• Nenhum resultado encontrado

4 O MUNDO É UMA COLEÇÃO

4.2. Palomar mundano: reflexão

Palomar vai ao Japão visitar “o jardim de pedras e areia do templo Ryoanji de Quioto” (p. 85) em O canteiro de areia. Dentro desse lugar, observa outro, um pátio e, no pátio, observa areia e árvore. O primeiro elemento que nos chama a atenção aqui é a ênfase na civilização. O uso dessa palavra remete à tradição, continuação, sobrevivência, e relação do ontem com o agora. A visita a uma antiga civilização é encontrar algo que guarda a cultura de um povo, um templo.

A forma do canteiro é um círculo; observação do que aparentemente se tem como simplório. No jardim a atração não são as plantas, e sim as pedras; elas estão posicionadas como se fossem espécies botânicas, expostas para a observação. Logo, observar o jardim é se desinvidualizar e se entregar ao eu-todo, que é o eu mais o mundo, e não um eu que percebe o mundo como algo separado dele; está e é o mundo.

Il recinto rettangolare di sabbia incolore è fiancheggiato su tre lati da muri sormontat i da tegole, oltre i quali verdeggiano gli alberi. Sul quarto lato è una pedana di legno a gradini dove il pubblico può passare e sostare e sedersi. "Se il nostro sguardo interiore resterà assorto nella vista di questo giardino, - spiega il volantino che viene offerto ai visitatori, in giapponese e in inglese, firmato dall'abate del tempio, - ci sentiremo spogliati dalla relatività del nostro io individuale, mentre l'intuizione dell'Io assoluto ci riempirà di serena meraviglia, purificando le nostre menti offuscate". Il signor Palomar è disposto a seguire questi consigli con fiducia e si siede sui gradini, osserva le rocce una per una, segue le ondulazioni sulla sabbia

bianca, lascia che l'armonia indefinibile che collega gli elementi del quadro lo pervada a poco a poco85.

As pedras são ilhas circundadas pela areia branca, o que parece produzir sensações através da imaginação. Mesmo com o ambiente lotado e barulhento, Palomar tenta sentir o vazio e o silêncio de estar sozinho. Tirar os sapatos para estar no jardim é uma marca de tradição e de costume; assim, são os que menos interferem na experiência, porque são deixados de lado. Ao mesmo tempo, há uma preocupação com o lugar pisado oriundo de uma tradição oriental, pois é uma reverência. O lugar, turístico, concentra pessoas que preferem o registro pela câmera fotográfica do que pelo olhar. Os visitantes conferindo o que veem no que está escrito nos panfletos explicativos nos mostra uma crítica à literatura como representação de um real exigente com a fidelidade; também a impaciência desses visitantes contrasta com o equilíbrio, o silêncio e a organização do jardim.

O jardim de pedras é o recorte de um lugar mundano visto de cima. Areia e oceano colocados em posição de semelhança dizem da extensão e da expansão do nada. A imagem que Palomar vê pode ser referente à representação (no sentido de estar no lugar de algo), arte (como é vista determinada coisa), e ao próprio mundo, ele existindo, sem nenhum recorte. Imaginar em movimento a obra que tem por característica ser estática é o contrário de uma mimetização do mundo, é saber que tal obra estabeleceu relações que a fazem sobreviver. Vejamos o que diz o panfleto do templo:

"Possiamo vedere il giardino di sabbia come un arcipelago d'isole rocciose nell'immensità dell'oceano, oppure come cime d'alte montagne che emergono da un mare di nuvole. Possiamo vederlo come un quadro incorniciato dai muri del tempio, o dimenticarsi della cornice e convincerci che il mare di sabbia s'espanda senza limiti e copra tutto il mondo"86.

