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PARTE I. AS DEFESAS E AS CONDENAÇÕES DA MAGIA NA LONGA-DURAÇÃO

CAPÍTULO 1. ENTRE A FILOSOFIA, A CIÊNCIA E A TEOLOGIA: OS ESTUDIOSOS E

1.2. Astrologia e naturalismo árabe

Quando Isidoro de Sevilha estava já no final da sua vida, do outro lado do continente, o que viria a ser uma das principais religiões do mundo começava a surgir. Desde muito cedo, 

41 Isidoro de Sevilha não inaugura essa ideia, mas antes disso, se trata de uma tradição antiga que procurou analisar, nas profecias do mundo antigo, eventuais passagens que anunciassem a vinda do Salvador. Jean-Patrice Boudet fala de um profetismo sibilino, que esteve em voga pelo menos desde o século IV, muitas vezes associado à história póstuma da sibila Tiburtina, que teria profetizado, dentre outras coisas, a vinda de Cristo e também do Anticristo. Ver: BOUDET, J.-P. Entre Science… op. cit. pp. 97-98.

42 KIECKHEFER, R. Magic... op. cit. p. 119. No original: “flood”.

43 Conforme Pierre Boglioni, houve na cultura islâmica um processo de “laicização” das práticas divinatórias, que passaram a ser vistas não sob o olhar da religião ou associadas a uma possível inspiração divina ou demoníaca – e esse último foi o entendimento dominante das tradições cristãs –, mas como uma conquista ou um resultado da ciência ou da técnica humana, o que as tornou, de modo geral, inofensivas ou indiferentes à religião. BOGLIONI, P. L'Église... op. cit. pp. 44-45; ver também: IRWIN, R. “Islamic witchcraft and magic”. In: GOLDEN, R. M. (Ed.). Encyclopedia of Witchcraft: The Western Tradition. 4 v. Oxford et al: Abc-Clio, 2006. pp. 569-573.

44 BOUDET, J.-P.; WEILL-PAROT, N. Être historien des sciences et de la magie aujourd’hui: apports et limites des sciences sociales. Actes des congrès de la Société des historiens médiévistes de l'enseignement supérieur public, 38ᵉ congrès. Être historien du Moyen Age au XXIe siècle. Île de France, 2007. p. 209. No original: “une pratique sans théorie”.

a história da cultura muçulmana foi de expansão. Surgido na Península Arábica em meados do século VII, o Islã encontrou franco crescimento em direção a diversas regiões, incluindo o norte da África, chegando em menos de cem anos após a morte do seu fundador, Maomé, até a Europa pelo Estreito de Gibraltar. Ao longo desse tempo, o mundo muçulmano encontrou nos textos gregos, preservados no leste de Bizâncio — região também alcançada pelo Islã —, a base das suas conquistas intelectuais, e a partir de traduções e comentários, os desenvolveu ao longo dos séculos VIII, IX e X.45 Adelardo de Bath (c. 1080-c. 1152), um dos mais antigos

estudiosos latinos que se envolveu com a tradução, do árabe, de textos sobre os mais variados assuntos, mas também sobre a astrologia e a magia, nos traz um importante testemunho a respeito disso. Entre 1109 e 1116, Adelardo passou pela Sicília, Espanha e, provavelmente, pelo norte da África e aprofundou o seu contato com a cultura muçulmana, o que acabou por influenciar sua formação intelectual ao longo dos anos seguintes. Em um dos seus tratados,

De eodem et diverso (Sobre o Igual e o Diferente) que escreveu provavelmente neste período,

informou ao seu sobrinho, destinatário do texto, que “aquilo que os estudos na Gália ignoram é revelado para além dos Alpes”46, e que “o que não pode ser aprendido com os latinos, a

Grécia eloquente ensina”47, se referindo a esse conjunto de saberes greco-árabes disponíveis,

até então, apenas muito longe de casa. Adelardo pretendia explicar ao seu sobrinho a respeito de um caminho sinuoso pelo qual aprendeu sobre os estudiosos ou “doutores de diversas regiões”,48 a fim de inspirar seu amor ou paixão (affectum) por esses estudos que seriam, aos

olhos de Adelardo, como preciosidades ou tesouros (gazas).

A circulação de Adelardo e de outros intelectuais por esses espaços foi possível devido a transformações políticas particulares: embora por séculos a Península Ibérica tenha sido governada por muçulmanos, foi apenas depois de uma longa história de avanços e retrocessos entre as fronteiras cristãs e islâmicas que, em 1085, se deu a Reconquista de Toledo, seguida pela retomada da Sicília, em 1091, e de Jerusalém, em 1099, pelas forças cristãs. Segundo Michael Bailey, em todas essas regiões fronteiriças em que havia um contato direto entre civilizações cristãs, judaicas e muçulmanas, muitas vezes as tradições intelectuais serviram como mediadoras entre as fés dominantes. Ao mesmo tempo, diversos pontos da Europa

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45 BAILEY, M. Magic and Superstition in Europe. Lanham et al: Rowan & Littlefield, 2007. p. 92. Ver também: ADAMSON, P. Philosophy in the Islamic World. Oxford: Oxford University Press, 2016.

