• Nenhum resultado encontrado

Traços genealógicos da Educação dos Anormais

RESUMO A constituição histórica da educação das crianças anormais é-nos traçada pelos apontamentos que foram surgindo, pontualmente, ao longo do século XIX e princípios de XX. Vários foram os autores – Pinto Ferreira, A. Descoeu- dres…–, que manifestaram a preocupação de elaborar o percurso genealó- gico da educação dos anormais, no sentido de conferir legitimidade a um ensino que, por diversas vezes, foi vítima de ataques ferozes e da incom- preensão dos seus detractores. Em Portugal, os principais caminhos da educação especial vão dar à Casa Pia de Lisboa.

É comummente aceite que se recue ao contributo de Jean Itard e do seu “selvagem de Aveyron” para construir uma perspectiva histórica da educação das crianças anormais. Contudo, várias são as referências a crianças selvagens anteriores a Vítor, e que deram origem às primei- ras comunicações de certa importância sobre o caso.121

121

Lucien Malson fornece-nos uma relação dos casos conhecidos, anteriores a Vítor, o selvagem de Aveyron. MAL- SON, 1967: 74. Evidencie-se o interesse que estes casos despertaram em Carl von Linné e Rousseau, e que certamente contribuíram, particularmente a este último, para considerar que era impossível "à l'heure actuelle, de laisser pousser l'enfant comme un sauvageon, sans soins et sans culture". STEEG, 1911.

Designação do caso Data da descoberta

Idade por ocasião da descoberta

Primeiras comunicações de certa impor- tância

1 A criança-lobo de Hesse 1344 7 anos Camerarius | 1602 | Rousseau | 1754 | Linné | 1758

2 A criança-lobo de Wetteravie 1344 12 anos Von Schreber | 1755 3 A 1.ª criança-urso da Lituânia 1611 12 anos Linné | 1758

4 A criança-carneiro da Irlanda 1672 16 anos Tulp | 1672 | Linné | 1758 5 A criança-vitela de Bamberg c. 1680 Linné | 1788

6 A 2.ª criança-urso da Lituânia 1694 10 anos Condillac | 1746 | Rousseau | 1754 7 A 3.ª criança-urso da Lituânia - 12 anos Connor | 1698

8 A rapariga de Kranenburg (Holanda) 1717 19 anos Linné | 1788

9/10 Os dois rapazes dos Pirenéus 1719 Rousseau | 1754 | Linné | 1758 11 O selvagem Peter, de Hanôver 1724 13 anos Rousseau | 1754 | Linné | 1758

12 A rapariga de Sogny, em Champanhe 1731 10 anos Louis Racine | 1747 | La Condamine | 1755 | Linné |1788

13 Jean de Liège 21 anos Digby | 1644 | Linné | 1758 14 Tomko de Zips (Hungria) 1767 Wagner | 1794

Saliente-se, porém, o carácter desfasado entre o aparecimento do caso e o respectivo estudo. À excepção da criança-carneiro da Irlanda, estudada por Nicolaes Tulp à data da sua aparição, as restantes crianças selvagens, que criaram assombro nas populações, foram objecto de estudo muitos anos mais tarde, reduzidas que estavam, apenas, aos escritos de quem com elas convivera.122

Talvez seja este o motivo que leva a considerar Jean Itard a “matriz” que molda a educa- ção dos anormais, traçando desde então os processos seguidos para o seu tratamento. De facto, desde a “captura” da criança selvagem que Itard, médico-chefe do Instituto de Surdos-Mudos, na Rua de Saint-Jacques, lhe devota a sua melhor atenção, não descurando qualquer cuidado para com o seu novo paciente.123 Leitor assíduo de Locke e de Condillac, persuadido que o Homem não “nasce”, “constrói-se”, Itard começa por considerar a idiotia de Vítor mais resultan- te de uma insuficiência cultural do que de uma deficiência biológica.124

Em dois relatórios, um de 1801 e outro de 1806, Itard documenta a evolução da criança que, ao fim deste período de convivência com a “sociedade” – Mme Guérin, a quem a Adminis- tração confiara a guarda especial desta criança, os empregados da casa e o Dr. Itard – tinha per- dido alguns dos seus hábitos selvagens. Mas, tão importante como observar os progressos de Vítor, revela-se o delineamento dos preceitos considerados por Itard e que denotam, desde logo, a educação à medida da especificidade do caso.

