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A Communitas como Instituição Política ou Conjunto de Cidadãos que se

3 COMUNIDADE POLÍTICA E BEM COMUM NA CHRONICA CIVITATIS

3.1 Comunidade Política na Chronica de Iacopo de Varazze

3.1.1 Communitas

3.1.1.1 A Communitas como Instituição Política ou Conjunto de Cidadãos que se

Em uma primeira acepção, se o termo communitas, no sentido de comunidade política, pode ser substituído sem perda de seu valor semântico pela palavra comuna (commune), cremos que pouco ou nenhum problema se fará presente para, a partir disso, definirmos seguramente a communitas como instituição política ou conjunto de cidadãos que se autogoverna. Desde o século XII, pelo menos, as cidades da península itálica buscavam firmar sua autonomia seja diante do poder imperial, papal e/ou senhorial. Essa noção foi muito bem demonstrada por Patrick Gilli em Cidades e Sociedade Urbanas na Itália Medieval ao afirmar que, nesse contexto, “o poder estava na cidade. Nenhuma instância exterior, quer fosse o

imperador ou até mesmo o papa, poderia tentar sobrepor sua força à ‘congregatio civium’

[congregação de cidadãos], constituída precisamente para fazer valer os interesses próprios

da cidade”.268

A consciência dessa autoridade sobre si mesma se manifestou também no nosso próprio autor. Ao tratar do período no qual sua cidade foi elevada à dignidade arquiepiscopal (início de sua fase de perfeição), Iacopo afirma que “Gênova exercita o

próprio domínio sobre muitas cidades, sobre muitos povos e não é sujeita a ninguém”.269

Eis, então, a comunidade que se autogoverna, o primeiro significado identificado que foi atrelado ao termo communitas em outro fragmento da própria crônica. Todavia, a frase de Iacopo não termina nesse ponto. O arcebispo acrescenta que a sua communitas não é sujeita a ninguém

“senão a Deus por todas as coisas e aos imperadores somente por algumas”.270

Ora, temos

então, em um primeiro momento, um paradoxo: se a cidade é senhora de si, como é que ela responde aos imperadores no que se refere a algumas questões? Esse paradoxo, pelo menos de maneira aparente, de fato existe na Chronica, pois, apesar dessa afirmação, há inúmeras passagens que narram episódios de resistência da cidade frente ao poder imperial que tentava impor-se sobre ela.271 Dois dos episódios mais exemplares de casos como esses têm como

268GILLI, op. cit., p. 17. 269

Chronica, p. 436. “...civitas Ianuensis multis civitatibus imperat, multis populis principatur et nulli nisi Deo quo ad omnia, et imperatori quo ad aliqua est subiecta”.

270Chronica, p. 436. “...civitas Ianuensis multis civitatibus imperat, multis populis principatur et nulli nisi Deo

quo ad omnia, et imperatori quo ad aliqua est subiecta”.

271No que diz respeito a esse paradoxo – para que possamos mensurá-lo em sua mais correta dimensão - é

importante nos remetermos à conjuntura política da época em que Iacopo escreve: a primeira metade da última década do século XIII. Nesse momento não há um imperador. Com a morte de Frederico II em 1250 e a do último Staufen em 1266 essa ameaça imperial deixa de se fazer presente nas preocupações das comunas italianas. Atentar para essa informação enfraquece essa disposição de sujeição a imperadores postulada por Iacopo, mas não a de autogoverno.

103 protagonistas o imperador Frederico II e a comuna de Gênova. A trama do primeiro exemplo trata da eleição de um podestà contestada pelo monarca:

No ano do Senhor de 1233, pelo fato de os genoveses terem eleito podestà o nobre Pagano de Pietrasanta, milanês, contra a ordem do imperador, o imperador se irritou a tal ponto que fez prender todos os genoveses que se encontravam no reino. Também ordenou a seu marechal, que se encontrava nas regiões ultramarinas, que fossem feitos prisioneiros todos os genoveses que se encontravam lá. Mas os genoveses enviaram dez galés e duas naves e obtiveram todo o controle do mar. E em seguida o imperador concedeu que todos aqueles que foram feitos prisioneiros no reino fossem libertados.272

