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PARTE II. A MAGIA ENTRE PERSEGUIDORES E PERSEGUIDOS NO SÉCULO XIV:

CAPÍTULO 3. O CRIME DE MAGIA SOB A INQUISIÇÃO DE JOÃO XXII (1316-1334)

3.6. Controle sobre o procedimento

Em 24 de março de 1339, Bento XII enviou uma carta aos vicários da Igreja da diocese de Manguelonne e a Raimundo Pedro, nobre e senhor de Agoult, da mesma diocese (Caso 21). O papa revela saber que três mulheres — Michele, Ermeniarda e Agnetem — “afirmadamente sortílegas e maléficas”177 foram julgadas e condenadas no castelo de

Raimundo pelos juízes seculares daquela região. Isso teria sido feito em detrimento (in

preiudicium) do inquisidor de Carcassonne, da diocese vizinha, que teria jurisdição legítima

para tratar do caso, dado o gênero das acusações. “Certos das razões para tanto, nós queremos 

175 AAV. Reg. Vat. t. 132, n. 94, fol. 29r. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 257. No original: “superstitiosa et dampnabilia cum eodem diabolo verbo et opere horribiliter committendo”.

176 Ibid. p. 258. No original: “punire ac corrigere penitentiasque ipsis imponere studeas, sicut iusticia exigent, cum temperamento tamen misericordie”.

177 AAV. Reg. Vat. t. 127, n. 306. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 259. No original: “ut asseritur, sortilegas et maleficas”.

este processo e a sentença dada”178, exige o papa, reivindicando o caso para Avinhão. Cerca

de duas semanas depois, o pontífice escreve ao já mencionado inquisidor de Carcassonne, informando-o das suas determinações e pedindo que envie para a Santa Sé os documentos a respeito de qualquer coisa que tenha feito em relação ao caso das mulheres anteriormente mencionadas. “Que não seja tentado nada contra esta nova convocação e nem antecipem nada”, escreve o papa, e ainda alerta:

Que sejam invalidadas e desconsideradas as decisões se, diferente disso, vós ou quaisquer um dos vossos, conscientemente ou não, tentarem alguma coisa a respeito desse processo.179

Esse trecho nos permite supor que o inquisidor de Carcassonne estivesse, talvez, ciente do que aconteceu no castelo de Agoult. No mesmo documento, Bento XII ordena que o seu destinatário faça com que sejam libertadas todas as pessoas que estiverem presas em razão dos mandatos civis.

Em 21 de fevereiro do ano seguinte é escrita outra carta pelo pontífice, desta vez ao bispo de Manguelonne, em que ele retoma o conteúdo das cartas anteriores e diz que suas determinações não foram cumpridas. “Entendemos que algumas das nossas cartas já mencionadas foram impedidas e ignoradas de forma maliciosa, de modo que até agora não foi executado nenhum mandato”180. Insiste que o bispo faça valer suas decisões e ainda revela

estar informado a respeito da “falsificação que o juizado secular fez a respeito do processo já mencionado”181, pedindo que também isso fosse enviado a Avinhão com rapidez, sem demora

(non postponas).

Há pelo menos dois elementos que aqui devem ser considerados: primeiro, esses documentos mostram que o controle reivindicado sobre os corpos não ocorreu apenas pelos excessos dos inquisidores, mas também por parte dos tribunais leigos que, ao reivindicarem a autoridade sobre os casos de malefício e sortilégio, foram vistos pela Igreja como usurpadores de uma jurisdição que não era a sua. Portanto, há uma disputa entre os poderes eclesiástico e leigo sobre os crimes de magia “com gosto” de heresia. Segundo, as cartas de Bento XII 

178 Ibid. pp. 259-260. No original: “certis ex causis velimus de huiusmodi processu et sententia informari”. 179 AAV. Reg. Vat. t. 127, n. 307; Reg. Aven. t. 53, fol. 143v. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 261. No original: “ne contra revocationem huiusmodi quicquid attemptare vel facere presumatis, ac decernentes irritum et inane si secus super hiis per vos vel quoscumque alios scienter vel ignoranter contigerit attemptari”. 180 AAV. Reg. Vat. t. 135, n. 28, fol. 10r. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 273. No original: “intelleximus aliqui litteras nostras predictas sic maliciose retinuerint et subticuerint usque modo quod nequaquam fuerunt executioni mandate”.

181 Ibid. No original: “[necnon] falsificatione que de ac super processu coram predictis iudicibus secularibus habito facta”.

direcionadas às autoridades de Manguelonne nos fornecem ainda mais evidências de que as determinações dos papas nem sempre eram ouvidas. E o Caso 21 não é inédito nesse sentido.

