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4 O MUNDO É UMA COLEÇÃO

4.1. A exposição Mundo é aberta ao público

Palomar é o último livro publicado por Italo Calvino, correspondendo assim à última fase de seu pensamento, na qual “tudo é atravessado pela indagação fundamental de como é possível, pela linguagem verbal, deixar passar as tensões permanentes entre o sensível e o inteligível” (BARBOSA, 2003 p. 283). Até o último momento, Calvino exercita a linguagem, esticando ao máximo as suas possibilidades. Tanto em Palomar quanto em Lezione

Americane podemos ver um trabalho voltado para o encontro das capacidades do sentir e do saber.

Em Palomar, assim como em tantas outras obras do escritor, enquanto no fazer literário mobilizam-se as práticas da exatidão e da precisão, consideradas características do trabalho de Calvino, na narrativa em si a sensibilidade da incerteza e a inocência sábia do questionamento permitem que vejamos essas duas categorias, o saber e o sentir, como complementares. Dessa forma, optar por um caminho narrativo da sensibilidade requer também a compreensão do mundo racional, com a perspicácia de uni-los.

João Alexandre Barbosa aponta para a leveza, proposta de Calvino, como matéria de importância nessa que foi a última fase do escritor; a leveza seria, em suma, partir da percepção técnica do mundo e reconstruí-lo através dos silêncios: o silêncio da observação, o silêncio do questionamento. Logo,

é a isto que se dedica a personagem Palomar: certo de que “a superfície das coisas é inexaurível”, como conclui das suas observações dos pássaros, a tarefa maior parece consistir em fazer a ponte entre o que a superfície revela aos sentidos e todo o complexo aparelho de apreensão, compreensão e comunicação que é a linguagem (BARBOSA, 2003 p. 284).

Palomar se dedica à tarefa de levar a experiência do que é visível aos olhos para uma explicação que contemple o máximo entendimento do que é observado, nma tentativa de universalizar o pacto particular do sentir. Nesse processo, a objetividade e as certezas são inalcançáveis, dadas as possibilidades múltiplas oferecidas pelo universo, que se dilata a cada instante, não pertencendo, assim, a uma estabilidade.

Além do trabalho da desautomatização de um mundo fadado à estagnação, Palomar procura dotar de compreensibilidade os acontecimentos, e tal compreensibilidade só a linguagem é capaz de traduzir. Assim, “o contrário da linguagem não é o silêncio, elemento até mesmo fundamental da apreensão, mas a incapacidade de manter viva e acesa a consciência da própria contemplação” (BARBOSA, 2003 p. 285).

Na obra manifesta-se, então, um “efeito de estilo” (BARBOSA, 2003 p. 285), correspondendo assim a uma personificação da linguagem em suas diversas formas expressão, e não somente na forma escrita. Desse modo, temos sempre disponível, ao longo de todo o romance, a relação sequencial homem e mundo (estabelecida através da experiência do olhar - contemplação - observação), na qual a sensibilidade está posta como primeira camada,

seguida da necessidade de apreensão das sensações, buscando pensar e explicar, na tentativa de não deixar pontas soltas sobre o que se observa. O Senhor Palomar sempre falha, pois embora haja percepções semelhantes, cada pessoa vê o que quer e o que pode ver, associando isso à sua narrativa particular.

Mesmo com as falhas, com os questionamentos que não cessam, o senhor Palomar não desiste de sua jornada, pois a busca é o que o move: “A diversidade da vida do senhor Palomar, traduzida na superfície da banalidade dos atos diários, é, todavia, articulada pela intensidade com que procura, por assim dizer, ecos entre as coisas” (BARBOSA, 2003, p. 286), e esses ecos são a possibilidade da reorganização e ressignificação do que se apresenta diante de seus olhos.

Por essa batalha travada entre as categorias internas ao homem e externas a ele, ou seja, sociais e culturais, percebemos o Senhor Palomar num movimento cíclico, que condiz com a trajetória de uma vida. Apesar de ser contado na maturidade da personagem, percebemos claramente uma noção de início, meio e fim. Aos poucos, os questionamentos de Palomar, que antes eram dissipados com distraídas irritações, na última parte da obra conferem um tom melancólico a ele; sua jornada é em direção ao mistério que perturba a todos: a morte, que iguala todas as espécies, e é a verdadeira escuridão unificadora de que a personagem se refere no início de sua jornada.