O segundo, de um juramento de fidelidade:

Naquele mesmo ano [1238] o imperador Frederico enviou à Gênova os seus embaixadores com uma carta, pedindo o juramento de fidelidade e de homenagem. Mas os genoveses absolutamente se recusaram fazer esse juramento e reenviaram os embaixadores imperiais de mãos vazias.273

O que se tem nessas duas passagens é a negação do poder imperial sobre a cidade tanto na

prática política ordinária (no caso da eleição do podestà) quanto na teoria (ao não prestar o

juramento): o episódio de 1238 confirma em termos diplomáticos o que já havia sido atestado na prática no ano de 1233. Há, então, uma incongruência de postulados na Crônica? Cremos que não. Ao fazer essas afirmações aparentemente contraditórias, o que Iacopo nos afirma é que Gênova se submetia livremente quando e a qual imperador ela desejasse. Atestar isso não é o mesmo que uma negação categórica da autoridade imperial enquanto ideal. Essa, em termos teóricos, é reconhecida e aceita: essa figura política possui jurisdição sobre o regnum

Italicum e estando Gênova nele inserido, ela lhe é sujeita. Iacopo tem plena consciência disso.

Em certa altura de sua Chronica ele afirma que o imperador é coroado três vezes, sendo que a segunda delas, a que ocorria em Monza e por meio de uma coroa de ferro, consagra-o como rei da Itália. A terceira, por sua vez, confirma-o como imperador romano, isto é, como o detentor do ius imperii – que em seus dias, como é declarado, está de posse dos

272Chronica, p. 490. “Anno Domini .Mo.CC.XXXII., cum Ianuenses elegissent [in] potestatem dominum

Paganum de Petra sancta, Mediolanensem, contra mandatum imperatoris, in tantum imperator turbatus est, quod omnes Ianuenses, qui erant in regno, capi fecit. insuper marescalco suo, qui erat in partibus ultramaris, mandavit ut Ianuenses omnes ibi caperentur. Sed Ianuenses galeas decem et naves duas illuc miserunt et totum maris dominium habuerunt. Imperator autem postmodum omnes, qui capti in regno fuerant, abire dimisit”.

273Chronica, p. 490-491. “Hoc [anno] imperator Fredericus misit Ianuam suos ambaxatores cum litteris, petens

sacramentum fidelitatis et homagium. Sed Ianuenses tale sacramentum facere penitus renuerunt et nuncios imperatoris vacuos remiserunt”.

104 germânicos.274 Porém, essa autoridade é de certa forma negada tendo em vista a pessoa que em um dado momento desempenha esse cargo. Com isso, o que se tem nesses trechos é mais uma negação da autoridade encarnada naquela época por Frederico II – que segundo o cronista se portava como um tirano275 - do que do imperador em termos gerais e teóricos. Assim como seu avô, Frederico I Barbarruiva, esse monarca foi um dos que mais entraram em conflito com as comunas do Regnum Italicum, infligiram danos a essas cidades e tentaram cercear certas liberdades, como a de escolha de certos funcionários públicos.276

Até esse ponto a mensagem passada pelo nosso cronista é confirmada pela historiografia: as comunas submetiam-se ou levantavam-se contra o poder imperial de acordo com seus interesses particulares e de cada momento.277 No entanto, é preciso ainda atentar para o caráter propagandístico da obra de Iacopo. Como afirmado por ele, a única autoridade a qual a sua communitas se subjugava em tudo era Deus.278 Como consequência disso, Gênova se submeteria então ao sumo pontífice. Tal afirmação – cuja relação apresentada não era de

274Chronica, p. 472-474. “Coronatur autem imperator tribus coronis. Primo enim coronatur corona argentea