Em uma carta de 13 de dezembro de 1337, Bento XII repreende um dos seus bispos subordinados por não ter executado suas diversas ordens a respeito do processo de Hervei (Caso 15):

Sobre muitos e diversos artigos contidos nas nossas cartas, expressos seriamente, tu não adentraste, nem qualquer execução fizeste a respeito dessas coisas frente aos nossos mandatos anteriores.182

O papa escreveu apelando à obediência (in virtute obediencie) do bispo para que finalmente execute suas ordens. Podemos identificar nestes Casos 23 e 16, se não uma disputa interna na hierarquia da Igreja, pelo menos episódios de relutância e de resistência, no âmbito local, por parte dos inquisidores e das outras autoridades delegadas. Nesses e em outros processos, representantes da Santa Sé ignoraram as determinações que vinham de Avinhão — as quais possivelmente colocavam em jogo suas posições de poder com as outras autoridades locais.183 Dito de outra maneira, esses documentos apontam alguns limites para o que

acontecia na prática, no cotidiano dessas investigações, a despeito da retórica ortodoxa de uma Igreja sempre vigilante e onipotente a respeito das suas ovelhas.

O processo da diocese de Manguelonne (Caso 21) e o recurso de Hervei (Caso 15) são apenas dois dos 14 casos aqui analisados que evocam algum tipo de controle do papado sobre os inquisidores. Em relação ao conjunto dos 26 processos estudados neste capítulo, o recurso da supervisão aparece em mais da metade dos documentos. Essas interferências podem se apresentar de diversas formas, sendo as mais recorrentes:

1) A reivindicação dos processos que, até então, se desenvolviam na diocese local, à jurisdição de Avinhão.

2) O incentivo para que os processos fossem agilizados e logo encerrados no âmbito local.

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182 AAV. Reg. Vat. t. 124, n. 503; Reg. Aven. t. 51, fol. 298v. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 255. No original: “de aliis pluribus et diversis articulis in eisdem litteris nostris contentis seriosius et expressi. te non intromiseris; nec aliquam executionem feceris super eis, in premissorum mandatorum nostrorum contemptum”. 183 Na maioria das vezes, nossos indícios dos conflitos locais são apenas circunstanciais. Em 24 de abril de 1335, por exemplo, Bento XII escreve ao bispo de Paris a fim de tratar do clérigo Guerino, acusado de ter realizado sortilégios e malefícios (Caso 14). O pontífice pede que sejam remetidas à Avinhão as atas dos processos que envolvessem este clérigo, especialmente – enfatiza o papa – aquilo que ele planejou contra pessoas de categoria social elevada (presertim quia contra certas excelentes personas machinatus). Ver: AAV. Reg. Vat. t. 130, n. 161, fol. 32. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 222

3) A insistência dos papas para que suas determinações fossem cumpridas, a despeito de serem eventualmente ignoradas.

Ao mesmo tempo, também parece ser possível identificar um número significativo de casos que apontam para alguma forma de concessão, por parte do papa, da auctoritate

apostolica a fim de tratar dos acusados do maleficium e de seus crimes relacionados. Há um

total de 16 processos marcados por algum tipo de delegação ou de comissionamento, o que ultrapassa os 65% do total dos casos aqui estudados. Isso geralmente ocorre a partir da atribuição de religiosos da própria diocese em que ocorreram os crimes, ou das dioceses vizinhas, para atuarem como inquisidores. Suas funções comumente giram em torno de uma tríade de deveres: a investigação e a condenação-correção. No Caso 17, por exemplo, isso aparece de forma literal em uma única frase: Bento XII escreve a Guilherme Lombardo para que investigue os suspeitos de malefícios e heresias, “inquirindo e procedendo em direção a estes, corrigindo e punindo”184 (grifo nosso), o que só poderia ser executado a partir do

privilégio concedido, autorizado (privilegia... concessa) pela Santa Sé. Em outras palavras, na visão geral dos casos, podemos identificar um paradoxo: há delegação e concessão ao mesmo tempo em que há supervisão e controle na maioria dos processos direcionados aos praticantes da magia.

Outros exemplos a seguir.