122

Como este texto não pretende ser um levantamento exaustivo dos autores que se debruçaram sobre a educação dos anormais, apenas uma breve viagem que serpenteia alguns momentos do seu desenvolvimento, furtámo-nos a comentar os contributos de Esquirol, Wundt, Ireland, Ducan e Millard, Morel, Lombroso, Down, Galton, Tuke, Rush, Dix… FONSECA, 1979: 13.

123

“Em 9 de Janeiro de 1800 (19 Nivoso [quarto mês do calendário da primeira República Francesa], ano VIII às sete horas da manhã) perdeu-se e deixou-se apanhar a oitocentos metros da aldeia no jardim de um tal Vidal, tintureiro do território de Saint-Servin-sur-Rance em Aveyron. Internado a 10 de Janeiro (20 nivoso) no asilo de Saint-Affrique, e em 4 de Fevereiro (15 pluvioso) em Rodez, foi submetido a uma primeira observação, a do naturalista Bonnaterre, que lhe assinalou a estatura, um metro e trinta e seis, o genu valgum direito [deformação do membro inferior caracterizada por um desvio para fora da perna, com saliência do joelho para dentro e projecção do pé para fora], o murmúrio que fazia quando comia, as suas cóleras repentinas (…). O mais célebre psiquiatra da época, Pinel, escreveu um relatório sobre o selvagem e considera-o não um indivíduo privado de capacidades intelectuais, pela sua existência excêntrica, mas sim um idiota essencial perfeitamente igual, no fundo, a todos os que conhecera no hospital de alienados de Bicêtre”. MALSON, 1967: 91.

124

Entusiasmado pelo empirismo do filósofo inglês Locke, difundido em França por Condillac, Itard partiu do princípio que Vítor era uma “tábua rasa”, simplesmente porque nunca havia sido educado. PICAREL, 1947: 19-20.

"Guidé par l'esprit de leur doctrine, bien moins que par leurs préceptes qui ne pouvaient s'adapter à ce cas imprévu, je réduisis à cinq vues principales le trai- tement moral ou l'éducation du Sauvage de l'Aveyron.

PREMIÈRE VUE : L'attacher à la vie sociale, en la lui rendant plus douce que celle qu'il menait alors, et surtout plus analogue à la vie qu'il venait de quitter. DEUXIÈME VUE : Réveiller la sensibilité nerveuse par les stimulants les plus éner- giques et quelquefois par les vives affections de l'âme.

TROISIÈME VUE : Étendre la sphère de ses idées en lui donnant des besoins nou- veaux, et en multipliant ses rapports avec les êtres environnants.

QUATRIÈME VUE : Le conduire à l'usage de la parole en déterminant l'exercice de l'imitation par la loi impérieuse de la nécessité.

CINQUIÈME VUE : Exercer pendant quelque temps sur les objets de ses besoins physiques les plus simples opérations de l'esprit en déterminant ensuite l'appli- cation sur des objets d'instruction".125

O tratamento moral visava, sobretudo, desenvolver na criança a capacidade de se cons- tranger a si própria, de sentir arrependimento sempre que as suas atitudes não estavam de acordo com o que dela se exigia.

