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3 A CIDADE-MUNDO

3.3. Palomar citadino: descrição

Novamente e com mais destaque aparece o terraço de Palomar na narrativa intitulada

Do terraço; é um lugar fixo, que não possibilita grandes movimentos de distância, porém é

predisposto à observação. A natureza está presente na visitação dos pássaros e nas plantas que Palomar cultiva. Logo, surgem os incômodos pombos, que não pertencem à categoria dos pássaros, igualados ao homem sob a adjetivação de desprezíveis; eles alteram negativamente a paisagem e não são considerados natureza por Palomar, são obstáculo. A mudança na configuração do espaço e no modo de vida alterou não só o “funcionamento” dos pombos, mas o modo como a sociedade passou a vê-los.

Ai colombi il cui volo rallegrava un tempo le piazze è succeduta una progenie degenerata e sozza e infetta, né domestica né selvatica ma integrata nelle istituzioni pubbliche, e come tale inestinguibile. Il cielo della città di Roma è da tempo caduto in balia della sovrappopolazione di questi lumpenpennuti, che rendono la vita difficile a ogni altra specie d'uccelli intorno e opprimono il già libero e vario regno dell'aria con le loro monotone spennacchiate livree grigio-piombo. Stretta tra le orde sotterranee dei topi e il greve volo dei piccioni, l'antica città si lascia corrodere dal basso e dall'alto senza opporre più resistenza che altravolta alle invasioni dei barbari, come vi riconoscesse non l'assalto di nemici esterni ma gli impulsi più oscuri e congeniti della própria essenza interiore.67

A localização é nominada: Roma. Os pombos são interferências na paisagem, na organicidade, para as rotas pássaros. É como se o pombo fosse o homem, o representante do homem no reino das aves, analogia que revela o aspecto moderno da destruição. Assim como a cidade é mecânica (ou as pessoas fazem isso dela), os pombos também são. O padrão de cor já se altera em relação às férias de Palomar, pois aqui tudo é cinza, e tal imagem surge muito forte durante a leitura. Nas férias nos parece que as cores são vibrantes e iluminadas; na cidade, todas elas passam antes pelo bege, cinza, ocre; no mundo, pertencente à última parte, ganha tons envelhecidos.

Temos a cidade como campo de batalha, comprimida entre o céu e o chão, bastante marcada por uma passagem de tempo: aquela cidade resiste, apenas trocando seus atores, que se alteram no percurso da história; a essência da cidade é a sua capacidade de se reerguer e, assim, é metáfora para narrativa, para trajetória. Sobre isso, Palomar diz que a cidade vive do acordo entre as velhas pedras e a vegetação sempre nova (p. 49), e imaginamos que seja justamente essa transformação contínua a sua relação com a natureza e a história. Novamente, por situar a cidade num espaço-tempo que estabelece ligações com diversos períodos da humanidade, podemos perceber a escolha do vocabulário: bárbaros, ilha, inimigos, território, divindades.

67 Às pombas cujo voo outrora alegrava as praças sucedeu-se uma progênie degenerada, indecorosa e infecta, nem doméstica nem selvagem mas integrada nas instituições públicas, e como tal inextinguível. Há tempos o céu da cidade de Roma caiu no poder das superpopulações desses lumpempenugentos, que tornam a vida difícil para qualquer outra espécie de pássaros em torno e oprimem o reino outrora livre e variado do espaço com suas monótonas e despenadas librés cinza-chumbo. Comprimida entre as hordas subterrâneas dos ratos e o voo pesado dos pombos, a antiga cidade se deixa corroer por baixo e por cima sem opor maior resistência do que a que opunha em outros tempos às invasões dos bárbaros, como se nisso reconhecesse não o assalto dos inimigos externos mas os impulsos mais obscuros e congênitos da própria essência interior

O terraço é um lugar privilegiado para a observação pois a cidade, embora costumeira e cotidiana, é desconhecida, e o terraço é um bom lugar para tentar entendê-la, visto que se encontra numa posição elevada. Terraço com funções diferentes para a família, e relações também diferentes; mesmo a fixidez assume possibilidades. Nesse contexto, espantar os pombos é a ajuda que Palomar oferece para as batalhas que existem no campo citadino, visto que eles são inimigos a serem extintos. Enquanto isso, os outros pássaros são “mensageiros de divindades amigas”, comunicação intermediada pela natureza, chamamentos e avisos divinos, os mesmos usados nas narrativas de aventuras; estão presentes o conceito de mensagem, aviso e premonição muito fortes, o que aponta para um diálogo com os antigos.