Em 1326, João XXII escreve ao cardeal Bertrando a fim de encarregá-lo como inquisidor no caso de um cônego de mesmo nome, da cidade de Limoges, conhecido publicamente por realizar malefícios e invocar demônios (Caso 9). Nesta carta, o pontífice lista algumas atribuições. Pede que seu cardeal “inquira sabiamente a respeito da verdade”185,

se tratando de um comissionamento feito por voz viva (comissimus viva voce) — o que quer dizer que foi uma atribuição promulgada oralmente perante certa audiência ou congregação antes de ser documentada na forma de littera. Pede também que Bertrando apure ou investigue (exquisite) as coisas ao seu redor de modo a decidir a respeito da absolvição ou condenação (absolvendo vel condempnando) do referido cônego. Essa relativa autonomia, no entanto, é acompanhada de certa pressa da Santa Sé: “considere finalmente encerrar esses negócios já mencionados”186, o que demanda um tipo sutil de supervisão e uma ansiedade para

conter o alcance desses poderes delegados. 

184 AAV. Reg. Vat. t. 131, n. 153, fol. 434r. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 230. No original: “inquirendi et procedendi easque corrigendi et puniendi”.

185 AAV. Reg. Vat. t. 113, n. 1096, fol. 194v. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 113. No original: “ut veritatem solerter inquirere”.

Essa dualidade da autonomia e do controle fica evidente em outro caso: em 1337, Bento XII comissiona os religiosos da diocese de Béziers para que procedam em relação à suposta prática de magia do bispo Guilherme (Caso 19). Dentre suas atribuições, devem inquirir e investigar a verdade a respeito do bispo (episcopi veritatem inquiri), bem como fornecer ou providenciar aquilo que a fama ou reputação dele revelaria (fame provideatur). “Nos compromissamos ao vosso discernimento por esta carta apostólica”187, escreve o papa,

para que fosse “inquirida a verdade de forma diligente, sumária, direta, sem alarde e seguindo as normas do procedimento judicial”188.

Há duas fórmulas nesta passagem que são invocadas de forma recorrente na documentação. A primeira nos permite entender que a littera não deve ser entendida como uma mera correspondência informativa ou um memorando do processo, mas mais do que isso, é uma autorização, um salvo-conduto literalmente de caráter apostólico (apostolica scripta), usado materialmente pelos inquisidores para reivindicar sua jurisdição sobre os respectivos casos que lhes foram delegados. Todas as cartas aqui analisadas possuem essa característica. Em segundo lugar, a fórmula textual do procedimento sumário ou direto189 evoca, segundo

Alain Boureau, um alívio a respeito da exigência das provas para a finalização do processo, uma vez que visava evitar o alongamento do caso por meio dos recursos ou das apelações por parte dos investigados.190 Como no Caso 9, há, portanto, apesar das atribuições, pressa para

que o processo não se alongue, o que revela uma forma de pressão por parte de Avinhão. No final da carta, o papa ainda insiste que seja tudo colocado no inquérito (inquestam vero), e “o que quer que tenha sido feito e encontrado nesse lugar, que seja fielmente e rapidamente transmitido a nós”191 (grifo nosso), o que também sugere um olhar atento da Santa Sé.

Quanto à exigência dos procedimentos sumários, Isabel Iribarren notou que foi uma característica precisa do pontificado de João XXII. Segundo a autora, o papa começou a

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187 AAV. Reg. Vat. t. 132, n. 85, fol. 27. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 245. No original: “discretioni vestre per apostolica scripta committimus”.

188 Ibid. p. 246. No original: “simpliciter et de plano sine strepitu et figura iudicii veritatem diligentius inquiratis”.

189 A ideia de um rito “sumário, direto, sem alarde e seguindo as normas do processo jurídico” (simpliciter et de plano ac sine strepitu et figura iudicii) aparece em pelo menos seis dos processos aqui analisados. São eles os Casos 1, 2, 4, 10, 21 e 26.

190 BOUREAU, A. Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330). Trad. Igor Salomão Teixeira. Campinas: Editora da Unicamp, 2016. pp. 47-48.

191 AAV. Reg. Vat. t. 132, n. 85, fol. 27. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 246. No original: “et quicquid in hac parte feceritis et inveneritis nobis fideliter et celeriter transmittatis.”.

favorecer esses procedimentos no caso das perseguições por heresia, de forma geral, ao custo do que chamou de práticas processuais “mais elaboradas”192.

Como visto até aqui, as apellationes podiam prolongar os processos de forma indeterminada. No entanto, também em relação ao pontificado de Bento XII, parece possível destacar esse interesse.

