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3 A CIDADE-MUNDO

3.1. A cidade campo de batalha

A modernidade no século XX, como afirma Marshal Berman (1986), corresponde à terceira fase da era moderna, quando “o processo de modernização se expande a ponto de abarcar virtualmente o mundo todo, e a cultura mundial do modernismo em desenvolvimento atinge espetaculares triunfos na arte e no pensamento” (BERMAN, 1986, pp. 16-17). A dinâmica da modernização constitui um perene estado de vir-a-ser. Nesse contexto, uma das primeiras mudanças perceptíveis é a alteração dos espaços e das paisagens. As cidades se ampliaram num rápido espaço de tempo, e o processo de urbanização aconteceu de forma avassaladora, junto com o crescimento da população, da indústria, dos transportes e dos meios de comunicação. Os espaços, que outrora concentravam de forma mais abundante a natureza, passaram a ser exóticos no concreto que os rodeava.

Desse modo, a cidade se tornou sinônimo de desenvolvimento e palco para as manifestações de vários campos do pensamento:

Essa atmosfera – de agitação e turbulência, aturdimento psíquico e embriaguez, expansão das possibilidades de experiência e destruição das barreiras morais e dos compromissos pessoais, auto-expansão e autodesordem, fantasmas na rua e na alma – é a atmosfera que dá origem à sensibilidade moderna (BERMAN, 1986, p. 18).

Em consonância com tal cenário, a literatura do pós-guerra traduzia e expressava os sentimentos de pressa e nervosismo. Na medida em que a cidade se expandia, o indivíduo se fragmentava. A ideia de fragmento já pensada no iluminismo retornou com mais intensidade, pois se os espaços passaram a apresentar uma multiplicidade caótica, isso reverberou no sujeito que, ao refletir sobre sua identidade, fazia uma crítica ao momento social, que objetificava o humano, tornando-o descartável. A atmosfera apresentada despertou a sensibilidade de pensar o homem moderno, destituído de referências.

A cidade grande era e é

parte da fantasmagoria da modernidade, enquanto locus eminente dos seus mitos. Os edifícios e os objetos da metrópole são imagens de sonho porque representam aspirações jamais concluídas. A fantasmagoria urbana apresenta, assim, sua dualidade: tanto é utopia quanto cinismo – espaço da frustração, da inversão e distorção dos sonhos. O desejo pela mercadoria e a concomitante mercantilização do desejo caracterizam as experiências-chave da vida metropolitana, enraizadas na forma-mercadoria: esquecimento, reificação, fetichização (VELLOSO, 2010, p. 42).

Essa falsa imagem de progresso criou um sentimento de frustração e de lugar inacabado. Nesse sentido, a cidade oferece um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que cria uma atmosfera totalmente funcional, maquinária e individualizante,

estimula num indivíduo a memória, misturando esquecimento e lembrança, e permite-lhe a experiência (Erfahrung), num sentido forte – e esse é o movimento produtivo da crítica de Benjamin à arquitetura urbana - , pois, para ele, a rememoração (Eingedenken) liberta as coisas cotidianas do feitiço da mercadoria (VELLOSO, 2010, p. 42).

ou seja, apenas esse processo cíclico no qual o indivíduo se volta para a memória como desencadeamento da experiência é que o eleva ao status de sujeito crítico, e a olhar seu espaço e procurar entendê-lo e se entender dentro dele, pois “A força da imagem dialética está em

que ela oferece ao indivíduo – que observa ou participa de uma dada situação no cotidiano de sua vida urbana – a possibilidade de criticar a realidade” (VELLOSO, 2010, p. 43).

A criticidade proporcionará ao indivíduo a recriação de seu espaço, e sua existência então se apoiará numa maneira de repensar o que funciona ao seu redor; é aí que ele se presta ao papel de observador, porque “A grande cidade realiza a possibilidade do filosofar benjaminiano, em que nada há que não possa ser transformado em objeto de observação minuciosa, e afinal, desenvolvido a partir do cotidiano” (VELLOSO, 2010, p. 43). O que antes estava esquecido ou havia sido engolido pelas transformações da modernidade, ganha agora ressignificações; isso quer dizer de uma tomada de consciência do indivíduo para com as práticas de seu espaço social, pensado e construído de forma coletiva.