Se sulla terrazza si posano uccelli diversi dai piccioni, il signor Palomar anziché cacciarli dà loro il benvenuto, chiude un occhio su eventuali guasti prodotti dai loro becchi, li considera messaggeri di divinità amiche. Ma queste apparizioni sono rare: una pattuglia di corvi qualche volta s'avvicina punteggiando il cielo di macchie nere, e propagando (anche il linguaggio degli dèi cambia coi secoli) un senso di vita e d'allegria. Poi qualche merlo, gentile e arguto; una volta un pettirosso; e i passeri nel solito ruolo di passanti anonimi. Altre presenze di pennuti sulla città si lasciano avvistare da più lontano: le squadriglie dei migratori, in autunno; e le acrobazie, d'estate, di rondoni e balestrucci. Ogni tanto dei gabbiani bianchi, remando l'aria con le lunghe ali, si spingono fin sopra il mare asciutto delle tegole, forse sperduti risalendo dalla foce le anse del fiume, forse intenti a un rito nuziale, e il loro grido marino stride tra i rumori cittadini.68

Os Pássaros agora fazem a função de deuses; são raros, são aparições mágicas em meio à confusão da cidade: anche il linguaggio degli dèi cambia coi secoli69. Na jornada de

Palomar, que conta com a sua irritabilidade de homem maduro e afetado pela modernidade, alguns aspectos da natureza, como algumas espécies de pássaros na cidade, dão “un senso di vita e d'allegria”70. Pássaros, considerados mensageiros e livres por serem capazes de voar,

mostram também o sentido de deslocamento, de passagem, de não pertencimento.

68 Se no terraço pousam outros pássaros que não os pombos, o senhor Palomar em vez de caçá-los lhes dá as boas-vindas, faz vista grossa a eventuais estragos provocados por seus bicos, considerando-os mensageiros de divindades amigas. Mas essas aparições são raras: uma patrulha de corvos às vezes se aproxima pontilhando o céu de manchas negras e propagando (até a linguagem dos deuses muda com os séculos) um sentido de vida e de alegria. Também algum melro, gentil e arguto; certa vez um pintarroxo; e os passarinhos no seu papel costumeiro de passantes anônimos. Outras presenças de plumígeros sobre a cidade se deixam avistar mais ao longe: as esquadrilhas dos migradores, no outono; e as acrobacias, de verão, das andorinhas e colibris. Vez por outra gaviões brancos, remando no ar com suas longas asas, se arremessam sobre o mar enxuto das telhas, talvez perdidos remontando desde a foz às margens do rio, talvez entregues a um rito

nupcial, e seu grito marinho silva entre os rumores citadinos (CALVINO, 1994, pp. 50-51).

69 “Até a linguagem dos deuses muda com os séculos” (p. 51)

Temos imagens cheias, que vistas em seu todo são unas; céu-mar, cidade-mar. Palomar está em voo e ver de cima é o mais próximo que há de ver o todo. Segundo o narrador, Palomar vê melhor a cidade porque além de ver de cima, possui a experiência – tem o conhecimento a partir do solo. Só considerando sua posição atual, não conseguiria ver a cidade por dentro, isto é, de cima, possui a ideia geral, e de dentro, a ideia “total”, pois une o pensamento sobre aquilo mais a experiência.

La forma vera della città è in questo sali e scendi di tetti, tegole vecchie e nuove, coppi ed embrici, comignoli esili o tarchiati, pergole di cannucce e tettoie d'eternit ondulata, ringhiere, balaustre, pilastrini che reggono vasi, serbatoi d'acqua in lamiera, abbaini, lucernari di vetro, e su ogni cosa s'innalza l'alberatura delle antenne televisive, dritte o storte, smaltate o arrugginite, in modelli di generazioni successive, variamente ramificate e cornute e schermate, ma tutte magre come scheletri e inquietanti come totem71.