Há outra fórmula textual que é recorrente nos processos movidos em direção ao crime de magia, ainda que com pequenas variações: “Que os que se opõem e os rebeldes sejam compelidos pela censura eclesiástica e pela autoridade apostólica” (Contradictores et rebelles

per censuram ecclesiasticam auctoritate apostolica compellendi). Essa passagem aparece em

pelo menos oito casos, o que representa quase um terço de todos os processos aqui analisados, sendo a maioria nas cartas de Bento XII.193

A Igreja se utilizou de diversas estratégias para se aproximar dos processos movidos contra o crime do maleficium e as práticas a ele associadas, fosse para evitar a impunidade dos acusados ou para coibir os eventuais excessos dos inquisidores em relação aos casos que se desenrolaram longe da diocese de Avinhão. Algumas vezes, de forma mais explícita, insistiu para que os criminosos fossem punidos com rapidez (puniantur sui sceleritate)194, como no

Caso 4, ou cobrou que os documentos de determinados casos fossem enviados ao Palácio Papal o mais rápido possível (quantocius destinare)195, como no Caso 21. Ainda, em outros

momentos, de forma velada, apelou para o fato de que os inquisidores, nas suas atribuições, teriam “apenas Deus diante dos seus olhos” (solum deum habendo pre oculis)196. Essa fórmula

foi interpretada por Jacques Chiffoleau como uma orientação que pretendia enquadrar o julgamento do inquisidor à lei divina, à ortodoxia, e que ainda tornava possível conservar um espaço oculto, de segredo, no âmago desse novo espaço público do julgamento — espaço público pois a heresia (e também a magia), como visto, era um atentado de proporções coletivas e que se dava contra a sociedade, contra o rebanho; em resumo, contra a coisa pública.197

Em outras palavras, estar na companhia apenas (solum) de Deus pressupõe certa liberdade e autonomia na forma de conduzir o processo. O inquisidor não tem necessidade de 

192 IRIBARREN, I. “From black magic...”. op. cit. p. 57. No original: “[at the expense of] more elaborate procedural practices”.

193 Tratam-se dos Casos 1, 2, 19, 20, 23, 24, 25 e 26.

194 AAV. Reg. Vat. t. 69, n. 963. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 54.

195 AAV. Reg. Vat. t. 127, n. 306/307. In: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. pp. 260/261.

196 Pelo menos três das cartas aqui analisadas evocam essa fórmula textual, com pequenas variações. Tratam-se dos Casos 1, 2 e 14.

197 CHIFFOLEAU, J. “Ecclesia de occultis non iudicat”? L’Église, le secret, l’occulte du XIIe au XVe siècle. Micrologus, n. XIV, 2006. pp. 454-457.

dar satisfações a outras autoridades, a não ser ao Senhor e à Igreja que lhe representa na Terra. Esse relativo espaço lhe faz, por extensão, pelo menos na teoria, ser devedor de certa fidelidade à soberania apostólica que lhe foi emprestada. Além disso, ainda segundo Chiffoleau, essa analogia da visão de Deus ainda serviria como um chamado à conscientia

judicialis, ou à consciência do juiz, para que este realizasse um julgamento justo e correto,

uma vez que Deus lhe acompanharia durante todo o procedimento.198

Essa dimensão do segredo dos processos, que aparece tanto nas exigências de um processo sem alarde ou barulho (sine strepitu) quanto na ideia de um julgamento tendo em vista apenas o Senhor, vai de encontro ao que Michel Foucault, por exemplo, entendeu a respeito da punição no contexto pré-moderno. Foucault explica que entre os séculos XVIII e XIX teria havido uma mudança na forma de punir, se desenvolvendo uma gradual diminuição da “festa” ou da “cena” da punição, atribuindo apenas ao período moderno o surgimento de uma punição mais individualizada, menos pública, e que entraria no campo da consciência.199

O imaginário evocado por Foucault, nessa argumentação, parece ser o das penitências que recorriam ao uso de cruzes costuradas nas roupas dos hereges ou dos cadafalsos que, à frente das igrejas, serviam de palco para fazer os condenados pela heresia serem açoitados pelos sacerdotes. Ou, ainda, sua analogia pode remeter ao espetáculo da fogueira.

Esses recursos da humilhação de fato existiram na Idade Média,200 de modo que

Jacques Chiffoleau sublinha, por exemplo, a dinâmica da “publicização”201 como algo comum

nos casos de heresia. Seria preciso, no entanto, nos perguntarmos: de quais hereges estamos falando? Essa “festa” ou “cena”, como diz Foucault, não parece ter sido uma característica dos processos movidos em direção aos clérigos, que, enquanto praticantes de magia, também eram hereges. Antes disso, seus processos parecem ter tido um desenvolvimento mais discreto, o que ocorreu provavelmente por dois motivos: primeiro, em razão do espaço que os acusados ocupavam na sociedade. Eram pastores, religiosos, desfrutavam dos privilégios eclesiásticos e muitos eram presbíteros, autoridades na hierarquia. Segundo, investir em uma “publicização” (fazendo uso do neologismo de Chiffoleau) desses casos talvez trouxesse mais problemas do que vantagens, uma vez que a fama desses religiosos como magos ou invocadores de demônios muito possivelmente já teria causado estragos o suficiente.