“Quando o privam do seu passeio, sofre e tenta deixar o Instituto, o que conse- gue algumas vezes, e alcança ao sul a «barreira de Denfert» e, ao norte, os bos- ques de Senlis, mas tem depois remorsos. Ao rever Mme Guérin, após uma fuga e duas semanas de reclusão, desmaia de alegria e vergonha”.126

A reclusão, para quem tinha “o gosto apaixonado pela liberdade dos campos”, significaria, talvez, o pior dos castigos que lhe poderiam aplicar. Fechado por semanas, privado do seu passeio pelos arredores da Rua de Saint-Jacques, que fazia todos os dias independemente das previsões de mau tempo, Vítor sentia o sabor do castigo. Com a função de reduzir os desvios, sendo essencialmente correctiva, a punição mais não era do que um elemento de um sistema dual.127 O castigo partilha a mesma medalha que a gratificação, sendo o seu reverso. Por esse motivo, quando Vítor se vê desembaraçado do cárcere desmaia de alegria e dá valor à liberdade que acaba de ganhar. “Ri quando Itard o felicita e geme quando o

125 ITARD, 2003: 16. 126 MALSON, 1967: 96. 127 FOUCAULT, 1999b: 150.

repreende – mais afectado pela sanção moral do que pela sanção física, submete-se contrito, quando o castigo lhe parece merecido”.128

Os métodos e processos aplicados na educação de Vítor inspiraram-se nas práticas correntes da escola de Sicard,129130 baseadas em actividades como o desenho de figuras simples, e nos escritos de Condillac, que considerava essencial a educação dos sentidos. “Vítor aprende a

distinguir com as pontas dos dedos, no fundo de um saco, castanhas quentes e castanhas frias, bolotas, nozes e pedras e até letras recortadas”.131

Ao fim de alguns meses, Vítor vai-se quitando ao seu estatuto de idiota, passando a cap- turar o sentido das palavras, reproduzi-las sem modelo e exprimir por escrito o essencial dos seus desejos. Considerando o ponto de onde partiu e o ponto onde chegou, este jovem só pode ser avaliado sensatamente quando comparado com ele próprio. Por isso, será muitas vezes objecto de escárnio por parte dos colegas de Itard que viram nesta viagem uma perda de tempo e a medíocre aplicação de métodos desadequados.132

“Choviam os absurdos, aceites por Delasiauve e Bourneville. O primeiro teve a ingenuidade de escrever que o «selvagem» de Itard foi o que deveria ser de acordo com a sua natureza, e o segundo não pôs claramente em dúvida o sobe- rano decreto do primeiro. Tanto um como outro, no entanto, examinando a obra pedagógica de Itard, reconheciam em primeiro lugar que poderia ter dado melhores resultados, se «em vez de lições dispersas e abstractas» tivesse recor- rido à «fermentação constante e prática», «à emulação, à rivalidade, que, tal como nas crianças vulgares, estimula dos idiotas»”.133

128

MALSON, 1968: 96. 129

O padre Sicard, Director do Instituto de Surdos-Mudos, na Rua de Saint-Jacques, foi o responsável pelo convite dirigido a Jean Itard, a 31 de Dezembro de 1800, para médico-chefe do Instituto Imperial de Surdos-Mudos.

130

Segundo Fusillier, a parte essencial do método desenvolvido pelo professor de surdos-mudos Jacob Rodrigues Pereira serviu a Itard, “para a ruidosa educação de uma criança reputada semi-selvagem”. FUSILLIER, 1895a: 329. 131

MALSON, 1967: 96. 132

Na sua memória acerca dos progressos de Vítor de Aveyron, de 1801, Itard critica, amargurado, a indiferença com que a sociedade recebeu o jovem, após uma curiosidade momentânea. “On conçoit facilement qu'un être de cette nature ne dût exciter qu'une curiosité momentanée. On accourut en foule, on le vit sans l'observer, on le jugea sans le connaître, et l'on n'en parla plus. Au milieu de cette indifférence générale, les administrateurs de l'institution natio- nale des Sourds-et-Muets et son célèbre directeur n'oublièrent point que la société, en attirant à elle ce jeune infor- tuné, avait contracté envers lui des obligations indispensables, qu'il leur appartenait de remplir". ITARD, 2003: 12. 133