46 Adelardo di Bath. L’identico e il diverso. De eodem et diverso. Ed. Armando Bisanti e Pietro Palmeri. Palermo: Officina di Studi Medievali, 2014. p. 6; p. 158. No original: “Quod enim Gallica studia nesciunt, transalpina reserabunt”.

47 Ibid. No original: “quod apud latinos non addisces, Graecia facunda docebit”. 48 Ibid. p. 163. No original: “[Itineris mei per] diversarum regionum doctores”.

ocidental testemunharam uma “ascensão dramática das escolas”49, o que foi um

desenvolvimento dos centros de estudos dos mosteiros, que se tornam mais abertos, vinculados às catedrais, e que, posteriormente, se transformaram nas universidades. Esses centros de estudos foram frequentemente abastecidos pelos novos materiais que chegaram ao continente europeu graças aos árabes. Kieckhefer reconheceu que os principais beneficiários dessas novas tradições textuais foram os homens treinados nas escolas catedráticas e nas novas universidades emergentes, um monopólio que só começou a ser quebrado de forma significativa a partir do século XIV, quando esses materiais começam a ser traduzidos para as línguas vernáculas, em benefício dos leigos.50

A respeito de uma relação precisa entre os sabres mágicos e esse contexto acadêmico em desenvolvimento, um dos sermões do monge cisterciense Helinando de Froidmont († c. 1220/1230), já da fase final da sua vida, direcionado aos clérigos da cidade de Toulouse, é emblemático: “Eis que os clérigos procuram as artes liberais em Paris, os autores em Orleans, os livros em Bolonha, os frascos [para conter remédios e medicamentos] em Salerno e os demônios em Toledo”, e conclui: “e em nenhum lugar os bons costumes”51. Fazendo uma

referência a esses novos e importantes centros de estudos espalhados pela Europa, Helinando atestou para a fama de Toledo, que perdurou até a modernidade, como centro de estudos mágicos e necromânticos, uma vez associada a influência histórica dos estudos árabes naquela região a esses conhecimentos tidos frequentemente como suspeitos pelos latinos.52

Esses três movimentos em conjunto — o retorno dos clássicos gregos e a contribuição da cultura árabe a partir das traduções junto ao desenvolvimento das escolas e universidades no Ocidente latino — podem ser interpretados nos termos de uma “nova experiência”53 ou de

uma nova forma de entender a natureza, como explica Tulio Gregory, e que se desenvolveu ao longo dos séculos XII e XIII. Em outras palavras, ao longo da Alta Idade Média, teria predominado uma tradição que se acostumou a entender a vida terrena, a natureza e o universo a partir de uma contemplação religiosa, buscando encontrar nesses enquadramentos mensagens espirituais e divinas, explicando os fenômenos muitas vezes nos termos de uma 

49 BAILEY, M. Magic... op. cit. p. 92. No original: “dramatic rise in schools”. 50 KIECKHEFER, R. Magic... op. cit. p. 119.

51 Helinandi Frigidi Montis Monachi... Opera Omnia. Patrologia Latina. Ed. J.-P. Migne. t. 212. Parisiis: 1865, p. 603aC (Lê-se página 603, coluna “a”, identificador C). No original: “Ecce quaerunt clerici Parisius artes liberales. Aurelianis auctores, Bononiae codices, Salerni pyxides, Toleti daemones, et nusquam mores”.

52 Ver: ALEMPARTE, J. F. La escuela de nigromancia de Toledo. Anuario de estudios medievales. v. 13, 1983. pp. 205-268.

53 GREGORY, T. “La nouvelle idée de nature et de savoir scientifique au XIIe siècle”. In: MURDOCH, J. E.; SYLLA, E. D. The Cultural Context of the Medieval Learning. Proceedings of the First International Colloquium on Philosophy, Science and Theology in the Middle Ages. Dordrecht; Boston: D. Reidel, 1973. p. 193. No original: “une nouvelle expérience”.