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198 Idem.

199 FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete. 20 ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 12.

200 Ver mais: DEANE, J. K. A History of Medieval Heresy and Inquisition. Lanham et. al: Rowman & Littlefield, 2011. pp. 113-115; AMES, C. C. Righteous Persecution... op. cit. pp. 170-177.

Até agora foi possível identificar pelo menos três diferentes estratégias utilizadas pela Santa Sé que tinham por horizonte a necessidade do controle e da supervisão em relação aos casos de magia que se desenrolavam geograficamente longe do papado:

1) Era possível reivindicar a autonomia do processo para Avinhão;

2) Ocasionalmente, foram reatribuídos novos inquisidores para um mesmo caso em razão dos excessos dos primeiros; e, por fim,

3) Também identificamos a exigência recorrente dos processos diretos, silenciosos e sem apelo.

Há, ainda, outro recurso, que é a atribuição de uma autoridade temporária — outra estratégia que ainda se situa no paradoxo da delegação e do controle. Vejamos dois exemplos. Em agosto de 1320, o cardeal Guilherme, escrevendo em nome do papa João XXII, comissionou os inquisidores de Toulouse e Carcassonne para que investigassem aqueles que no meio da casa de Deus (de medio domus Dei) infectavam o rebanho do Senhor (Caso 6). Essa autorização, naturalmente feita vive vocis, não se dava como resposta à fama de alguém específico, mas servia como um conduto para que esses religiosos procurassem eles próprios pelos que adoravam aos demônios, faziam imagens e desvirtuavam os sacramentos para esses propósitos, dentre outras ações. “Este nosso senhor [o papa] aumenta e estende o poder dado aos inquisidores pela lei, que é o ofício da inquisição contra os hereges, e, pelo seu certo conhecimento, também os privilégios em todos e cada um dos casos já mencionados”202. Essa

prerrogativa lhes foi dada, a princípio, por um tempo indeterminado; segundo Guilherme, até que a Igreja tomasse para si, novamente, o poder de abrir novos processos (quoad usque

duxerit revocandum), o que de fato ocorreu. Cerca de dez anos depois, em 4 de novembro de

1330, João XXII escreve aos arcebispos de Narbonne e Toulouse, bem como ao inquisidor do reino da França, residente em Carcassonne, mencionando a carta escrita anteriormente pelo bispo Guilherme em seu nome (de mandato nostro). Diz saber que, apesar disso, “os erros e as abominações compreendidas nessas mesmas cartas ainda vigoram nessas regiões”203 e

deseja que não sigam se espalhando ou se multiplicando (ne deinceps pullulent). Ordena que todas as inquisições iniciadas desde então, pelos seus próprios destinatários ou pelos seus subordinados (per se vel alium) — outra fórmula que é recorrente na documentação e que nos aponta para o fato de que o processo inquisitorial funcionava como um sistema amplo de 

202 AAV, Reg. Vat. t. 98, n. 2. Apud: VIDAL, J.-M. (Ed.). Bullaire... op. cit. p. 62. No original: “Ipse namque dominus noster prefatus potestatem inquisitoribus datam a jure quoad inquisitionis officium contra hereticos necnon et privilegia ad pretactos casus omnes et singulos ex certa scientia ampliat et extendit”.

203 Ibid. p. 154. No original: “errores et abhominationes in eisdem litteris comprehensi in partibus illis de quibus in litteris ipsis habetur mentio adhuc vigent [nos cupientes super ipsis, ne deinceps pullulent]”.

hierarquias de delegações e de transmissões de funções204 —, fossem rapidamente encerradas

(insimul celeriter compleatis). “Que sejam enviadas o mais cedo possível a nós, fielmente, sob vossos selos, e lacradas”205, exige o pontífice. E para além do encerramento dos processos

que estavam em andamento, estabelece que não fossem iniciados outros: “a respeito das coisas que não começou a inquirir, de modo algum se intrometa, usando como pretexto essas ditas cartas, a não ser que receba outras, de nós, em mandato”206. Aqui mais uma vez fica

evidente o papel das litteras como garantias que, de forma encarnada e materializada, tornam possível tanto o acesso quanto a recusa da autoridade apostólica.