85 O recinto retangular de areia incolor é flanqueado em três lados por muros recobertos de telhas, acima dos

quais as árvores verdejam. No quarto lado há um estrado de madeira com degraus onde o público pode passar, deter-se ou sentar-se. “Se nosso olhar interior se mantiver absorto na vista deste jardim”, explica o panfleto que é oferecido aos visitantes, em japonês e em inglês, assinado pelo abade do templo, “logo nos sentiremos subtraídos à relatividade de nosso eu individual, enquanto a intuição do Eu absoluto nos preencherá de serena maravilha, purificando nossas mentes ofuscadas.” O senhor Palomar está disposto a seguir esses conselhos com firmeza e senta-se nos degraus, observa as rochas uma por uma, segue as ondulações da areia branca, deixa que a harmonia indefinível que reúne os elementos do quadro o penetre

pouco a pouco (CALVINO, 1994, p. 85).

86 “Podemos ver o jardim de areia como um arquipélago de ilhas rochosas na imensidade do oceano, ou antes

como o cimo de altas montanhas que emergem de um mar de nuvens. Podemos vê-lo como um quadro emoldurado pelos muros do templo, ou esquecer-nos da moldura e convencer-nos de que o mar de areia pode

De Palomar o mundo exige um “eu” sólido do qual ele possa abdicar para se entregar à experiência de observar e de ser um olhar, apenas, que se doe para aquele fim; isso é feito a partir da imaginação, porque o entorno real muitas vezes não colabora com a experiência. Assim, temos uma tríade olhar (eu) + imaginação + experiência que se sobrepõe ao luogo, ao físico, à objetividade.

A interferência de um mundo obrigatório e objetivo ao eu interior quebra seu processo de experiência. O zen, presente na cultura visitada por Palomar, requer que o indivíduo seja privilegiado no sentido de se imaginar completo, o que é raro. Como já foi falado, o início das civilizações deixa rastros em todos os períodos, e na modernidade não seria diferente. Na invasão dos bárbaros presenciada por Palomar, ele busca se adequar às adversidades. Seria fácil para ele caso não existissem as pessoas e o barulho, como pede o jardim, mas o fato da situação estar estabelecida daquela forma reforça sua busca pelo desafio. O jardim em uma situação caótica mostra que, dependendo de quem vê, ele se transforma para a experiência, não é estático. Palomar não deseja o jardim ideal nem a observação ideal; a multidão é areia, é conjunto e ao mesmo tempo única: “Egli preferisce mettersi per una via più difficile, cercare d'afferrare quel che il giardino Zen può dargli a guardarlo nella sola situazione in cui può essere guardato oggi, sporgendo il proprio collo tra altri colli”87.

Parece-nos que, com essas percepções do narrador, vamos sentindo, gradualmente, o afastamento de Palomar do mundo. As dualidades se concentram em o que é fixo e o que é passageiro, o mundo e o indivíduo, formas que o mundo cria e formas que criamos nós. A nossa tentativa é sempre voltada para encaixar o mundo de acordo com o que pensamos e vivemos; o mundo não calcula, mas nós queremos fazer isso o tempo todo, porque sempre estamos em busca de definições.

Em Serpentes e Caveiras, Palomar, junto a um amigo mexicano, visita as ruínas de Tula. Seu amigo é uma espécie de guia, enciclopédia humana, num espaço onde visitar ruínas é visitar o que sobrou. Podem dizer das civilizações: algo construído com peças originais e preservado; algo que sobrou do que um dia existiu. Na descrição das ruínas que Palomar encontra, há relações simbólicas entre elas.

87 “Ele prefere meter-se por um caminho mais difícil, procurar compreender aquilo que o jardim zen lhe pode

oferecer à vista na situação específica em que pode ser observado hoje, esticando o próprio pescoço em meio

Nell'archeologia messicana ogni statua, ogni oggetto, ogni dettaglio di bassorilievo significa qualcosa che significa qualcosa che a sua volta significa qualcosa. Un animale significa un dio che significa una stella che significa un elemento o una qualità umana e cos¡ via. Siamo nel mondo della scrittura pittografica, gli antichi Messicani per scrivere disegnavano figure, e anche quando disegnavano era come scrivessero: ogni figura si presenta come un rebus da decifrare88.