A descrição da cidade é feita de forma amontoada. A cidade se constitui, em sua existência e estrutura, de maneira irregular, imperfeita, com funcionalidades à mostra, e é nessa desordem que se faz viva. Há também a descrição do terraço dos outros e suas funcionalidades, todos interligados, dando a ideia de continuidade. A cidade possui uma multiplicidade de cores, formas, construções. Os telhados formam um todo (ideia de crosta terrestre) e essa superfície vista por Palomar é rica e profusa, inesgotável. Vê-la é preparar-se para o chão, e o chão é a dimensão do específico. Não fosse o terraço, Palomar não presenciaria isso, ou seja, não fosse o distanciamento tomado para ver de outra forma que não a habitual.

Como já vimos, algumas observações de Palomar acontecem com frequência e fazem parte de sua rotina. Mais uma vez temos a coisa observada em relação a Palomar, isto é, o fenômeno vai até ele; o que altera um pouco a percepção é descrição do lugar de uma forma diferente, pois influencia para que seja visto de forma não habitual. É o que acontece em A

barriga do camaleão.

71 A verdadeira forma da cidade está neste sobe e desce de tetos, telhas velhas e novas, arqueadas ou planas, chaminés estreitas ou corpulentas, latadas de cânulas e varandas de eternit ondulado, gradis, balaustradas, pequenas pilastras amparando vasos, reservatórios de água metálicos, águas-furtadas, claraboias de vidro, e sobre tudo isto se ergue a mastreação das antenas televisivas, retas ou tortas, esmaltadas ou enferrujadas, em modelos de gerações sucessivas, variadamente ramificadas em chifres ou esgrimas, mas todas magras como

O camaleão aparece para Palomar segundo certas condições, e tudo está relacionado: Palomar > janela de vidro > luz > camaleão > insetos. É um ritual cotidiano, com coisas pré- definidas que marcam seu acontecimento. Esse ritual, e outros que ocorrem na maioria das observações realizadas na cidade, altera a vida de Palomar; é o que podemos ver quando, por exemplo, desloca as cadeiras de lugar no intuito de ver melhor, observar mais de perto:

ogni sera, appena s'accende la luce, il geco che abita sotto le foglie su quel muro, si sposta sul vetro, nel punto dove splende la lampadina, e resta immobile come lucertola al sole. Volano i moscerini anch'essi attratti dalla luce; il rettile, quando un moscerino gli capita a tiro, lo inghiotte72.

Um dilema: prestar atenção na tv ou no camaleão? tecnologia ou natureza? enquanto a televisão ela mesma se mobiliza para dar explicitamente o que quer que vejamos, o camaleão nos força a extrair algo do processo de observar. Até quando quer definir como a televisão funciona, o narrador utiliza algo que remete a deslocamento; o camaleão fixo, estático, também emite informações:

La scelta tra televisione e geco non avviene sempre senza incertezze; i due spettacoli hanno ognuno delle informazioni da dare che l'altro non dà: la televisione si muove per i continenti raccogliendo impulsi luminosi che descrivono la faccia visibile delle cose; il geco invece rappresenta la concentrazione immobile e l'aspetto nascosto, il rovescio di ciò che si mostra alla vista73.

A descrição do funcionamento do camaleão é um espetáculo realizado pelo narrador. O abrir e fechar de uma flor são relacionados às patas do camaleão, o que dá a ideia de ciclo ou movimento da vida - movimento e parada do homem - ir e ficar, fixar-se e locomover-se. A “impressão digital” das patas do camaleão no vidro, sempre aproximando o animal do homem, e a identidade ligada ao estar-no-mundo; a anatomia do camaleão é conforme sua existência, seu existir. A relação com a origem do humano é sempre evidenciada, em vários

72 toda noite, logo ao acender-se a luz, o camaleão que mora sob as folhas embaixo desse muro se coloca sobre o vidro, no ponto onde a lampadazinha esplende, e ali permanece imóvel como uma lagartixa ao sol. Os insetos voam, também atraídos pela luz; o réptil, quando um inseto lhe passa ao alcance, engole-o

(CALVINO, 1994, p. 53).

