de dados, seja no caso de investigações mais generalistas, como a de Joëlle Rollo-Koster, que estuda o papado de Avinhão de maneira ampla10, ou pesquisas mais especializadas, como as de Julien Théry-

Astruc, que se propõe a fazer uma história dos processos dos clérigos criminosos investigados  (Review). The English Historical Review, v. 29, n. 114, 1914. pp. 356-8; PANELLA, A. Bullaire de l'Inquisition Française au XIVe siècle, J. M. Vidal; L’Inquisition au Dauphiné, Jean Marx (Review). In: Archivio Storico Italiano, v. 74, n. 3/4 (283/4), 1916. pp. 222-225.

6 Alguns exemplos: MOLLAT, G. Les Cathares en Corse. Comptes rendus des séances de l'Académie des Inscriptions et Belles-Lettres. 100ᵉ année, n. 2, 1956. pp. 147-150; DOSSAT, Y. Les Crises de l’Inquisition Toulousaine au XIIIe siècle (1233-1273). Bordeaux: Imprimerie Bière, 1959.

7 VALLIÈRE, L. Les lettres pontificales du XIVe siècle: histoire de leur édition et questionnements actuels. Lusitania Sacra. n. 22, 2010. pp. 25-43.

8 Ver: OSTORERO, M. Itinéraire d'un inquisiteur gâté: Ponce Feugeyron, les juifs et le sabbat des sorciers. Médievales. n. 43, 2002. pp. 103-118 ; PIRON, S. Un cahier de travail de l’inquisiteur Jean de Beaune. Oliviana. n. 2, 2006. Disponível em: http://journals.openedition.org/oliviana/26. Acesso em 25 out. 2019; TERNON, M. Hérétique ou dément ? Autour du procès de Thomas d’Apulie à Paris en 1388. Criminocorpus. 2016. Disponível em: http://journals.openedition.org/criminocorpus/3153. Acesso em 25 out. 2019.

9 Mapeamento realizado na plataforma Ut per litteras apostolicas em ocasião da visita à biblioteca Farnese, da Escola Francesa de Roma, entre os dias 23 e 25 de outubro de 2019.

10 ROLLO-KOSTER, J. Avignon and its Papacy (1309-1417). Popes, institutions and society. Lanham et al: Rowman & Littlefield, 2015.

pelos inquisidores11, tenham deixado de lado esse importante corpus documental, ignorando

precisamente a problemática dos clérigos acusados de práticas mágicas e que foram editados por J.-M. Vidal. A análise dessas cartas nesta tese, portanto, se justifica por tornar possível a abordagem de um nicho documental que não tem sido privilegiado na historiografia desde muito cedo em relação a sua publicação.

No Capítulo 3 desta tese foi analisado um total de 26 processos. A análise dos 22 casos catalogados por Vidal foi complementada pelo recurso a outros compêndios, como o organizado por Auguste Coulon12, que também traz a documentação na íntegra e alguns casos

esporádicos sobre clérigos acusados de magia. Esses outros 4 casos, somados aos 22 catalogados pelo Bullarium de Vidal, chegando aos 26 analisados no Capítulo 3, também não aparecem nas plataformas virtuais como a Ut per litteras apostolicas. Atualmente esses documentos estão digitalizados no AAV (Archivum Apostolicum Vaticanum)13 e parte desses

manuscritos puderam ser conferidos via consulta local no Arquivo.14

3. A primeira fonte analisada no Capítulo 4 foi o manual da Ars notoria, ou da “Arte notória”. O texto recebe esse nome em razão de uma série de ilustrações ou de desenhos (as

notae) que deveriam ser inspecionadas como parte de um longo processo ritual que permitiria

ao praticante alcançar, por meio da infusão divina, o conhecimento de todas as ciências. Dito de outra maneira, por meio de orações (em que se chamava constantemente pelo auxílio dos anjos e pela intervenção do próprio Deus) e também pela meditação (através da inspeção das “notas”15), o praticante da Ars Notoria pretendia, ao longo de alguns meses, ser iluminado

pela compreensão de todos os saberes humanos — a saber, as ciências liberais (do trivium e do quadrivium) mecânicas, exceptivas, a filosofia e a teologia. Julien Véronèse enquadrou a

Ars Notoria como uma “magia da escola”16 tanto em razão das suas pretensas ambições

quanto devido ao seu público leitor. A qualificação do texto enquanto uma obra de “magia” — entendimento que será problematizado ao longo da discussão — surge tanto em razão de um olhar atual, historiográfico, a respeito do texto; quanto em função das críticas e das 

11 THÉRY-ASTRUC, J. Inquisitionis Negocia: Les procédures criminelles de la papauté contre les prélats, d’Innocent III à Benoît XII (1198-1342). Première approche: aperçu sur les sources de la pratique. Mémoire remis à l’Académie des Inscriptions et Belles-Lettres. Rome: École française de Rome, 2004.

12 COULON, A. (Ed.). Lettres Secrètes et Curiales du Pape Jean XXII. v. 1. Paris: Fontemoin & Cie, 1913. 13 Antigo ASV (Archivum Secretum Vaticanum).