Estão aqui a escrita pictográfica e o desenho, relação escrita-imagem das origens aos dias atuais: qual a nossa concordância com essas linguagens, essas duas formas de expressão? Decifrar o que está pictografado, também a literatura é uma expressão que precisa ser decifrada, nos seus não ditos, nas entrelinhas, nas intertextualidades.

Na noção de origem do indivíduo, estão presentes o seu lugar, o vínculo que mantém com ele, e o significado das coisas segundo suas noções de individualidade e coletividade. O que permanece na linguagem, no modo de se expressar e de pensar de um povo? O narrador descreve as pessoas como se também elas fizessem parte do monumento visitado.

Durante o conto, um professor que acompanha seu grupo de alunos repete a frase “não se sabe o que querem dizer” sempre ao final da apresentação de uma ruína, e podemos pensar em várias suposições: por mais que a humanidade avance em descobertas, sempre vai haver esse mistério que circunda nossa existência? ou uma recusa ao pensamento e à pesquisa (por parte do professor)? uma manutenção do que está posto? um culto ao indecifrável? um respeito aos antigos? O significado que a civilização e a história tem para uns, não tem para outros; a narrativa e seu discurso não funciona para todos. Talvez Palomar, enquanto cruza diversas vezes com o grupo, esteja cruzando com o superficial, enquanto está no lugar do profundo. Há um jogo entre o novo e o velho? entre o começo e o fim da vida? entre a falta de experiência e a experiência acumulada? é nessa caminhada para o fim que Palomar se depara com o início?

Tra le rovine sfila una scolaresca: ragazzotti dai lineamenti di indios, forse discendenti dei costruttori di quei templi, in una semplice divisa bianca tipo boy-scout con fazzoletti azzurri. I ragazzi sono guidati da un maestro non molto più alto di loro e appena più adulto, con la stessa tonda e ferma faccia

88 Na arqueologia mexicana cada estátua, cada objeto, cada detalhe de baixo-relevo significa alguma coisa que significa alguma coisa que por sua vez significa alguma coisa. Um animal significa um deus que significa uma estrela que significa um elemento ou uma qualidade humana, e assim por diante. Estamos no mundo da escrita pictográfica; para escrever, os antigos mexicanos desenhavam figuras, e mesmo quando desenhavam

figuras era como se escrevessem: cada figura se apresenta como um rébus a ser decifrado (CALVINO,

bruna. Salgono gli alti gradini della piramide, si soffermano sotto le colonne, il maestro dice a che civiltà appartengono, a che secolo, in che pietra sono scolpite, poi conclude: "Non si sa cosa vogliono dire" e la scolaresca lo segue giù nella discesa. A ogni statua, a ogni figura scolpita su un bassorilievo o su una colonna il maestro fornisce alcuni dati di fatto e aggiunge invariabilmente: "Non si sa cosa vuol dire"89.

Há uma disparidade existente entre o amigo de Palomar e o professor do grupo, na qual o primeiro se perde em tantas explicações e o segundo se atém à negação em resposta à aparente passividade dos alunos que não o questionam. O mistério de não saber é tão encantador quanto o mistério do saber, da descoberta, de pertencer a determinado objeto ou fenômeno apenas aceitando que ambos coexistem.

Palomar imagina como se fosse ele a estar sem todas aquelas referências, dividido entre os sentimentos de ver pela primeira vez sem saber de nada e ver pela primeira vez carregando uma todas as referências e informações acumuladas durante os anos, sem poder formar sua própria percepção, apesar de seu apreço pelo conhecimento.

O conto em questão é rodeado por perguntas. O comportamento do professor é na verdade o correto, no sentido de que aquilo não fará a mínima diferença para os alunos naquela idade, na juventude, e talvez nunca faça? é isso o que Palomar pensa? Outra vez o narrador toma uma discussão acerca da linguagem: ela não interessa sem o contexto, é como um livro fechado: nada. Existe uma relação de respeito quanto ao saber? uma reverência? A não banalização do que foi construído antes para que exista o agora?