Voltando o olhar para a literatura e as outras produções artísticas, esse indivíduo é representado pela figura do poeta. Assim, temos em Baudelaire (1996) diferenças que, ao nosso ver, complementam o “artista” e “homem do mundo”. Segundo ele, o artista é limitado, especialista, enquanto o homem do mundo é amplo, “compreende o mundo e as raízes misteriosas e legítimas de todos os seus costumes” (BAUDELAIRE, 1996, p. 16). O homem teria um espírito universal, e seria dotado de curiosidade, que, para Baudelaire, era “considerada como ponto de partida de seu gênio” (BAUDELAIRE, 1996, p. 17); ele vê a curiosidade como engrenagem para a criação, porque significa um despertar para o mundo. A curiosidade, então, mantém relação direta com o olhar perante o que se vê com ineditismo.

Para quem observa, segundo Baudelaire, “é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo” (BAUDELAIRE, 1996, p. 20). O espírito se mostra incansável em seu processo de busca, e a instabilidade do mundo provoca no indivíduo o estado alerta da curiosidade, o impulso de saber além. Isso constitui, para o observador/artista, a modernidade, que seria “o transitório, o efêmero, o contingente” (BAUDELAIRE, 1996, p. 26), significando metade da arte, “sendo a outra metade o eterno e o imutável” (BAUDELAIRE, 1996, p. 26). Dessa forma, a arte se constitui do antigo e do novo; esse novo é trazido pela modernidade, que só existe porque antes existiu uma tradição antiga da qual se pode partir, de modo que o efêmero e o eterno convergem para um diálogo de originalidade e genialidade.

Quem observa mais aproximações entre homem do mundo e poeta é Antonio Cândido. A folga na forma de compor, que se dá do romantismo para a modernidade, é também um

laceamento de como é visto o sujeito e sua relação com o mundo na literatura. Se no romantismo já existia a relação entre homem e natureza, na modernidade “O deslocamento no espaço e a contemplação da paisagem se associam para estimular a mente, que se põe a pensar e a devanear, repassando o próprio modo de ser, os projetos, as aspirações” (CÂNDIDO, 1993, p. 260). Também aqui o poeta é visto nesse lugar de homem deslocado, no qual o espaço físico é configurado como local de transição. A “poesia itinerante” de que se refere Cândido é mais que o pensamento ou a subjetividade emanados pelo contato com a natureza: “Trata-se da função poética da marcha, o corpo em movimento servindo para espertar a mente” (CÂNDIDO, 1993, p. 261); é o movimento que fomenta o entendimento do mundo. E por entendimento não presumimos aqui linearidade, mas questionamentos, idas e voltas, e descobertas, porque o homem do final do percurso não é o mesmo do começo.

A associação entre homem, natureza e movimento, considerando a cidade como espaço dessa relação, faz com que o indivíduo pense não só sobre sua individualidade, mas sobre sua individualidade acrescida do mundo, isto é, sobre como o homem se situa no meio em que vive, considerando sua existência junto ao espaço e à sociedade. Cândido também ressalta o quanto a experiência está ligada à descrição, afinal, temos a figura do poeta andarilho sob o signo do viajante que, como tal, possui a necessidade do relato. A aproximação entre o homem comum e o homem na condição de poeta ocorre também no seguinte questionamento: enquanto o homem possui incertezas correspondentes ao seu existir no mundo, o poeta possui essas e ainda as incertezas quanto à poesia e o fazer poético.

Outra vertente da poesia itinerante de que fala Antonio Cândido é a “poesia da perspectiva”, que se configura pelo “movimento da vista a partir de um lugar alto” (CANDIDO, 1993, p. 262). É o que faz o Senhor Palomar de seu terraço: com vivência que possui da cidade terrestre, altera sua perspectiva e, consequentemente, sua compreensão sobre ela quando a observa do terraço.

Para Walter Benjamin (2000), algo pertencente a Baudelaire de maneira pessoal mas que não reverbera em sua definição de artista é “o estado de devaneio” (BENJAMIN, 2000, p. 6), que segundo Benjamin é de onde saem as descrições da metrópole. Elas não dizem respeito nem à observação nem à curiosidade, mas pertencem “àqueles que atravessaram a cidade como que ausentes, perdidos em seus pensamentos ou preocupações” (BENJAMIN, 2000, p. 7). Não nos parece ser o Senhor Palomar inclinado ao devaneio, já que em sua

atividade de observação define precisamente seus objetivos iniciais, ainda que eles não se desenvolvam conforme o personagem deseja.