Fato é que o Senhor Palomar resolve passar o mundo a limpo. Para realizar tal feito, não mede consequências nem distâncias: vai à origem de todas as coisas a partir de um olhar- pensamento, visita a natureza, a cidade, as antigas civilizações, e também seu eu que grita o silêncio. Ir à origem de tudo é talvez a vertente que mais Calvino emprestou ao declaradamente autobiográfico Palomar. É o mundo como coleção exposta a nós que o escritor aborda em Coleção de areia (2010), visto em suas mais significativas manifestações: cultura, linguagem, geografia, enfim, aventuras do campo do conhecimento que formam o espaço que habitamos, entre-lugar que nos acolhe enquanto existimos.

Encontramos em Palomar essa tentativa de inventário do mundo, processo de descobertas que forma, em paralelo, um inventário de si mesmo. O pensamento proposto por Calvino é na verdade o aviso de que tudo já existe, mas necessita de infinitas camadas de recriação para dar continuidade à existência do espaço e das sociedades como herança. Por isso o apelo do escritor para que a modernidade seja, de certa forma, responsável por impulsionar seu próprio desvendamento, que seja um olhar dinâmico sobre as coisas. O

Senhor Palomar se coloca na missão de desfazer um mundo já estabelecido, mas parece ser uma batalha que trava sozinho, pois sua solidão é característica enfática em toda a obra.

A questão da importância da viagem já é falada por Calvino quando ele cita a descoberta das Américas, do que seria o Novo Mundo; daí temos essa condição de deslocamento em evidência. Mas as indagações do escritor vão além dos fatos históricos e se colocam na contemporaneidade: saberíamos enxergar um novo mundo? (CALVINO, 2010, p. 17). Novamente há uma evocação dos sentidos e, sobretudo, do olhar: será que desautomatizaríamos nosso olhar e faríamos parte de uma criação, de uma reconstrução, enquanto criadores? Estaríamos recriando um discurso, haja vista que o caminho da linguagem, segundo Valéry, é “o que vem a dar em recomeçar, em refazer uma estrada completa, como se tantos outros já não a houvessem traçado e percorrido” (VALÉRY, 1991, p. 202).

Munidos de um olhar que desconstrói, logo precisaríamos da locomoção, que não nos fixasse e nos desse liberdade de trânsito; também um modo de comunicar, para relatar as descobertas. Assim, o homem moderno desempenha na cidade o que desempenhou em seus feitos mais importantes: as grandes navegações, o primeiro voo, a possível ida à lua. A cidade como microcosmo do mundo mostra que

Mudanças na estrutura urbana, na arquitetura, nos meios de comunicação e transporte viriam a alterar profundamente a própria constituição da realidade. Hoje o real é ele mesmo uma questão. […] O indivíduo contemporâneo é em primeiro lugar um passageiro metropolitano: em permanente movimento, cada vez para mais longe, cada vez mais rápido. Esta crescente velocidade determina não só o olhar mas sobretudo o modo pelo qual a própria cidade, e todas as outras coisas, se apresentam a nós (PEIXOTO, 1988, p. 361, grifo do autor).

Por isso, Palomar vem fundamentado no movimento (disposição para ir, andar), no espaço (lugar do desbravamento), e no relato da experiência (prestar contas do que foi visto, do que foi descoberto), esse último realizado pelo distanciamento de um narrador em 3ª pessoa. Veremos, a seguir, como Calvino constrói o pensamento de mundo como coleção e inventário pessoal.

4.1.2. A coleção de Calvino

Qualquer coleção de objetos tem como principal organização o tempo. Esse tempo serve para traçar uma linha de surgimento ou aquisição de tais objetos. Depois, já com o vínculo do tempo estabelecido, passa-se a organizar e relacionar os objetos a memórias, acontecimentos históricos, mudanças perceptíveis entre objetos de uma época e de outra, etc. Mas o que Calvino quer mostrar aqui é uma coleção de experiências e sensações captadas pelo olhar, utilizando para isso as grandes coleções, ou coleções dentro de coleções, enfim, museus, arquivos e monumentos visitados em viagens feitas pelo escritor.

Ao falar sobre a visita a uma exposição que mostrava uma coleção de areia, ele diz que “A vitrine da coleção de areia era a menos chamativa, mas também a mais misteriosa, a que parecia ter mais coisas a dizer, mesmo através do opaco silêncio aprisionado no vidro das ampolas” (CALVINO, 2010, p. 11). Nessa passagem, o escritor constata que objetos ou lugares, numa situação em que aparentemente não têm nada a dizer são, na verdade, os que mais dão margem às explorações, isto é, a repensar aquele objeto e inseri-lo num contexto já existente, ou deslocá-lo do tempo e dar-lhe uma realocação diferente no mundo, estabelecendo também novas relações de significado.