Aquis Grani in regem Alamanie. Secundo coronatur corona ferrea apud Modoetiam, que est in comitatu Mediolanensi, in regem Ytalie. Tercio coronatur corona aurea Rome per summum pontificem, in Romanorum imperatorem (...) Et quoniam de imperio facta est mencio, ideo sciendum est quod sedes imperialis et ius imperij primo fuit apud Romanos (...) Et sic in Karolo ius imperij translatum est ad Francos, et tenuerunt ipsum per annos centum, tandem fuit quidam imperator de gente Francorum et de genere Karoli, nomine Lodovicus, qui sine liberis mortuus est. Et ideo Theotonici quendam Theotonicum, nomine Conradum, in regem Alamanie elegerunt, qui postmodum a papa coronatus fuit in imperatorem et sic ius imperij translatum est ad Theotonicos circa annos Domini nongento triginta, quod etiam usque hodie tenent”. [“O imperador é

coroado com três coroas. Primeiro é coroado rei da Alemanha com uma coroa de prata em Aquisgrano. Em segundo é coroado rei da Itália com uma coroa de ferro em Monza, que se encontra no contado de Milão. Em terceiro é coroado imperador romano com a coroa de ouro pelo sumo pontífice em Roma (...) E do momento em que falamos do império, deve-se saber que em um primeiro tempo os Romanos detiveram a sede imperial e o ius imperii (...) Na pessoa de Carlos (Magno) o direito imperial foi transferido aos francos, e eles mantiveram-no por cem anos, até que houve um imperador do povo franco e da família de Carlos, de nome Ludovico, que morreu sem filhos. E por isso os Teutônicos elegeram rei da Alemanhã um Teutônico de nome Conrado, o qual logo foi coroado imperador pelo papa e assim o direito imperial foi transferido aos Teutônicos, por volta do ano do Senhor de 930, que mantêm-no até os dias de hoje”]. Tradução nossa.

275Chronica, p. 473. “Innocentius quoque .IIII.s deposuit Fredericum, qui contra Ecclesiam tyrannidem

exercebat”. [“Inocêncio IV depôs Frederico (II), que contra a Igreja exercia a tirania”].

276GILLI, op. cit., p. 27-39. 277

Ibid., p. 36-37.

278Devemos lembrar que, quanto a isso, não há uma separação clara e definitiva entre a communitas (aqui

entendida como commune, comuna) como uma entidade político-civil e como religiosa (conjunto de homens que professam a mesma fé). Segundo Augustin Thompson, quando no século XII as comunas se desvincularam do poder imperial, elas passaram a sofre como que de uma carência de dignidade e raízes antigas que as ligasse ao passado e, assim, as fornecesse a legitimidade civil desejada. Por conta disso, a suas organizações políticas com base em aspectos religiosos – onde os santos, intercessores na relação entre homem e Deus, desempenharam um papel de fundamental importância – tinha por finalidade suprir essa falta e substituir o imperador. A communitas enquanto commune, portanto, é sincronicamente uma instituição civil

105 unânime aceitação no século XIII, é preciso afirmar279 - decorre de um esforço empreendido pelo arcebispo para caracterizar sua cidade como sempre diligente às causas da cúria papal durante toda a sua história, desde a sua fundação até o momento em que o autor compõe sua obra (mesmo que os indícios históricos e o tempo presente do cronista provassem o contrário280):

De fato, todas as vezes em que os reis, príncipes ou imperadores desejaram contradizer a Igreja, os genoveses, sempre, com fé imperturbável e devoção

279

Tomando emprestada do Speculum Doctrinale de seu colega dominicano, Vicente de Beauvais, a metáfora que mobiliza a figura da lua e do sol para indicar respectivamente às dignidades temporais e espirituais, Iacopo de Varazze se posiciona conceitualmente no debate sobre qual delas teria preeminência no comando da Ecclesia. No capítulo dedicado a Otão, décimo-oitavo arcebispo genovês, o cronista comenta a eleição do papa Gelásio II que ocorreu sem o consentimento do imperador Henrique V do Sacro Império Romano-Germânico: “Esse imperador se movimentou contra o papa Gelásio injusta e irracionalmente, porque o imperador não possui direito algum sobre o sumo pontífice, mas, ao contrário, o sumo pontífice exerce muita jurisdição sobre o imperador, pois examina depois de eleito e, depois de examinado, confirma-o (...) O papa, assim, deve julgar o imperador, não o imperador julgar o papa. No firmamento do céu Deus fez dois grandes astros. O astro maior para governar o dia e o astro menor para governar a noite. Então, no firmamento de céu, isto é, na