Será no seguimento da obra de Itard que Edouard Séguin cravará “as primeiras balizas

no terreno da pedagogia científica”.134 De facto, e seguindo de perto as técnicas do “seu ilustre

mestre”, mas transformando-as, aperfeiçoando-as, Séguin reúne consenso em torno da realiza-

ção de certos princípios educativos, “com carácter verdadeiramente prático e de resultados tais

que, puros ou havendo sofrido pequenas modificações, alguns vieram aos nossos dias”. 135

A sua opinião relativamente ao uso da memória como peça fundamental no processo de aprendizagem revela o quanto de moderno este pedagogo conserva nos dias de hoje.

“L’éducation des seules facultés intellectuelles, par la mémoire seule, telle est la lèpre vive des temps modernes : la barbarie a détruit bien des monuments, mais du moins elle n’a pas empêché qu’il ne s’en élevât de durables où brille l´’originalité humaine, tandis que l’éducation publique, à mesure qu’elle étend ses enseignements, fauche sans pitié tout ce qui restait d’individualité, de per- sonnalité dans le génie".136

É, pois, o ensino prático, activo, que ocupa o essencial da pedagogia de Séguin. A realiza- ção de actividades desenvolve uma multiplicidade de funções, quer gerais, quer específicas, relativas aos comportamentos individuais e às relações sociais, que aconselham o seu ensino e normalização a todas as crianças e, sobretudo, aos que em virtude da sua anormalidade encon- tram mais dificuldades em exercer actos, funções, hábitos, gestos que se revelam essenciais na relação do indivíduo com o meio que o rodeia.137

Os pedagogos mais recentes dificilmente se conseguiram emancipar da influência de Séguin. Maria Montessori é exemplo disso mesmo, baseando muito da sua obra nos escritos de Itard e do seu discípulo. Pode dizer-se que os seus extractos são as “matrizes” nas quais se talham os processos para a educação dos anormais pedagógicos.138

134

Em 1834, Voisin fundou um estabelecimento ortofrénico para a educação de idiotas, em Paris. Em 1842, Saegert abre em Berlim a primeira escola para idiotas, Woodwards e Brigham na América do Norte e Miss White, em Bath, na Inglaterra. FONTES, 1933: 11-12. 135 FERREIRA, Pinto, 1930b: 4. 136 SÉGUIN, 1846: 338. 137 SÉGUIN, 1846: 345. 138

“Um problema interessante - A Educação dos Anormais - Como a entende um ilustre professor” – Palyart Pinto Ferreira entrevistado pelo jornal O SÉCULO, n.º 12.451, Ano XXXVI, de 5 de Agosto de 1916, p. 3.

As primeiras escolas especiais surgem em Bicêtre e em Salpetrière, no segundo quartel do século XVIII. Em 1841, Séguin abriu em Paris, no hospício dos Incuráveis, “uma escola cujo

valor foi logo apreciado, e pouco depois as crianças idiotas de Bicêtre estavam colocadas debaixo da sua inteligente direcção”.139 A de Salpetrière, dedicada à educação de crianças do sexo femi- nino, teve como professora Léontine Nicolle, durante 42 anos.

“Não é fácil avaliar a coragem, a dedicação que são precisas a uma mulher para se entregar a esta especialidade, nas circunstâncias em que Mlle Nicolle se encon- trava. 50 alunas que, além da educação, reclamavam constantes cuidados de toda a espécie, exigiam decerto um trabalho insano”.140

A par destes exemplos começou a surgir na Europa uma série de escolas especiais.141 Na Holanda, Fokke Intes Kigma, pedagogo neerlandês, funda em 1835, em Amesterdão, o primeiro asilo para crianças com dificuldades na fala assim como para crianças anormais. Na Suíça, o pri- meiro instituto de anormais foi fundado, em 1841, pelo Dr. Guggenbuhl, próximo de Interlaken, em Abendberg;142 o seu fundador desencadeou uma campanha propagandística que chamou a atenção da Europa para estas infelizes crianças que, não sendo idiotas, não podiam, no entanto, considerar-se normais.