Teríamos também que saber reconhecer a singularidade dos objetos reunidos em uma coleção, porque essas singularidades vão conduzir nosso imaginário às origens do conjunto:

Depois as diferenças mínimas entre areia e areia obrigam a uma atenção cada vez mais absorta, e assim, pouco a pouco, entra-se numa outra dimensão, num mundo que não tem outros horizontes senão essas dunas em miniatura, onde uma praia de pedrinhas cor-de-rosa nunca é igual a outra praia de pedrinhas cor-de-rosa (misturadas com os brancos da Sardenha e das ilhas Granadinas do Caribe; misturadas com os cinzas se Solenzara, na Córsega), e uma extensão de cascalho miúdo e preto em Port Antonio na Jamaica não é igual a uma da ilha Lanzarote nas Canárias nem a outra que vem da Argélia, talvez do meio do deserto (CALVINO, 2010, p. 12).

É a partir da amostra, ou seja, da pequena parte do todo a que temos acesso, que se forma um processo de imaginação sobre aquele referente. De repente, não é mais uma simples coleção, desconectada do mundo, exposta de forma vazia: é uma viagem.

Que seria então uma coleção, questiona-se o autor: “Uma descrição do mundo? Um diário secreto do colecionador? Ou um oráculo sobre mim, que estou a escrutar nestas

ampulhetas imóveis minha hora de chegada? Tudo isso junto, talvez” (CALVINO, 2010, p. 12). A coleção é como o encontro entre o universal e o particular, no qual serão ligados através da busca: o universal que nos é exposto aciona, através do olhar, o que de particular está ligado a ele. É uma busca interior que vai fazer com que o universal funcione em nós e para nós. A história por trás da coleção e da observação que se faz da coleção é o que desencadeia a procura.

Fazer uma coleção é relatar algo, e expor é querer transpor para o outro a experiência que ele não teve. É diferente falar sobre algo que foi visto a alguém que nunca presenciou determinado evento. A força de existência física do objeto transpõe o espectador para o lugar da experiência. Calvino põe a coleção como diário, na força de mostrar que aquilo exposto é também narrativa. Sendo assim, entende-se que a coleção suscite mais perguntas do que forneça explicações.

Os questionamentos do autor logo tomam o leitor e agora buscamos saber: O que leva alguém a reunir, agrupar objetos de uma mesma categoria? E qual seria o critério de exibição desses objetos? Podemos pensar em coleções como lembranças de coisas “mortas”. Mas como algo aparentemente sem vida ou sem utilidade pode dizer tanto de um momento histórico ou de uma organização social? Pensando nisso, nessa percepção da coleção como linguagem, há coleções que podem ser obras de arte? Sendo conexão com a humanidade, é um excerto de vida no qual podemos nos reconhecer, porque “O fascínio de uma coleção está nesse tanto que esconde do impulso secreto que levou a criá-la” (CALVINO, 2010, p. 13).

Dessa forma, a coleção dá ao indivíduo a sensação de carregar consigo uma porção do mundo exterior a ele e, exibindo-a, consegue expandir o mundo para o outro. O que é aparentemente banal pode dar a sensação de segurança, de pertencimento e interação com o universo. Mas esse pertencimento não vem de se saber dentro e por isso ficar conformado; vem de entender-se como ser transformador do mundo através do questionamento, da constante “refeitura” de narrativas.

Colecionar é reunir amostragens da vida. O colecionador é, em essência, explorador, e suas armas de caça para as descobertas são o olhar (a observação), o deslocamento, o encontro com o estranho (quando reúne objetos não contemporâneos a ele). Quando Calvino fala sobre a coleção de areia, temos algo que escorre, que não dá para segurar, e que se solta, é insignificante, mas que ao mesmo tempo é conteúdo e significação se disposta num recipiente. Assim, temos o poder de uso e de manipulação dessa coleção.

A coleção nunca substituirá a experiência, mas é para o colecionador uma forma de exibir sua caça, ao mesmo tempo que é uma tentativa de relembrar, contar, reconstituir, criar em cima da experiência vivida. “Talvez fixando a areia como areia, as palavras como palavras, possamos chegar perto de entender como e em que medida o mundo triturado e erodido ainda possa encontrar nelas fundamento e modelo” (CALVINO, 2010, p. 16), para que assim possamos reconduzir os objetos aos seus lugares de origem e repensá-los, guardá- los conosco de alguma forma a partir das relações e significados construídos e, enfim, fundar nossa narrativa.

No próximo tópico, a leitura de As viagens de Palomar se encarregará de mostrar como pode acontecer a relação entre homem e universo no mundo como coleção.

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