• Nenhum resultado encontrado

Seria incompleta a obra do Intendente se não reco-

Percorrer a diferença na Modernidade

Documento 1 Seria incompleta a obra do Intendente se não reco-

lhesse, também, “as muitas crianças que tiritando de frio e fome,

andrajosas e desamparadas, por aí viviam ao abandono, e natural- mente se transformariam em perigosos elementos de desmoralização e de crime”.54

É à luz deste controlo governativo que o “terrível Intendente da Polícia”, Pina Manique, decide fundar a Casa Pia de Lisboa, convertendo “a caridade incerta e casual em um sistema de

assistência pública”.55

A ideia que esteve subjacente à sua criação não foi a de estabelecer uma casa de educa- ção e muito menos um centro de altos estudos científicos que desse formação superior aos que se destacassem pelas suas capacidades. Os primeiros hóspedes foram recrutados de uma franja segregada pela sociedade: “homens e mulheres de maus costumes, que vagueavam pelas ruas, e

eram constante perigo para a segurança pública”.56

53 FOUCAULT, 1999b: 176. 54 SILVA, 1896: 2. 55

Prefácio de Teófilo Braga. SILVA, 1896: X-XI. 56

O poder policial discricionário, exercido por Pina Manique, torna-se inquestionável numa sociedade que se vê enxameada por numerosos “vagabundos que faziam das ruas de

Lisboa teatro constante de seus ultrajes à moral, e de seus atentados contra a vida e proprieda- de do próximo”.57

Não são apenas os crimes cometidos ou a infracção das regras e normas que ditam a clausura destas almas perdidas. A leve suspeita do que podem vir a praticar é suficiente para que se torne mais lucrativo vigiar que punir. Arrumados no Castelo de S. Jorge, a coerção que se aplica nestes corpos dóceis, fruto do regímen de trabalho e de ordem estabelecidos nas oficinas do Castelo, regenera-os, torna-os “elementos úteis da sociedade”.58

A mesma missão regeneradora que aconselha o recolhimento de adultos em instituições

totais59 acompanha a necessária conveniência de resgatar do convívio da miséria e dos péssimos exemplos dessas ruas, as crianças que as inundavam.60 O fim específico com que se criou a Casa

57 SILVA, 1896: 2. 58 SILVA, 1896: 2. 59

Instituição total, conceito forjado por E. Goffman em Manicómios, prisões e conventos, faz constante aparição ao longo deste texto quando cruzamos olhares sobre as três dependências da Casa Pia que foram objecto do nosso inte- resse. Neste sentido, cumpre esclarecer o que Goffman entende quando se refere à totalidade asfixiante de uma instituição, que se pode repercutir numa instituição mais do que noutras, uma vez que a sua especificidade afigura-se fundamental na avaliação do seu carácter fechado. Este “é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico”. O grau de fechamento de uma instituição é avaliado segundo uma escala de atributos elaborada por Goffman e que determina que uma instituição é mais completa quanto maior for o número de itens respeitados. O corte que se estabelece com o exterior induz a que todas as esferas da vida individual – a vida privada, a profissão e o lazer – passem a ser realizadas no mesmo local, debaixo da mesma tutela; todos os momentos são orientados por uma rigorosa rotina diária, que se repete indefini- damente, em estreita proximidade com um grupo relativamente grande e homogéneo de pessoas “tratadas da mes- ma maneira e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto”. Todas as forças se encaminham em direcção a um “plano racional único”, supostamente delineado para atender aos propósitos da Direcção da instituição. Segundo Goffman, “o controle de muitas necessidades humanas pela organização burocrática de grupos completos de pessoas (…) é o facto básico das instituições totais”. GOFFMAN, 2003: 16-18.

60

“O Código Penal de 1810, ainda que moderasse o rigor dos regulamentos antigos (dos quais alguns davam a pena de morte e das galés ao mendigo e vadios de qualquer sexo e idade, e os mais brandos condenavam ao castigo da varada as crianças vadias e mendigas), manteve a pena de prisão para um período de três a seis meses para as crianças vadias ou mendigas”. FERREIRA-DEUSDADO, 1900: 241. É bem mais suave o destino atribuído pela Intendência da Polícia.

Pia reside, pois, na “reclusão e regeneração de vadios e de mulheres de má nota, e um amparo e

protecção educativa para os órfãos desvalidos”.61

A reabilitação que se desejava operar nestes elementos alheios à normalidade obriga ao desenvolvimento de uma série de tecnologias que, aperfeiçoadas, lubrificadas, optimizadas, vão desembocar no plano último do controlo maximizado: a “conduta da conduta”. Por outras pala- vras, podemos dizer que o indivíduo é atingido no coração pelo poder público, passando a ter consciência da obediência que deve ao seu amo, mas também a si mesmo, observando-se como sujeito dócil ou insurrecto do seu governante.62 Ao ter consciência de si mesmo, das suas acções e comportamentos,63 ao regular a sua conduta na perspectiva da vinculação ao poder, o indiví- duo enleia-se conscientemente nas malhas do controlo governativo, assegurado por autoridades e instituições de diversa ordem, criadas para manipular, instrumentalizar e normalizar a conduta do outro.

Distribuídos por um espaço criado em sua função, objecto de uma vigilância constante, os resíduos – os marginais, os delinquentes, os criminosos, os anormais… não são mais negligen- ciados pela sociedade que os ostraciza. Passam a ser alvo de um conjunto de técnicas de poder em virtude das quais se projecta a sua singularização,64 garantindo o controlo escrupuloso dos

corpos, numa relação de docilidade/utilidade, na qual se consubstancia o Estado moderno.65

Para os rapazes dos Jerónimos, estudar, comer, brincar, pensar, dormir… dentro dos claustros da instituição são operações vulgares, rotineiras que não levantam questões, habitua- dos que estão a partilhar todos os momentos do seu dia na convivência directa com os pares.

“Organizada assim esta ordem de coisas, o governo poderá conhecer sempre por um mapa, que lhe remeterei amiúde, o número dos leitos ocupados e o número dos vagos. Assim, as entradas só se verificarão à proporção que houver vacaturas de leitos, e não estará o ministro, ignorando o que se passa a este respeito na 61 SILVA, 1896: 2-3. 62 VEYNE, 1988 : 9. 63

Ao falar da consciência de si, Foucault utiliza a expressão reflexividade do sujeito, referindo-se à capacidade de os indivíduos serem autoconscientes, capazes de reflectirem acerca de si, da sua postura, comportamentos e pensamen- tos.

64

CASTRO, 2004: 269. 65

“A «disciplina» não se pode identificar com uma instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo que comporta todo o tipo de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma «física» ou uma «anatomia» do poder, uma tecnologia”. FOUCAULT, 1999b: 177.

Casa Pia, a expedir, como acontecia dantes, ordens de admissão, umas sobre outras, julgando que faz um benefício aos que admite, e fazendo somente a des- graça dos que aqui estão”.66

Todas as circunstâncias são alvo de reflexão por parte da direcção da Casa Pia. Nada deve ser deixado ao acaso sob pena de encravar a engrenagem governativa. As tabelas de ali- mentação estão estudadas, de modo que as necessidades fisiológicas da nutrição sejam plena- mente satisfeitas.67 A garantia de encontrar comida no prato, independentemente da agrura do inverno ou da fome que se combatia lá fora, contribui para que o bem-estar se instale em cada visita ao refeitório.