Este instituto que, durante algum tempo, granjeou enorme fama, não tardou a cair em desgraça, mercê dos ataques dos médicos que consideravam a obra de Guggenbuhl um total desperdício de meios e esforços.

“Temos de reconhecer, nobre doutor, que foi uma genial ideia o erigir-se em redentor dos cretinos, essas criaturas que, com infantil candura se limitam a comer, digerir e dormir. Graças aos êxitos alcançados por V. Exa. acabou tão grande calamidade. Prossiga sua tarefa, nobre lutador, e bem depressa verá os seus protegidos terem assento nos conselhos municipais. Que obstáculo existe, na verdade, para que o cretino possa ocupar um lugar no conselho provincial ou nacional, para não mencionar cargos mais elevados?

139 FUSILLIER, 1895a: 329. 140 FUSILLIER, 1895a: 330. 141 FRÓIS, 2003: 611. 142

A escola de Abendberg abriu seis anos depois do encerramento em Salzburg, por falta de recursos, de uma classe de iniciativa particular criada em 1816, por um professor primário, Goggenmoos. FERREIRA, Pinto, 1930b: 5.

Quantos homens eminentes não têm feito outra coisa senão comer, digerir e dormir? (…) Tudo isto será também obra sua, senhor doutor, homem beneficen- tíssimo!”143

A forte oposição ao projecto de Guggenbuhl ditou a sua falência. O instituto chegou a ser alvo de um processo de inquérito, ordenado pelo próprio governo de Berna, saldando-se pela condenação social do Dr. Guggenbuhl, “alcunhado ao fim de 15 anos de trabalho, de charla-

tão, por não curar o cretinismo mas só desenvolver certas aptidões dos seus alunos”.144 Contudo, o seu contributo foi reconhecido, pois os asilos para anormais não tardaram a abrir e a multipli- car-se, principalmente na Alemanha e em Inglaterra.145

Seria preciso esperar até ao início da década de 90 para observar o primeiro ensaio de que há notícia em Portugal.146 Realizou-se no Hospital Conde Ferreira, no Porto, uma tentativa do padre José António Marinhas, decorrida entre 1887 e 1893, e que procurou dar educação a uma secção de rapazes cujas “faculdades não são totalmente destruídas”. Segundo o director do estabelecimento, Júlio de Matos, “não se obteve resultados satisfatórios”.147

Em curto espaço de tempo, investe-se numa segunda tentativa, desta vez levada a cabo por Anicet Fusillier, ilustre professor de surdos-mudos que desenvolve uma acção muito signifi-

143 FONTES, 1940: 11. 144 FERREIRA, Pinto, 1930b: 5. 145

DESCOEUDRES, 1922: 11-12. A primeira classe para crianças atardadas fundada na Alemanha, em Halle, ocorreu no ano de 1862, e a primeira escola, também neste mesmo país, em Dresden, em 1867. FERREIRA, Pinto, 1930b: 5. 146