“vontade de Deus” (voluntas Dei). Porém, nesse novo contexto intelectual, influenciado pela literatura árabe, surge um novo paradigma que procurou estabelecer a causa legítima, a razão ou o significado das coisas (legitima causa et ratio) sem recorrer, de forma imediata, à interferência divina. Como garantiu Gregory, há aqui o desenvolvimento de um novo tipo de naturalismo, em que se descobriu “uma nova dimensão humana em um cosmos que não é mais um tecido de símbolos, mas uma realidade substancial onde se pode ler outras coisas

para além das mensagens espirituais”54 (grifo nosso). Essas outras coisas seriam as causas

(series causaram) ou a cadeia de fatores e influências que existiriam em um cosmos organizado e possível de se compreender a partir da razão, da investigação e da scientia. Essas explicações recorreram mais aos termos próprios da ciência e da física e menos à explicação da atuação imediata de Deus no mundo terreno. Muitas vezes esse conjunto de estudos foi contemplado sob uma categoria genérica, dos naturalia, ou seja, das coisas “naturais”, e não procurava dar conta, necessariamente, das coisas “espirituais”.

Como exemplo dessa nova ratio, que encontrou em Chartres muitos dos seus expoentes, Gregory apontou para Guilherme de Conches (1080-c. 1154). No primeiro livro do seu De philosophia mundi (c. 1130), Guilherme atacou a ignorantia daqueles que “não conhecem as forças da natureza”55 a ponto de se recusarem a fazer certos questionamentos ou

perguntas (inquirere). Quando agem dessa forma, são como os ignorantes ou rusticos. Na direção oposta, insistiu que “se deve procurar por todas as explicações”56 e colocou esse

perigoso pressuposto em prática quando, no mesmo tratado, ao falar da criação do universo, limitou Deus apenas à criação da alma humana e dos elementos. Teriam sido estes últimos, segundo Guilherme, que desencadearam a criação de todo o cosmos. Ele afirma que a matéria ou os corpos “são criação das estrelas”57, mais diretamente, e explicou em detalhes como a

Terra teria se formado a partir do processo de junção e separação dos elementa e, consequentemente, pela influência dos astros recém-criados. A partir disso teriam sido separadas as diferentes zonas da Terra; criados os animais; e, por fim, o ser humano nas figuras de Adão e Eva. E aqui Guilherme rompeu com uma tradição milenar, em nome desse novo entendimento de natureza, ao dizer que “é provável que o corpo da mulher tenha sido

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54 Ibid. No original: “découverte d’une nouvelle dimension humaine dans un cosmos qui n’est plus un tissu de symboles mais une réalité substantielle ou l’on peut lire autre chose que des messages spirituels”.

55 William of Conches, Philosophia Mundi (Liber primus). The Latin Library. Disponível em https://www.thelatinlibrary.com/wmconchesphil.html. Acesso em 21 mai. 2019. No original: “quoniam ipsi nesciunt vires naturae”.

56 Ibid. No original: “in omnibus rationem esse quaerendam”. 57 Ibid. No original: “[corporibus] stellarum creatis”.

feito do barro que estava ao seu lado”58, e não necessariamente da costela de Adão. É isso o

que deveria ser entendido quando as Escrituras dizem que “Deus fez a mulher da lateral (latere) de Adão”. Guilherme concluiu que “não se deve acreditar literalmente que Deus ‘descostelou’ o primeiro homem”,59 porque isso não faria sentido dentro de uma compreensão

física de uma abordagem naturalista do universo. Então, recorrendo a uma explicação nos termos das qualidades e temperaturas da matéria, explicou porque seria verossímil acreditar que a mulher, tal como o homem, viesse do barro, e não dos ossos de outro ser humano, ideia esta impensável sob uma aproximação física, e não fantástica ou miraculosa do cosmos. Anos mais tarde, Guilherme teve de se retratar por esta e outras opiniões, no seu Dragmaticon

Philosophiae (ou Diálogos sobre a Filosofia, c. 1144-c. 1151).

Tulio Gregory afirmou que essa “nova” forma de ver a natureza encontrou na astrologia sua expressão mais significativa. A partir desse “novo” olhar — que, se se representa alguma novidade, é apenas no Ocidente latino —, diversos fenômenos do mundo terreno passaram a ser entendidos sob um complexo sistema causal e que remeteria, de forma encadeada e em algum momento, à ação ou influência dos planetas. Mesmo que, em última instância e de forma indireta, ainda ao Deus criador, que por extensão também teria criado os planetas.60 Em outras palavras, se trata de um gradual afastamento da mão de Deus nas coisas

do mundo e uma maior aproximação a respeito dos poderes que estariam menos distantes da Terra, a saber, a dos astros. É nessa direção que as discussões sobre a magia passam à ordem do dia: partindo muitas vezes das brechas deixadas por Agostinho e Isidoro de Sevilha, intelectuais irão se perguntar, por exemplo: até que ponto essas influxos astrais (caso existissem) poderiam ser identificáveis? Se elas permitiriam o entendimento do passado ou do presente, seria possível também adivinhar o futuro? Poderiam ser manipuláveis para fins específicos? Entre a influência dos planetas e a vontade de Deus, o que viria primeiro? E o que teria mais força?