73 A escolha entre a televisão e o réptil não ocorre sem incertezas; os dois espetáculos têm cada um deles informações para dar que o outro não transmite: a televisão se move pelos continentes recolhendo impulsos luminosos que descrevem a face visível das coisas; o camaleão ao contrário representa a concentração imóvel

capítulos, e todo elemento da natureza que chega a Palomar o leva a refletir sobre períodos longínquos da história, da formação da humanidade; isso é perceptível pelas analogias feitas pelo narrador. O movimento do camaleão, parece, pela descrição, ser calculado, mecanizado, pensado; a aderência do camaleão ao vidro pode significar a aderência da vida ao mundo material, atração como um imã.

Le zampe ripiegate sembrano, più che tutte ginocchio, tutte gomito, molleggiate a sollevare il corpo. La coda aderisce al vetro solo con una striscia centrale, dove prendono origine gli anelli che la fasciano da una parte all'altra e ne fanno uno strumento robusto e ben difeso; il più del tempo posata torpida e neghittosa, pare non abbia altro talento o ambizione che di sostegno sussidiario (nulla a che vedere com l'agilità calligrafica delle code delle lucertole), ma all'occorrenza si dimostra reattiva e bem articolata e anche espressiva.

Del capo sono visibili la gola capace e vibrante, e ai lati gli occhi sporgenti e senza palpebra. La gola è una superficie di sacco floscio che s'estende dalla punta del mento dura e tutta scaglie come quella d'un caimano, al ventre bianco che dove preme sul vetro presenta anch'esso una picchiettatura granulosa, forse adesiva74.

A percepção de Palomar ronda a dualidade que há entre aceitar a modernidade e não perder a essência que não precisaria mudar de todo com o progresso. Há relações entre Camaleão e habitat, camaleão e caça. O camaleão ali, “invadindo” o espaço de Palomar, é seu contato com a primitividade. Como é de sua natureza, o Camaleão assume diversas posturas de acordo com suas necessidades, como age o homem ou o herói da aventura perante o imprevisto: “língua isenta de forma e capaz de assumir qualquer forma”.

A lâmpada e o vidro conferem à observação de Palomar tanto um aspecto selvagem quanto um aspecto laboratorial, de pesquisa científica, de investigação total (raio x). Palomar agora é um cientista que estuda o bicho: “Se ogni materia fosse trasparente, il suolo che ci sostiene, l'involucro che fascia i nostri corpi, tutto apparirebbe non come un aleggiare di veli

74 As patas contraídas parecem, muito mais que joelhos, mais que cotovelos, molejos destinados a soerguer o corpo. A cauda adere-se ao vidro apenas por uma estria central, de onde se originam os anéis que a enfeixam de um lado e de outro, dela fazendo um instrumento robusto e bem protegido; na maior parte do tempo, pousada indolente e preguiçosa, parece não ter outra habilidade ou ambição que não seja a de sustentáculo subsidiário (nada a ver com a agilidade caligráfica da cauda das lagartixas), mas no momento oportuno demonstra reagir bem, ser bem articulada e até mesmo expressiva.

Da cabeça são visíveis a ampla goela vibrante, e dos lados os olhos saltados e sem pálpebras. A goela é uma superfície de saco frouxo que se estende da ponta do queixo dura e toda feita de escamas como a de um jacaré ao ventre branco que ali nas partes em que se comprime contra o vidro apresenta também ele um

impalpabili ma come un inferno di stritolamenti e ingerimenti”75. As inconsistências que se

escondem atrás da camada de superfície que temos seriam mais visíveis se pudéssemos ver através dela. Nos parece que o homem e as outras coisas vivas, portanto, possuem armaduras, revestimentos, e há um contraste entre o que o camaleão é e o que ele aparenta ser; estrutura de armadura mecânica (costas) ao mesmo tempo que é gelatinoso (barriga).

La segmentazione ad anelli di zampe e coda, la picchiettatura di minute piastre granulose sul capo e sul ventre dànno al geco un'apparenza di congegno meccanico; una macchina elaboratissima, studiata in ogni microscopico dettaglio, tanto che viene da chiedersi se una tale perfezione non sia sprecata, viste le operazioni limitate che compie76.