Il signor Palomar, pur seguendo le spiegazioni dell'amico che lo guida, finisce sempre per incrociare la scolaresca e per cogliere le parole del maestro. E' affascinato dalla ricchezza dei riferimenti mitologici dell'amico: il gioco dell'interpretare, la lettura allegorica gli sono sempre sembrati un sovrano esercizio della mente. Ma si sente attratto anche dall'atteggiamento opposto del maestro di scuola: quella che gli era parsa dapprincipio solo una sbrigativa mancanza d'interesse, gli si va rivelando come un'impostazione scientifica e pedagogica, una scelta di metodo di questo giovane grave e coscienzioso, una regola a cui non vuole derogare. Una pietra, una figura, un segno, una parola che ci arrivano isolati dal loro contesto sono solo quella

89 Entre as ruínas desfila um grupo de estudantes: garotos de traços indiáticos, talvez descendentes dos construtores daqueles templos, usando um singelo uniforme branco tipo escoteiro com lenços azuis. Os jovens são guiados por um professor não muito mais alto que eles e pouco mais velho, com o mesmo rosto moreno arredondado e firme. Sobem os outros degraus da pirâmide, detêm-se sob as colunas, o professor diz a que civilização pertencem, a que século, em que tipo de pedra foram esculpidas, depois conclui: “Não se sabe o que querem dizer”, e os estudantes o seguem empreendendo a descida. A cada estátua, a cada figura esculpida num baixo-relevo ou numa coluna o professor fornece alguns dados factuais e acrescenta

pietra, quella figura, quel segno o parola: possiamo tentare di definirli, di descriverli in quanto tali, e basta; se oltre la faccia che presentano a noi essi anche hanno una faccia nascosta, a noi non è dato di saperlo. Il rifiuto di comprendere più di quello che queste pietre ci mostrano è forse il solo modo possibile per dimostrare rispetto del loro segreto; tentare d'indovinare è presunzione, tradimento di quel vero significato perduto90.

As interrupções do amigo provocam a quebra de um não-raciocínio. Palomar vê no seu interlocutor o ridículo do pensamento enciclopédico, do conhecimento acumulado que não pode ser nunca refutado, porque não admite atualizações. As explicações do amigo de Palomar parecem trava-línguas. O desejo que paira na narrativa é o encontro dos alunos com uma luz de conhecimento que não a incerteza fornecida pelo professor, mas há uma balança que regula a ignorância e o conhecimento, ambos fundamentais. Viver se questionando é o fundamento do homem moderno, e foi também a razão do estabelecimento das civilizações. O conhecimento precisa ser algo oriundo da curiosidade, da pesquisa e da necessidade de entender-se enquanto humano.

90 O senhor Palomar, embora acompanhando as explicações do amigo que o guia, acaba sempre por cruzar com os estudantes e entreouvir as palavras do professor. Fica fascinado pela riqueza de referências mitológicas do amigo: o jogo das interpretações, a leitura alegórica sempre lhe parecera um exercício soberano da mente. Mas sente-se atraído também pelo comportamento oposto do professor da escola: aquilo que lhe pareceu a princípio uma expedita falta de interesse aos poucos vai se revelando a ele como uma postura científica e pedagógica, uma escolha de método daquele jovem grave e consciencioso, uma regra a que não quer renunciar. Uma pedra, uma figura, um signo, uma palavra que nos cheguem isolados de seu contexto são apenas aquela pedra, aquela figura, aquele signo ou palavra: podemos tentar defini-los, descrevê-los como tais, só isto; se além da face que nos apresentam possuem também uma outra face, a nós não é dado sabê-lo. A recusa em compreender mais do que aquilo que estas pedras mostram é talvez o único modo possível de demonstrar respeito por seu segredo; tentar adivinhar é presunção, traição do verdadeiro significado perdido.

– Você, que explora em profundidade e é capaz de interpretar os símbolos, saberia me dizer em direção a qual desses futuros nos levam os ventos

propícios? (As cidades invisíveis)

Documentos relacionados