Ecclesia universal, Deus fez dois grandes astros, pois as duas instituem duas dignidades, que são a dignidade

pontifical e a real ou poder imperial. Mas aquela que governa os dias, isto é, as coisas espirituais, é maior. Em verdade, aquela que governa as noites, isto é, as coisas carnais, é menor; de modo que é reconhecida que a diferença entre a lua e o sol é a mesma entre o sumo pontífice e o imperador. Assim como a lua não oferece nada ao sol, mas o sol infunde à lua toda luza, o imperador não possui nenhuma autoridade sobre o sumo pontífice, mas o sumo pontífice exerce muita jurisdição sobre o imperador; disse o Apóstolo: ‘O espiritual julga tudo e ele mesmo por ninguém é julgado’. Desse modo, não só o papa deve examinar a eleição do imperador, confirmar e coroá-lo, mas também, exigindo sua culpa e obstinação, pode depô-lo do império (...)” [“Iniuste autem et irrationabiliter iste imperator contra papam Gelasium motus fuit, quia imperator supra

summum pontificem ius aliquod non habet, sed pocius, e converso, summus pontifex supra imperatorem iurisdicionem multam exercet, quia electum examinat, examinatum confirmat (...) Papa igitur de imperatore habet iudicare, non imperator de papa. Fecit enim Deus in firmamento celi duo magna luminaria. Luminare maius ut preesset diei et luminare minus ut preesset nocti. Nam in firmamento celi, hoc est in Ecclesia universali, Deus fecit duo magna luminaria, quia ibi duas instituit dignatates, que sunt pontificalis dignitas et regalis seu imperialis potestas. Sed illa, que preest diebus, idest spiritualibus, maior est. Illa vero, que preest noctibus, idest carnalibus, minor. Ut quanta est inter lunam et solem, tanta est inter summum pontificem et imperatorem differencia cognoscatur. Sicut igitur luna soli nichil tribuit, sed sol lune totam lucem infundit, sic imperator supra summum pontificem nullam habet auctoritatem, sed summus pontifex super imperatorem multam exercet iurisdicionem, dicente Apostolo: ‘Spiritualis omnia diiudicat et ipse a nemine iudicatur’. Non solum autem papa electionem imperatoris habet examinare, confirmare et ipsum coronare, sed etiam, exigente sua culpa et contumacia, potest ipsum ab imperio deponere (...)”]. Atenta-se para o fato de que o que

Iacopo chama de dignidade pontifical (pontificalis dignitas) é chamado por Vicente de Beauvais de

autoridade pontifical (pontificalis auctoritas); e o que o nosso arcebispo chama primeiramente de dignidade real (regalis dignitas – mas depois imperialis potestas), é intitulado poder real (regalis potestas) pelo

segundo. De certo modo, portanto, Vicente de Beauvais foi mais enfático ao distinguir as duas dignidades (uma como auctoritas e outra como potestas) que, em um primeiro momento, foram igualmente caracterizadas como dignitas por Iacopo. Acreditamos, contudo, que há uma diferença entre auctoritas e

potestas e que o uso feito desses termos por parte Vicente (e de modo mais atenuado por Iacopo) não foi

fortuito, mas se deu como um preciso emprego linguístico destinado a reforçar essa diferenciação. Para isso, cf. a discussão que será feita sobre o conceito de auctoritas segundo a formulação romana antiga na seção 3.1.1.2. Cf, Chronica, p. 472-473; VINCENTUS BELLOVACENSIS, Specula Mundi, Douai, 1624. Liber II, cap. 32, col. 579.

280 Basta lembrarmos que desde a década de 1270 o governo genovês esteve nas mãos da facção gibelina,

configuração essa que permaneceu, com o apoio do popolo, até 28 de outubro de 1291 e que retornaria no fevereiro de 1296. Cf. p. 60, 74.