Benjamin também ressalta que em Baudelaire a figura do herói se une à uma expressão de modernidade. Logo, o “herói é o verdadeiro tema da modernité. Isto significa que para viver a modernidade é preciso uma formação artística” (BENJAMIN, 2000, p. 10). Esse herói é, para Baudelaire, o artista, e a representação heróica na ficção é feita através da trajetória do deslocamento e do enfrentamento das adversidades. A modernidade permite a retomada do protagonismo do herói: “Aquilo que o assalariado realiza no trabalho diário não é menos importante que o aplauso e a glória do gladiador na antiguidade” (BENJAMIN, 2000, p. 11), isto é, a condição do herói retorna, seja como fazer poético, seja expressa no enredo. Para Baudelaire, a tarefa do herói era “dar feição à modernidade” (BENJAMIN, 2000, p. 16), por isso a retomada da antiguidade de maneira ressignificada, porque a modernidade evoca a força do clássico.

Michel de Certeau aborda a figura do voyeur no contexto urbano em A invenção do

cotidiano (1998). Ele primeiro cita o caminhante na posição de ver a cidade do alto de um

prédio, com distanciamento, onde elevação e afastamento conferem ao indivíduo o status de voyeur: “Aquele que sobre até lá no alto foge à massa que carrega e tritura em si mesma toda identidade de autores ou de espectadores” (CERTEAU, 1998, p. 170). Essa distância física pode funcionar como um afastamento simbólico no qual se amplia o espaço da percepção; afastar-se é descaracterizar e depois atribuir novos sentidos ao que se vê. É o olhar sempre distanciado que o homem deve ter, ainda que esteja no chão. A distância que permite ver o todo também permite um mergulho na escolha do que se vai observar especificamente.

Fora da visão total, estão inseridos no emaranhado das ruas e de outros espaços citadinos seres que costroem a cidade e que estão dentro dela enquanto experiência. São “caminhantes, pedestres, wandersmänner, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um “texto urbano que escrevem sem poder lê-lo” (CERTEAU, 1998, p. 171).

Mesmo imersos nesse mundo, pouca coisa sabem ou observam dele, pois a venda dos automatismos ignora a interação, o conhecimento, e “tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada” (CERTEAU, 1998, p. 171). A cidade praticamente se compõe de forma autônoma, orgânica, com colagens de fragmentos pertencentes a todos e a ninguém. Assim, é sempre indefinida, por mais que pareça fixa; é o outro estranho do eu. Dessa forma, a cidade exige colaboração de uma

coletividade em sua elaboração, pois “planejar a cidade é ao mesmo tempo pensar a própria

pluralidade do real e dar efetividade a este pensamento do plural: é saber e poder articular”

(CERTEAU, 1998, p. 172, grifos do autor). Nesse sentido, é preciso ver o que há por baixo da superfície, dar visibilidade às camadas do invisível e do silêncio que surgem para reinventar o espaço.

Certeau pensa a cidade como uma tríplice operação: produção de um espaço próprio; construção de um não-tempo ou um sistema sincrônico, não caindo nas armadilhas do que já está posto; criação de um sujeito universal e anônimo que é a própria cidade, identificada e passível da contribuição de todos que a frequentam para tornar-se o que é. Andar pela cidade é também uma forma de fazer a cidade, e o ato de caminhar, ainda segundo o autor, está intimamente relacionado à enunciação porque esta última é

um processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre (assim como o locutor se apropria e assume a língua); é uma realização espacial do lugar (assim como o ato de palavra é uma realização sonora da língua); enfim, implica relações entre posições diferenciadas, ou seja, “contratos” pragmáticos sob a forma de movimentos (assim como a enunciação verbal é “alocução”, “coloca o outro em face” do locutor e põe em jogo contratos entre colocutores) (CERTEAU, 1998, p. 177, grifos do autor).

Ou seja, caminhar e estar nesse espaço é um processo interacional de construção e criação, em que tanto o espaço quanto o homem fornecem mutuamente elementos para isso. A cidade como experiência viva é também espaço de construção do ethos. São características da enunciação pedestre, que a distinguem do sistema espacial, o presente, o descontínuo e o fático (CERTEAU, 1998, p. 177); o caminhante modifica a ordem do lugar, atualizando funções e determinações da matéria existente nele. Essa interação é instável, sofre alterações: “Assim Charlie Chaplin multiplica as possibilidades de sua brincadeira: faz outras coisas com a mesma coisa e ultrapassa os limites que as determinações do objeto fixavam para o seu uso” (CERTEAU, 1998, p. 178). O mesmo acontece com o andante que, na experiência da transformação, desregra os dados espaciais.