14 As pesquisas no Arquivo deram-se na última semana de outubro em 2019. Por uma limitação de tempo, a consulta a todos os processos não foi possível.

15 Na página 209 desta tese há uma ilustração de um fólio do manuscrito BnF 9336, em que é possível visualizar a nota da dialética e suas respectivas orações.

16 VÉRONÈSE, J. L’Ars Notoria au Moyen Age. Introduction et Édition Critique. Firenze: Sismel, Edizioni del Galluzzo. 2007. p. 15. No original: “magie de l’école”.

condenações que a obra recebeu ainda nos séculos XIII e XIV. O principal motivo da suspeita: os anjos, constantemente invocados ao longo do tratado — alguns com nomes intraduzíveis, alegadamente escritos em outra língua —, poderiam ser anjos caídos ou até mesmo demônios disfarçados.17

A edição crítica mais recente da obra foi feita por Julien Véronèse18. O texto foi

transcrito integralmente, em latim, sem tradução. A partir de uma comparação de 13 manuscritos diferentes19, este autor estabelece pelo menos três tradições diferentes do texto.

Os manuscritos mais antigos da primeira tradição da Ars Notoria — definida como Versão “A” — são, aproximadamente, de 1225. Em meados do século XIII essa Versão A ganha um complemento, com novas instruções rituais, novas orações e novas figuras ou notae. Essa nova tradição textual é definida por Véronèse como Opus operum. Por fim, a terceira tradição identificada — chamada Versão “B” — corresponde a uma extensiva glosa do que foi produzido até então (o que acaba por incorporar, portanto, a Versão A e seu complemento, a

Opus operum). Escrita nas primeiras décadas do século XIV, essa versão se apresenta como

uma summa e mais que dobra de tamanho em relação a suas versões anteriores. A Versão B também possui mais “notas” se comparadas às tradições mais antigas. Segundo Véronèse, essa versão representa o “apogeu da tradição manuscrita da Ars Notoria”.20

O documento utilizado como base para a edição da Versão B do texto foi o manuscrito lat. 9336, da Biblioteca Nacional da França,21 onde Véronèse encontra um “estado

definitivo”22 da versão B. Trata-se de um manuscrito em pergaminho bem preservado, em

formato de códice, relativamente grande23 e com diversas ilustrações.24 O manuscrito é datado

no segundo quarto do século XIV e é proveniente de Bolonha. A Versão B foi a versão

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17 A preocupação a respeito dos demônios que se passam por anjos é antiga: como visto no Capítulo 1 desta tese, ela aparece já em Agostinho e é um ponto importante da argumentação do Speculum astronomie.

18 VÉRONÈSE, J. L’Ars Notoria... op. cit.

19 Ao longo dos séculos XX e XXI, novos documentos foram gradualmente descobertos. Lynn Thorndike identificou, até 1923, pelo menos 17 manuscritos associados à Ars Notoria. Atualmente são conhecidos mais de 50 manuscritos desse texto, sendo mais de 30 do período medieval. Ver, respectivamente: THORNDIKE, L. A History of Magic and Experimental Science: Twelfth and Thirteenth centuries. v. 2. London: MacMillan, 1923. pp. 281-283; GRÉVIN, B.; VÉRONÈSE, J. Les caractères magiques au Moyen Âge (XIIe-XIVe siècle). Bibliothèque de l´École des Chartres. t. 162, n. 2, 2004. p. 334; VÉRONÈSE, J. L’Ars Notoria... op. cit. p. 16. 20 VÈRONESE, J. “La version glosée de l’ars notoria (XIVe s.) au Moyen Âge et ses prolongements à l’époque moderne”. In: Idem. L’Ars Notoria au Moyen Âge et l’Époque Moderne: étude d'une tradition de magie théurgique, XIIe-XVIIe, Thèse de doctorat de l'Université Paris-X, 2004. p. 206. No original: “l’apogée de la transmission manuscrite de l’ars notoria”.

21 O manuscrito foi digitalizado no começo do ano de 2019 e atualmente pode ser acessado pelo portal Gallica. Ver: BnF, lat. 9336. Sacratissima ars notoria. Gallica (Bibliothèque Nationale de France). Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b525108283. Acesso em 15 dez. 2019.

22 VÉRONÈSE, J. L’Ars Notoria... op. cit. p. 20. No original: “l’état définitif”. 23 O manuscrito mede 44cm x 29cm.

analisada nesta tese e o manuscrito lat. 9366 pôde ser consultado presencialmente nos arquivos da Biblioteca Nacional.25

A maioria dos manuscritos atualmente conhecidos são italianos, bem como os mais antigos, o que sugere que a Ars Notoria seja uma obra originalmente escrita em território italiano, muito provavelmente no norte da Itália. Sua circulação no sul da França é atestada: um exemplar da Ars Notoria foi registrado em um inventário feito em 1353 da biblioteca da câmara pontifícia do Palácio de Avinhão.26

