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3 A CIDADE-MUNDO

3.2. A cidade estranha

Em Teeteto, de Platão, Sócrates estabelece um diálogo com Teeteto e Teodoro acerca do conhecimento. Na obra, alia-se o conhecer ao sentir, ou seja, o conhecimento é uma percepção daquilo que se sente; sentir, então, é conhecer. O conhecimento só é possível na relação entre algo ou alguém e outro algo ou alguém, posto que “nada existe em si e por si mesmo, e que cada coisa só devém por causa de outra, sendo preciso, pois, eliminar de toda a parte a expressão Ser” (PLATÃO, 2001, p. 57). 

Logo, conhecer depende de duas partes em contato que permitam gerar uma ideia ou um pensamento sobre algo. No diálogo, Sócrates apresenta a proposição: “se se disser que alguma coisa existe ou devém, será preciso acrescentar que existe ou se forma de alguém ou para alguém ou com relação a alguma coisa. Porém que alguma coisa seja ou se torne por si mesmo, é o que se não deve dizer nem permitir que outros afirmem” (PLATÃO, 2001, p. 62). O outro é necessário para a formação do conhecimento. Essa troca de experiências é, principalmente, um exercício de interpretação, no qual o eu e o outro constroem determinada percepção sobre algo:

um dado indivíduo difere de outro ao infinito, precisamente nisto de serem e de aparecerem de certa forma as coisas para determinada pessoa, e de forma diferente para outra. Quanto à sabedoria e ao sábio, eu dou o nome de sábio ao indivíduo capaz de mudar o aspecto das coisas, fazendo ser e parecer bom para esta ou aquela pessoa o que era ou lhe parecia mau (PLATÃO, 2001, p. 72).

Caso não aconteça essa interação, podemos dizer que há um desconhecimento no âmbito do estranhamento, uma compreensão não particularizada do objeto/ser, uma suposição sobre o significado daquilo. Sendo assim, conhecer não é reconhecer; o conhecimento se dá pela visão particularizada de algo, que vai partir do movimento de interação e percepção com e do outro. Trazendo essa discussão para o território da literatura, temos em Arte como

porque ela é, antes de tudo, pensar e conhecer. Assim, Chklovski apresenta uma trajetória da ideia. Primeiro, pensa-se que essas imagens se manifestam através da poesia (aqui, temos a poesia como discurso literário, diferente da prosa, que é tido como “discurso cotidiano”, e não gênero ficcional). Logo, a poesia seria uma maneira particular de pensar, isto é, por imagens, elaborações do pensamento a partir de recursos imagéticos, criações mentais, traçando o percurso imagem-palavra.

Ainda nesse primeiro instante, temos a imagem como guia do pensamento, que “têm apenas a função de agrupar os objetos e as funções heterogêneas e explicar o desconhecido pelo conhecido” (CHKLOVSKI, 1978, p. 40), com o objetivo de atingir, compreender e explicar o que não conhecemos a partir da composição visual que este conhecido pode proporcionar. Segue-se a isso uma relação da imagem com o que ela explica (signo e significado): a imagem é variável; a imagem possui certa objetividade, já que é familiar, ao contrário de sua explicação.

Depois, percebe-se que o conceito de arte como pensar por imagens é restrito. Chegamos a outra conclusão: a arte é, antes de tudo, criadora de símbolos. Essas imagens não mudam (nem pelo tempo, nem pelo país, nem pelo poeta); são sempre as mesmas, ou seja, são universais. Logo, são sempre passíveis de ressignificação.

Situando a imagem num tempo-espaço de produção, Chklovski afirma que “Quanto mais se compreende uma época, mais nos persuadimos que as imagens consideradas como a criação de tal poeta são tomadas como emprestadas de outros poetas quase sem nenhuma alteração” (1978, p. 41). O poeta busca suprimir as necessidades que parecem faltar ao momento anterior e, com isso, faz um resgate através da imagem; quando resgata, está partindo do mesmo universal e tentando explicá-lo. Isso significa uma reorganização também da palavra.

O caráter estético do objeto, assim, depende da maneira com que o percebemos. Entende-se objeto estético “no sentido próprio da palavra, os objetos criados através de procedimentos particulares, cujo objetivo é assegurar para estes objetos uma percepção estética” (CHKLOVSKI, 1978, p. 41), ou seja, objetos manipulados intencionalmente para causar determinado efeito. Por outro lado, o esquema poesia = imagem influencia para

imagem = símbolo = a faculdade de a imagem tornar-se um predicado constante para sujeitos diferentes (CHKLOVSKI, 1978, p. 41). Isso quer dizer que a imagem também se

transforma dependendo de como é percebida, não porque perde o seu sentido original e universal, mas porque a ele é acrescido uma interpretação.