A posição dos olhos do camaleão privilegia alguns pontos em detrimento de outros, e o próprio ato de olhar faz isso. Qual o funcionamento não banalizado das coisas que observamos? Apesar do olho selecionar o que vê, podemos ir além de um olhar viciado em ver as coisas do mesmo jeito sempre. O camaleão faz mais do que pode ou limita-se a seus costumes mecanizados? Palomar vê o funcionamento de uma máquina através de um réptil, e pensa, a partir do camaleão, como é a existência dos seres diferentes dele, homem. A analogia com Eurídice indica a presença do mito, a ideia de caminho para o fim, de trajetória acabada.

Extrapolando o terraço de Palomar, entramos na cidade propriamente dita através das compras da personagem, que sai em busca de Um quilo e meio de confit de canard. Palomar está em Paris e entra numa charcuteria. Observamos a divisão e categorização da comida vendida em vidros e etiquetas; Palomar está numa loja-museu. Os animais visto de outra forma, colocados em potes, agora são caça, são vistos em valores de medida (peso, quantidade). As partes do pato que Palomar pretende comprar são postas em conserva: coxa e asa, membros de locomoção. O mundo é contido e classificado nos potes, permitindo estudos de viés antropológico e biológico.

75 “Se toda matéria fosse transparente, o solo que nos sustém, o invólucro que enfaixa os nossos corpos, tudo apareceria não como um adejar de véus impalpáveis mas como um inferno de ingestões e de trituramentos”

(CALVINO, 1994, p. 55)

76 A segmentação dos anéis das patas e da cauda, o mosqueado das diminutas lâminas granulosas da cabeça e do ventre emprestam ao camaleão uma aparência de engenho mecânico; uma máquina elaboradíssima, estudada nos mais microscópicos detalhes, a ponto de se poder indagar se uma tal perfeição não será

Aspettando in fila, il signor Palomar contempla i flaconi. Cerca di trovare un posto nei suoi ricordi per il cassoulet, pingue stufato di carni e di fagioli, di cui il grasso d'oca è ingrediente essenziale; ma né la memoria del palato né quella culturale gli sono d'aiuto. Eppure il nome, la visione, l'idea lo attraggono, risvegliano un'istantanea fantasticheria non tanto della gola quanto dell'eros: da una montagna di grasso d'oca affiora una figura femminile, si spalma di bianco la pelle rosa, e già lui immagina se stesso facendosi largo verso di lei tra quelle dense valanghe e abbracciarla e affondare com lei77.

O estabelecimento na metrópole é bem frequentado, tumultuado, templo em visitação; faz recordar o segmento do zoológico em que os bichos mortos ficam conservados para exposição e pesquisa. A preservação do estabelecimento suscita memória; o entorno muda, mas conserva características próprias que o situam no espaço-tempo. Há uma reflexão sobre a tradição que se vai e a que se inicia: o que persiste em meio às mudanças? O narrador discorre sobre lugares que despertam memórias e experiências passadas, e isso pode ser feito através do auxílio dos sentidos: a visão e a memória que elas evocam se sobressaem em relação ao paladar, que poderia ser ativado pela situação; a memória de uma experiência desencadeia outras imagens.

Uma figura feminina vista no pato: ninfa ou deusa, figura mitológica, mensageira para avisos, sorte. Logo, temos lugar, animal, alimento, signo feminino. Expostos, temos as carnes classificadas segundo uma funcionalidade: nome (signo), visão (significante), ideia do animal no vidro (significado). O ambiente transporta Palomar para um lugar originário, e tal ação se evidencia pelo pensamento de perseguição homem-animal, homem-mulher, animal-mulher; é o humano visitando o seu primitivo.

Há diferenças entre a caça selvagem, rústica, e a caça com a intervenção da civilização: na última temos corte, armazenamento, comercialização, preparo, etc. O narrador fala “escapadas e voos se fixam”, isto é, o movimento de interrupção da vida. Palomar está num museu antropológico, mas também de arte; a comida é o homem e é a coisa produzida por ele, manipulada, expressão artística; associação com música, cultura, e aqui dois sentidos de cultura: o de cultivo e o de manifestação do modo de viver de um povo. Imaginar esses

77 Esperando na fila, o senhor Palomar contempla os frascos. Procura encontrar um lugar em suas recordações para o cassoulet, gordo guisado de carnes com feijão, de que a gordura de pato é ingrediente essencial; mas nem a memória do paladar nem a memória cultural lhe vêm em auxílio. Contudo, o nome, a visão, a ideia o

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