4. A segunda fonte analisada no Capítulo 4 foi o Liber Iuratus Honorii ou Livro

jurado de Honório que recebe esse nome — segundo o que é contado no Prólogo da obra —

em razão do juramento de segredo que o leitor supostamente deveria assumir ao receber uma cópia do texto do seu mestre. Honório é seu suposto autor, provavelmente fictício. O Liber

Iuratus também pode ser definido como um manual, no sentido em que ensina e comenta a

prática de determinados rituais. Seu principal objetivo é ensinar o seu leitor a atingir a visão beatífica ou divina (visio divina), ou seja, quer levar o seu praticante ao encontro do próprio Deus ainda em vida. Bastante influenciado pela Ars Notoria, o tratado também prescreve um regime devocional de rituais e orações que deveria ser repetido diariamente ao longo de alguns meses. O texto também aponta para alguns objetivos menos nobres, como encontrar tesouros, provocar o amor das mulheres, ou destruir inimigos.27 Sua definição como uma obra

de “magia” é menos problemática em relação à definição da Arte Notória: o Livro Jurado entende sua própria arte como uma artem magicam, enquadra seus praticantes como magos e lida com espíritos que são declaradamente definidos como demônios.

Atualmente são conhecidas duas tradições textuais deste manual. 1) Uma versão aparece na Summa sacre magice, ou na Suma da magia sagrada, um compêndio de obras de magia escrito por Berengario Ganell, autor provavelmente catalão ou aragonês, na década de 1340. Há evidências da circulação de alguma versão deste texto na região sul da França. Em 1346, um franciscano excomungado chamado Estevão Pepino, foi acusado de se envolver com sortilégios e depôs diante do oficialato de Mende, da região de Auvergne, onde confessou ter adquirido um exemplar do Liber iuratus das mãos de um Berengarius Ganellus. Isso teria acontecido em algum momento entre 1324 e 1344 na região de Perpinhã, fronteira 

25 A visita deu-se na penúltima semana de outubro de 2019.

26 VÈRONESE, J. “Une tradition manuscrite à succès: dénombrement, chronologie et répartition géographique”. In: Idem. L’Ars Notoria... op. cit. pp. 7-8; n. 17.

27 Como visto nos Capítulos 2 e 3 desta tese, estes são, dentre outros, interesses comumente associados aos praticantes das artes mágicas.

do território francês com o catalão. Na ocasião do depoimento, Estevão diz que tinha enviado recentemente o livro a um amigo em Vabres (Alto Loire), também ao sul do território francês.28 Atualmente só resta um único manuscrito em latim deste tratado,29 que ainda não foi

editado e publicado.30 2) Outra versão do Liber Iuratus, aparece em manuscritos de

proveniência possivelmente britânica: atualmente são conhecidos três manuscritos latinos desta versão, sendo dois deles do século XIV.31 Esse corpus textual serviu de base para a

edição integral e sem tradução do tratado por Gosta Hedegard.32 Este autor organiza sua

edição a partir do que definiu como documento “A”, o mais antigo, da primeira metade do século XIV. A edição de Hedegard foi utilizada para análise nesta tese.

Ainda que eventualmente alguns historiadores tenham atribuído o Livro Jurado ao século XIII,33 atualmente há um relativo consenso na historiografia em situar a sua criação no

começo do século XIV: pelo menos dois elementos narrativos, particularmente indicados no seu Prólogo, são indicativos quanto isso. Na abertura do tratado é mencionada a preocupação dos magos a respeito de uma perseguição sistemática provocada pela Igreja à sua arte. Como visto precisamente no Capítulo 2 desta tese — e como será detalhado no Capítulo 3 —, isso não aconteceu de forma generalizada antes do pontificado de João XXII. Quanto às reflexões do Liber Iuratus sobre a visão beatífica, ou seja, sobre a possibilidade de se deparar com Deus ainda em vida, trata-se de uma extensão (ou possivelmente de uma “réplica”, como sugere

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28 MESLER, K. “The Liber iuratus Honorii and the Christian Reception of Angel Magic”. In: FANGER, C. (Ed.). Invoking Angels: Theurgic Ideas and Practices, Thirteenth to Sixteenth Centuries. Pennsylvania: Pennsylvania University Press, 2010. p. 119.

29 O texto atualmente pertence à Biblioteca da Universidade de Kassel (Universitätsbibliothek Kassel), na Alemanha. O manuscrito foi digitalizado e pode ser acessado online. Ver: 4º Ms. astron. 3. Universitätsbibliothek Kassel, Landesbibliothek und Murhardsche Bibliothek der Stadt Kassel Disponível em: https://orka.bibliothek.uni-kassel.de/viewer/image/1343812736802/1/. Acesso em 25 dez. 2019.

30 Uma edição parcial do Prólogo deste manual, com tradução para o francês, pode ser encontrada em: BOUDET, J.-P.; VÉRONÈSE, J. “La Somme de la Magie Sacrée de Bérenger Ganell”. In: BÉRIOU, N. et al. (Org.). Le Pouvoir des mots au Moyen Âge. Turnhout: Brepols, 2014. pp. 17-19. Mais recentemente, em 2019, Damaris Gehr anunciou que está trabalhando em uma edição integral desta Summa. Ver: GEHR, D. A.