Outras concepções de estranhamento encontramos em Estrutura da lírica moderna (1978), de Hugo Friedrich, que aborda características da composição lírica nos principais poetas da modernidade, sendo eles Baudelaire, Rimbaud e Mallarmè. Friedrich ressalta, dentre as três manifestações da lírica (sentir, observar e transformar), a transformação como categoria dominadora da poesia moderna, “tanto no que diz respeito ao mundo como à língua (FRIEDRICH, 1978, p. 17). Essa capacidade transformadora estaria imersa na humanidade da experiência vivida e do sentimento. Nesse sentido, a subjetividade de um espírito poético “não mais se pode decompor em isolados valores de sensibilidade” (FRIEDRICH, 1978, p. 17). Logo, o papel do estar-no-mundo é de relevância para o fazer poético.

Como características da lírica moderna do século XX, Friedrich aponta “desorientação, dissolução do que é corrente, ordem sacrificada, inocência, fragmentação, reversibilidade, estilo de alinhavo, poesia despoetizada, lampejos destrutivos, imagens cortantes, repentinidade brutal, deslocamento, modo de ver astigmático, estranhamento…” (FRIEDRICH, 1978, p. 22.). Tudo isso é contrário a um “mundo dos hábitos”, ou seja, da estabilidade inabalável. Assim, o poeta moderno não pertence mais ao mundo da rigidez cotidiana, porque ele passa a ver e a viver esse mundo da mesma maneira como se dá o ato de fazer poesia. As características acima revelam um mundo não necessariamente reconstruído, mas sim revelado, desvendado.

Baudelaire concebe a ideia de modernidade como “a capacidade de ver no deserto da metrópole não só a decadência do homem, mas também de pressentir uma beleza misteriosa, não descoberta até então” (FRIEDRICH, 1978, p. 35). O homem em ruínas faz da sociedade tomada pela industrialização um lugar para a criação poética, ou seja, conduz o banal para o misterioso, saindo assim da inércia para atingir certo êxtase. Além disso, ainda segundo Friedrich (1978), Baudelaire faz da concentração uma palavra-chave de seu pensamento, apegando-se ao poeta Emerson quando diz que a concentração é característica do herói.

Há em Baudelaire dois olhares sobre a modernidade: um negativo e outro positivo, sendo este último um desdobramento do primeiro. No aspecto negativo, a modernidade significa a reunião de ruínas e progresso, a metrópole e seu cinza feio e artificial, sendo também “a época da técnica que trabalha com o vapor e a eletricidade” (FRIEDRICH, 1978, p. 43). Podemos observar que o crescimento urbano, ou pelo menos a ideia de crescimento, é

visto como negativo porque representa a decadência do homem e de seu meio, aprisionando-o na solidão e na impessoalidade.

Já o aspecto positivo seria a transformação dos elementos negativos em algo fascinante. Logo, “o mísero, o decadente, o mau, o noturno, o artificial, oferecem matérias estimulantes que querem ser apreendidos poeticamente” (FRIEDRICH, 1978, p. 43). A relação dual da negatividade contida na modernidade revela o novo; o familiar, de repente, apresenta-se desfamiliarizado, estranho.

Dessa forma, ocorre o que Friedrich chama de desrealização do real, que advém de uma repulsa à banalização do real, significando uma capacidade criativa, transformadora do real. Tal desrealização está também ligada ao conceito de deformação, entendida em Baudelaire de forma positiva: “Na deformação, reina a força do espírito, cujo produto possui uma condição mais elevada do que o deformado. Aquele “mundo novo”, resultante de tal destruição, já não poderá ser um mundo ordenado realisticamente” (FRIEDRICH, 1978, pp. 55-56). Isso significa que a deformação rejeita o mundo dominado pelo viés prático. Baudelaire “desobjetiva” as coisas, fazendo com que o mistério contido nelas afaste seu entendimento normal, estagnado (FRIEDRICH, 1978, p. 56); significa penetrar no caminho do desconhecido, escrutar o invisível.

Em Rimbaud também há essa tendência à deformação criativa, pois “o desconhecido é um polo de tensão destituído de conteúdo. A visão poética penetra no mistério vazio através de uma realidade intencionalmente feita em pedaços” (FRIEDRICH, 1978, p. 62). Nesse caso, a deformação vai preencher o mundo fragmentado em suas circunstâncias físicas, mas também o mundo destituído de sentidos que o ressignifiquem. Ainda que o poeta não extraia nada desse processo, ele contemplou seu meio e renovou o mistério através da observação (FRIEDRICH, 1978, p. 72).

A cidade enquanto espaço não oferece ao homem “qualquer monumento ao devaneio” e a vida, dessa forma, “está sujeita à mesma coação uniforme” (FRIEDRICH, 1978, p. 66). Logo, a relação paradoxal que a modernidade oferece é a de aversão e apego: aversão quando na dinâmica do progresso, apego enquanto condução às novas experiências” (FRIEDRICH, 1978, p. 66). O sentido das coisas visíveis e de sua percepção reside na confusão. Assim sendo, a modernidade teme qualquer domínio ou prisão.