A caminhada pela cidade está associada à descoberta por significar também “ter falta de lugar”, sendo “o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio” (CERTEAU, 1998, p. 183). Andar entre os espaços do cotidiano é saber que constantemente ele se transmuta em desconhecido e possibilita o desbravamento. O não-lugar torna a cidade vazia, porque o fluxo de entidades errantes não é o suficiente para preenche-la, e o que

poderia ser um lugar acaba apenas um nome (CERTEAU, 1998, p. 183). Seria necessário, então, uma prática da cidade e pela cidade, e não apenas vê-la como utilitária, porque isso é fragilizá-la enquanto organismo produtor de sentidos. Estar na cidade significa produzir: informações, relatos, identidades; enfim, uma narrativa, um discurso que constantemente reincorpore novidade a esse espaço e aos significantes que a compõem.

A posição não apenas geográfica mas também da ordem do sentir já foi representada pelo próprio Italo Calvino diversas vezes, e é tema constante em pesquisas que veem um reflexo dessa experiência tão cara ao escritor e manifestada em suas obras. Arriscaríamos dizer, inclusive, que, coincidindo ou não com suas vivências pessoais, o estrangeiro e a posição do deslocamento são também temáticas desenvolvidas em sua ficção. Calvino, com o olhar estrangeiro de que fala Maria Elisa Rodrigues Moreira (2013), não deseja pertencer, de fato, a uma cidade, como se fosse de sua posse; o pertencimento surge no sentido da compreensão de determinado lugar a partir do olhar estranho proporcionado pela experiência.

Assim, o comportamento estrangeiro é uma marca pessoal do escritor, e “O olhar estrangeiro faz-se presente, em especial, nos relatos de viagem, ficcionais ou memorialísticos” (MOREIRA, 2013, p. 57). Sentir-se estrangeiro é estar numa posição favorável ao conhecimento e à descoberta. A cidade, com seu caráter simbólico, é o que faz com que o homem se conecte às suas raízes, pois encontra nelas características de seu lugar de origem. Logo, deslocamento, estrangeiro, não-lugar, são palavras-chave da vida de Calvino e costumam aparecer em sua obra ficcional com certa frequência.

Ver como alguém de fora coloca em evidência as relações de diferença entre homens e lugares. Então, qual seria esse lugar “de onde se pode falar como um outro, como um diferente, como um forasteiro” (MOREIRA, 2013, p. 58)? É sobretudo a cidade grande que Calvino escolhe como lugar da diferença, podendo o olhar estrangeiro – inserido principalmente no espaço urbano – surgir de uma questão geográfica ou a partir de mudanças pessoais, isto é, o indivíduo se transforma e, nessa transformação, estaria também o mundo visto como se estivesse se apresentando em sua origem.

Logo, é “a esse lugar de estranheza que Calvino recorre para delimitar aquilo que o orienta” (MOREIRA, 2013, p. 59). No caso de Palomar, essa questão não depende só de um deslocamento geográfico, mas também de como ser estrangeiro em sua própria cidade ou em qualquer lugar que se pensava já dominado, pois “não é o deslocamento espacial que torna possível enxergar a diferença, mas o deslocamento do olhar” (MOREIRA, 2013, p. 65); ou

seja, temos um olhar que perpassa a reconstrução tanto do imaginário quanto do saber fundamentado.

O escritor constrói “geografias narrativas” (MOREIRA, 2013, p. 60) e “traça narrativas nômades, desterritorializa-se” (MOREIRA, 2013, p. 61). Com isso, mostra que o indivíduo pode elaborar uma cartografia íntima, sendo a estranheza do lugar, segundo Moreira (MOREIRA, 2013, p. 59), o fator que o orienta; essa estranheza passa do espaço físico para o pensamento. Nesse processo de construção, a solidão também é vista como estado de reflexão, e promove uma tensão que é própria do aproveitar a viagem. O percurso de Palomar, por exemplo, é traçado predominantemente com o Senhor Palomar disposto a observar sozinho; poucas vezes têm como companhia de observação sua mulher, imagem que no fundo mostra um homem “desamparado, esvaziado, só, cindido e distante” (CASTRO, 2007, p. 89). O interlocutor de Palomar é ele mesmo, e as tensões do questionamento ficam evidenciadas em seu monólogo interior.

