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Quando Italo Calvino publicou As cidades invisíveis, em 1972, provavelmente tinha a certeza de que esse livro encerrava em si de forma contundente a estrutura simbólica que mais atraía o escritor. Para ele, a cidade é capaz de reunir níveis de discurso e tipos de linguagem dos mais variados. De fato, devia imaginar a cidade como uma reunião de diferentes campos do saber. O que talvez fosse uma incógnita para o escritor é que As cidades invisíveis se tornaria seu livro mais reverenciado e lido, o que, em sua classificação, chamaríamos de clássico. Além disso, realmente os saberes encontraram a obra, sendo profuso o seu uso em trabalhos de arquitetura, geografia, filosofia, artes, além, claro, de literatura.

A cidade-símbolo de Calvino chegou até nós como chegou a trabalhos dos diversos lugares do mundo, sendo assim universal. No Brasil, o desenvolvimento das cidades é um tema delicado. As pessoas simplesmente vivem como podem, em seus espaços e em seus não- espaços. Na literatura brasileira, a cidade encontra vasto repertório, ainda mais variado nas literaturas contemporâneas. Logo, é comum visitar esse lugar, seja na vivência do real ou nas diversas expressões artísticas. Mais do que isso, a cidade não se configura somente como espaço ao qual pertence a ação, mas existe como personagem, influenciando o desenvolvimento da narrativa e da construção das outras personas inseridas nela.

Nossa inquietação parte, primeiro, de ver como a cidade, tema tão exaltado por Calvino, está presente em outra obra igualmente importante do escritor, Palomar. Isso significou sair do campo investigativo pertencente a Cidades invisíveis e rumar para outras possibilidades dentro do que o signo metrópole permitia. Além disso, a cidade que se impôs neste trabalho foi uma cidade do movimento, da ordem e da desordem, da interação com os indivíduos que a habitam, da inquietude. Portanto, fomos buscar no espaço-tempo do clássico, que é o mesmo da urbe, ou seja, a inextinguibilidade, algo que pudesse mostrar o caos de um

espaço que se constrói e reconstrói a todo momento. Encontramos tal característica no romance de aventura, cujo conceito Calvino aplicou em vários de seus romances.

Na qualidade de curiosidade, este trabalho é a continuação de algo que já se falou e do que ainda virá. Aqui, procuramos trabalhar a produção crítica de Italo Calvino de modo a embasar a obra lida, Palomar, no decorrer desta pesquisa. Os ensaios de Calvino também são bastante populares, porém, sentimos a necessidade de explorá-los mais, passando por suas cinco reuniões de ensaios publicadas no Brasil, as já citadas Por que ler os clássicos, Seis

propostas para o próximo milênio, Mundo escrito e Mundo não escrito, Assunto encerrado e Coleção de areia. Reconhecemos as falhas deste processo: o vasto material do escritor

contribui, contemplando de forma satisfatória o tema cidade e a perspectiva da aventura, mas sempre ficamos devendo a visita da volta, para que seus ensaios possam nos contar sempre coisas novas.

Dito isso, o percurso realizado durante nossa escrita foi o de priorizar o entendimento do escritor estudado acerca dos seguintes temas: cidade, romance de aventuras, estranhamento, indivíduo e modernidade. É certo que, nos tópicos em que condensamos uma teoria calviniana, sua palavra imperou e os excessos e repetições podem ser percebidos. Porém, é difícil estudar Calvino e separar, categorizar os temas acima porque, em sua maioria, estão imbricados numa essência mútua. Reconhecemos, então, o destaque dado a Calvino em relação a outros escritores teóricos, mas tal procedimento se justifica pela tentativa de formar uma base de estudo para trabalhos futuros. Mesmo assim, podemos reconhecer a importância dele no empenho de abordar tantos assuntos de interesses vários.