A assistência às crianças anormais em Portugal vem de tempos mais recuados, no que se refere à protecção à infância anormal do ponto de vista social, ou seja, as crianças que se encontravam em perigo moral ou às que, de alguma forma, atentavam contra o estado regular da sociedade. Exemplo disto mesmo é a criação, em 1871, de uma Casa de Correcção para crianças delinquentes, em Lisboa, ou, em Outubro de 1895, a Colónia Agrícola Correccional Vila Fernando, perto de Elvas, e que, à data da sua criação recebera 51 crianças provenientes da cidade de Lisboa. FONTES, 1933: 14. Além destes dois exemplos, existe um número considerável de instituições e fundações públicas e privadas que calcorrearam este período e que garantiram um cuidado mais ou menos desvelado aos anormais sociais. Contudo, estas menções não se afastam umas das outras pelo seu carácter inovador, até porque o seu público-alvo aconselhava medidas pouco divergentes relativamente ao ensino dos normais – excepto no rigor dos castigos. Por conseguinte, quando falamos de crianças anormais ao longo deste texto temos de ter a noção de que a fatia que corresponde à anormalidade social é sempre menor do que as que se relacionam com os outros tipos de anormais já referenciados.

147

cativa em torno da questão dos anormais, nos finais do século XIX, devido aos seus escritos e ao esforço de divulgação que realiza.148

O facto de ter leccionado durante um ano no instituto de crianças atrasadas de Gentilly- Paris, seguindo de perto as orientações adoptadas na escola especial instalada no hospício de Bicêtre, orientado por Désiré Bourneville, leva este professor francês a visitar Portugal, em 1890, como destino de conferências subordinadas a este tema, e a fixar-se cá nesse mesmo ano.

Os resultados obtidos na escola francesa animaram-no o suficiente para querer importar o modelo seguido e aplicá-lo à realidade portuguesa.

“A ginástica; a aprendizagem de um dos seguintes ofícios: sapateiro, marceneiro, cesteiro, alfaiate e serralheiro; lições de coisas; educação progressiva dos senti- dos; exercícios de articulação, formam a base de um ensino que é uma honra para a França.

Muitos dos internados, em que as famílias não tinham a menor esperança de ressurreição moral, melhoraram de forma a poder, sem inconveniente, voltar para a casa paterna, possuidores de um ofício que lhes permite ganhar honra- damente a vida, o número dos que chegaram a fazer o exame de instrução pri- mária é muito elevado”.149

Não surpreende, portanto, que, apesar de a sua especialidade ser o ensino dos surdos- mudos, profissão que seguiu num colégio de surdos-mudos em Benfica, tivesse procurado orga- nizar “o ensino de imbecis ou atrasados de diversa natureza que se mostrassem susceptíveis de

receber os benefícios da educação”.

Foi a Bernardino Machado que confidenciou estas ideias,150 e foi a Miguel Bombarda, director do hospital de Rilhafoles, que se ofereceu para leccionar gratuitamente uma secção de 148 FRÓIS, 2003: 612. 149 FUSILLIER, 1895b: 84. 150

Em 1890, quando chega a Portugal para proferir conferências acerca dos progressos obtidos com um jovem surdo- mudo no Instituto de Surdos-Mudos de Paris, Anicet Fusillier trava conhecimento com Bernardino Machado, na quali- dade de presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa. A amizade permaneceu para além dos círculos académicos. Bernardino Machado, em 1893, apadrinhou o casamento de Fusillier com Maria Leopoldina Ferreira Cidade. “Depois do falecimento do professor Fusillier, em África, no ano de 1899, a sua viúva e filha Hermínia, continuaram a conviver” com a família Bernardino Machado, que quando da ida para o Brasil, em 1912, “entregaram o governo da casa na Rua Ponta Delgada à sua Amiga Maria Leopoldina”. In http://manuel-bernardinomachado.blogspot.com/feeds/posts/ default, [Consultado em 9 de Agosto de 2009].

rapazes.151 Pediu uma sala para lições e um ajudante ladino que o substituísse durante a sua ausência, e seguisse de perto os seus trabalhos. Confiante nos resultados que viria a alcançar, pedia que “antes de dar começo aos trabalhos, uma comissão composta de homens de ciência

fosse nomeada para examinar detidamente o estado dos principiantes, exame que havia de repetir no fim de um ano de leccionação”.152

Apesar da boa vontade de Miguel Bombarda em favor da iniciativa, esta não se concreti-