A cidade instiga o exercício do olhar e a vivência estrangeira ainda que determinado lugar seja ao indivíduo um lugar conhecido, pois “fazer-se estrangeiro em seu próprio lar pode ser uma forma de garantir que sua voz continue a ser distinta, marcada e possibilitada apenas por seu caráter deslocado” (MOREIRA, 2013, p. 63). O espaço estranho permite a percepção de que ideal e experiência são coisas distintas, posto que a primeira se refere à expectativa, enquanto a segunda às sensações do surpreendente. Em Calvino, “é o olhar estrangeiro que garante a sobrevivência da diferença” (MOREIRA, 2013, p. 64). Assim, o desejo da descoberta está ligado à inclinação para as possibilidades. A viagem serve, então, para despertar o olhar já adormecido pelo costume.

No volume Eremita em Paris – páginas autobiográficas (2006), encontram-se alguns relatos de viagens e memórias de Calvino. São textos escritos, em sua maioria, nos anos 60, quando escritores europeus foram enviados para os Estados Unidos através de bolsa da

Fundação Ford, e correspondiam-se com suas editoras periodicamente – no caso de Calvino,

a Editora Einaudi, na qual também trabalhava. Além disso, estão reunidos textos que tratam de passagens da vida do escritor, dos anos 30 aos anos 80, o que nos faz ver que o ato de se deslocar, fosse por motivos pessoais ou profissionais, era condição que o agradava. Logo, podemos estabelecer uma relação da escrita com o deslocamento, isto é, escrever do longe para o outro distante, sendo esse longe geográfico ou cultural.

Nesses relatos, feitos a partir de geografias distintas, Calvino expõe o seu apreço pela metrópole como lugar de acontecimentos múltiplos: “Não sei como é possível escrever numa daquelas cidades em que as imagens do presente são tão arrogantes, tão prepotentes, a ponto de não deixar uma margem de silêncio e de espaço” (CALVINO, 2006, p. 20). A ideia de cidade acabada toma do indivíduo a capacidade de transpor o espaço para o campo do imaginário. Calvino parte do pensamento da cidade enquanto dúvida e propõe que se tire proveito da metrópole em seu potencial exotismo. Essa cidade que traz desconforto e instabilidade é a mesma cidade da construção de novas imagens, de novos pensamentos; é a cidade das incertezas.

A cidade de Calvino está ligada ao comportamento estrangeiro, ou seja, quanto menos se pertence àquela cidade, mais se pode extrair dela. O escritor reconhece essa relação quando fala sobre Paris: “O lugar ideal para mim é aquele em que é mais natural viver como estrangeiro: por isso é Paris a cidade em que me casei, montei minha casa, criei uma filha” (CALVINO, 2006, p. 11); essa percepção individual do estrangeiro modifica ou reafirma o que já foi estabelecido por determinado coletivo. A agitação da metrópole, para Calvino, tem mais a oferecer do que a retirar.

Numa de suas viagens, dessa vez a San Francisco, o escritor relembra Nova York como “o único lugar da América onde nos sentimos no centro e não na periferia, na província” (CALVINO, 2006, p. 101) e acrescenta: “por isso ainda prefiro seu horror a uma beleza de privilégio, suas servidões à liberdades que permanecem locais e privilegiadas e particularistas, que não constituem antítese” (CALVINO, 2006, p. 101). Percebe-se que a cidade grande e sua conturbação oferecem mais ao indivíduo do que a província, que nesse sentido e contexto seria o lugar da qualidade de vida. Logo, a metrópole maltrata o homem ao mesmo tempo em que o faz pensar a respeito de si e de seu lugar.

Em outras passagens da mesma obra, Calvino revela que apenas sente-se bem “nas cidades enormes” (CALVINO, 2006, p. 104) e que possui a “mania de morar no centro de qualquer cidade” (CALVINO, 2006, p. 104). Essa cidade múltipla, que talvez não seja democrática sob o ponto de vista dos aspectos sociais, porque concentra sua funcionalidade e não a descentraliza (é sua própria essência), é democrática na esfera do pensamento, quando não aprisiona o indivíduo a sentidos e sensações pré-moldadas. Assim, a cidade possível de Calvino é uma cidade que “seja a expressão de uma civilização” (CALVINO, 2006, p. 133), ou seja, viva, pulsante.

Na próxima seção, discutiremos como a metrópole pode desencadear o estranhamento, e como esse pode ser parte constituinte da aventura, posto que propõe o olhar em situação de ineditismo.

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