A inquietude do poeta é o que transforma o familiar em estranho (FRIEDRICH, 1978, p. 76). Os elementos do sensível real são elevados a uma “super-realidade” - por meio do que

Friedrich chama de contração, omissão, deslocação, recombinação. A nova imagem gerada por esse processo “obriga o olhar a dirigir-se ao próprio ato criado por ele” (FRIEDRICH, 1978, p. 80), e essa nova realidade está presente na linguagem. Portanto, nesse movimento o poeta vai à origem das coisas, regressando para um lugar em que tais coisas ainda não possuem sentido utilitário no mundo prático (FRIEDRICH, 1978, p. 94).

Para Denilson Lopes (2007), que aborda o estranhamento em consonância com o sentir provocado pela experiência, o sublime desperta em nós certo êxtase, que nos leva a uma “dificuldade em nomear o vivenciado” (LOPES, 2007, p. 40). Ver o banal tirando-o de sua vulgaridade ou de seu costume é estabelecer “um jogo de tensões entre a contemplação e o olhar distraído, a rapidez e a lentidão e prefere apostar mais na sutileza, na leveza” (LOPES, 2007, p. 40). Logo, extrair algo da banalidade ou do cotidiano é uma relação dupla que fica no limiar entre o sentido prático e o sentido subjetivo das coisas.

A modernidade traz consigo a agitação do desenvolvimento, assim como a imagem do homem fragmentado que precisa lidar com sua multiplicidade. Sendo assim, “Como produzir imagens e narrativas que ainda tenham força diante do excesso informacional?” (LOPES, 2007, p. 44). A informação não quer dizer, necessariamente, o novo. Observar, nesse sentido, é lutar contra o lugar comum que estagna as coisas, o habitual. Desarmar-se de um saber prévio sobre algo que já se conhece é surpreender-se, descobrir a novidade daquilo que se pensava velho. O olhar acontece como operação de transformação, incorporando quem observa à narrativa da paisagem, como criador e como personagem.

Porém, “A valorização de um encantamento pelo mundo não implica escapismo, nem idealização do mundo” (LOPES, 2017, p. 56). Isso porque o ato de observar e também o de contemplar são sempre acompanhados pelo pensamento sobre o que se vê, ainda que esse pensamento seja mínimo. Não significa também a vagueza, já que o estar-no-mundo nessa interação, como acontece entre indivíduo e cidade, está relacionado à uma posição de questionamento sobre o que existe ao redor. Assim, “A busca é a procura de um outro olhar, de uma outra forma de vida. A possibilidade de contemplar, de fazer da cidade uma paisagem é mais uma atitude diante do presente do que uma nostalgia de um mundo rural, mais lento” (LOPES, 2007, pp. 57-58).

O foco da observação da cidade não é uma negação à sua organicidade, à sua estética e ao seu funcionamento milenares. Pelo contrário, é tirá-la de um lugar que insiste em pertencer apenas ao campo do funcional, explorando seus múltiplos sentidos e significações. É a

surpresa não apenas do evento esporádico, mas do espetáculo urbano que acontece todos os dias, porque tais acontecimentos constituem matéria de narrativa. A cidade é o lugar do conflito e isso é a sua essência.

A leveza é um dos conceitos presentes em Italo Calvino e, de acordo com Lopes, “se apresentaria mais como um destino” (LOPES, 2007, p. 71), ou seja, uma busca, e não meramente um conceito aplicável; é um “estar diferenciado no mundo” (LOPES, 2007, p. 72), uma maneira de agir diante dele e a ele. Dessa forma,

há uma alegria ao se resgatar a narrativa capaz de lidar com o mundo que nos escapa entre os dedos, diante de nós. Trata-se de buscar uma nova aventura tão antiga como as lendas e mitos, tão nova como o mundo da informação, um mistério que emerge mesmo de um mundo transparente e claro (LOPES, 2007, pp. 72-73).

Por mais que tentemos explicar os fenômenos, raros ou banais, que se manifestam para os olhos, não podemos apreender, concretizar através de um pensamento concluso, explicar definitivamente, porque sempre irá prevalecer “a curiosidade da criança, do viajante, do anjo, esses mensageiros da leveza no nosso mundo. Sem saber o que virá, mas buscar a força do presente, das coisas do mundo” (LOPES, 2007, p. 75).

Agora, partiremos para a leitura de alguns capítulos da segunda parte de Palomar, chamada Palomar na cidade. Evidenciaremos, aqui, o terraço de Palomar, seu posto de observação, e as relações entre a personagem e o comércio, já que esse último é preferido por Calvino para definir o espaço citadino.

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