Mesmo com uma dominante voz calviniana, procuramos a concordância de outras obras com os pensamentos desenvolvidos pelo escritor, entendendo a necessidade dessa confluência. São obras que, via de regra, tocam nos mesmos pontos que Calvino, mas com um alcance teórico maior e mais conhecido, e que assim nos ajudaram no embasamento de nossas análises. Um dos temas que é inerente à obra do nosso escritor e que ele aborda em sua teoria com menos frequência do que gostaríamos, por exemplo, é o estranhamento, trabalhado aqui como estratégia para o desvendamento da cidade em meio à profusão de acontecimentos definidores e incontestáveis trazidos pela modernidade.

O que podemos ver no senhor Palomar, personagem que dá nome ao livro, é a sua vontade de desbravar o mundo ao mesmo tempo em que deseja se ancorar em certezas, que são logo esfaceladas perante as experiências que sempre agregam novidade ao que antes se

tinha como inquestionável. Assim, podemos ver a trajetória de Palomar como um constante entregar-se às experiências, uma travessia aventuresca por meio da cidade-cidade e da cidade- mundo (essa mimetiza inúmeros espaços para fundar seu microcosmo do universo) que apresenta dificuldades a serem vencidas através do olhar e da percepção de si no mundo.

Este é um trabalho inacabado porque é feito da palavra, inesgotável de sentido, porque fala de lugares inesgotáveis em seus sentidos, porque fala de um escritor que poderia ser vários em seus múltiplos sentidos, e de uma personagem que é linguagem se desfazendo e se refazendo a todo momento.

REFERÊNCIAS

1. Obras do autor

CALVINO, Italo. Le città invisibili. Torino: Einaudi, 1972.

. As cidades invisíveis. Tradução: Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990a.

. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução: Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990b.

. Palomar. Tradução: Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. . O caminho de San Giovanni. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

. Eremita em Paris: Páginas autobiográficas. Tradução: Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

. Assunto encerrado. Tradução: Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

. Coleção de areia. Tradução: Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

. Os amores difíceis. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

. Mundo escrito e mundo não escrito. Tradução: Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

. Palomar. Milano: Mondadori, 2017.

2. Obras sobre o autor

BARBOSA, João Alexandre. Calvino ou a fina poeira das palavras. In: . A biblioteca imaginária. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

CASTRO, Gustavo de. Italo Calvino: pequena cosmovisão do homem. Brasília: Editora UNB, 2007.

MOREIRA, Maria Elisa Rodrigues. Mesmo quando aparenta ter poucos planos, uma viagem pode não ter retorno: o olhar estrangeiro de Calvino. In: KLEIN, Adriana Iozzi;

MOREIRA, Maria Elisa Rodrigues (org.). Escrever também é outra coisa: ensaios sobre Italo Calvino. São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2013.

3. Outras obras

AGAMBEN, Giorgio. A aventura. Belo Horizonte: Grupo Autêntica, 2018. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.

. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.

BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

CANDIDO, Antonio. O poeta itinerante. In: O discurso e a cidade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1993.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

CHKLOVSKI, Vitor. A arte como procedimento. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (org.). Teoria da literatura: Formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1978.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1978. LOPES, Denilson. A delicadeza: estética, experiência e paisagem. Brasília: Editora UNB, 2007.

MORAIS, Guilherme Augusto Louzada Ferreira de. O conceito de experiência, de Walter Benjamin, análogo às narrativas heróicas clássicas. Macapá: Revista Letras Escreve, v. 7,

n. 3, 2º semestre, 2017. Disponível em:

https://periodicos.unifap.br/index.php/letras/article/download/3167/pdf.

PAES, José Paulo. A aventura literária: ensaio sobre ficção e ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

PEIXOTO, Nelson Brissac. O olhar do estrangeiro. In: NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

PERRONE-MOISÉS, Leila. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

PLATÃO. Teeteto. In: NUNES, Benedito (coord.). Platão: diálogos. Belém: Editora Universitária UFPA, 2001.

VELLOSO, Rita. Imagem dialética na cidade: sobre o trânsito de um conceito ao desenho do menos idealista dos objetos. Cadernos Benjaminianos , v. 2, p. 163-171, 2010.

VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento abstrato. In: VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1991.

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