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cuidadosa, permaneceram vinculados à Igreja, sem temer os poderes dos reis, sem se assustarem frente à animosidade dos príncipes, ignorando as ameaças e todas as ordens dos imperadores [...] os genoveses resistiram com toda força em favor da Igreja a Frederico I, Otão, Conrado e Frederico II, imperadores excomungados pela Igreja e cismáticos.281

Segundo Stefania Guidetti, esse alinhamento ao papado que o cronista procura construir em sua obra tem sua razão (ou uma delas) no próprio projeto de fortalecimento da figura (arqui)episcopal empreendido por Iacopo ao assumir o cargo de chefe da Igreja genovesa, como visto no capítulo anterior. Tendo Deus, na pessoa de Cristo e dos apóstolos, instituído os bispos com o objetivo de tutelar a liberdade e a fé no Salvador, a sujeição às autoridades eclesiásticas (sendo o papa o bispo de Roma e a primeira dentre elas) seria de suma importância e necessidade para garantir que todos os componentes sociais de uma comunidade se portassem conforme os modos de vida pertinentes ao cristianismo. A maior ênfase dada pelo cronista à submissão devida ao papa do que a referente a um poder secular como o do imperador reflete, portanto, a própria autoridade que Iacopo deseja que lhe fosse reconhecida como arcebispo da Igreja de Gênova frente à comunidade política daquela cidade. Assim, o que está em jogo é mais uma celebração da autoridade eclesiástico-episcopal do que a negação da secular - o que era de fundamental importância para o arcebispo genovês que tentava produzir um instrumento político capaz de manter a sua comunidade no estado de paz e concórdia ao qual havia sido conduzida por ele mesmo em janeiro de 1295.282 A observação desse intuito publicístico, todavia, não anula a validade das afirmações feitas anteriormente. Uma das questões centrais referente à comunidade política enquanto comuna permanece sendo a do autogoverno citadino.

Falar em autonomia e governo sobre si mesmo aponta, então, para o tema da liberdade na esfera do poder temporal. Como já exposto - conforme o significado subordinado ao termo

communitas na Chronica - uma comunidade só pode ser caracterizada e, por conseguinte,

denominada de política ao ser formada por cidadãos, isto é, por homens livres.283 Uma

281Chronica, p. 375-376. “Si enim aliquando reges vel principes vel imperatores Ecclesie contradicere

voluerunt, Ianuenses semper, fide inconcussa devotione sedula, Ecclesie adheserunt non timentes potentias regum, non formidantes animositates principum, parvipendentes minas et precepta imperatorum (...) Frederico primo et Octoni et Conrado et Frederico secundo imperatoribus ab Ecclesia excommunicatis et sismaticis Ianuenses totis viribus in favorem Ecclesia restiterunt (...)”.

282GUIDETTI, op. cit., p. 57. Lembremos também que todos esses trechos da Chronica (tanto os dois sobre os

embates com o poder imperial quanto o que apresenta a única manifestação o termo communitas) se encontram na seção de anais da crônica, onde Iacopo estabelece os bispos e arcebispos como fio condutor da narrativa histórica de sua cidade.

283

A plena expressão da consciência de que o cidadão é parte basilar da estrutura de uma comunidade política mostra-se no fato de Iacopo ter dedicado uma das partes tratadísticas de sua obra para propor seu modelo ideal

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de cidadão, de modo que a manutenção de um correto funcionamento sócio-político da cidade dependeria não só dos governantes, mas também de todos os cidadãos ordinários que compunham a comunidade política. No entanto, é preciso que alguns esclarecimentos sejam feitos quanto a essa VIIIª parte: ao adiantar a seu público o conteúdo das partes no prólogo da Chronica, Iacopo afirma que nela “contém como devem ser os cidadãos

e habitantes de cidades” [“Octava pars continet quales debent esse ipsis cives et habitatores civitatum”].

Nota-se que Iacopo fala em cidadãos e habitantes, de modo que o cronista expressa consciência de que nem todos que se fazem presentes nas cidades são cidadãos – mas mesmo assim deveriam se conformar a essas regras. Todavia, ao falar dos conteúdos dos três capítulos que compõem essa parte (linhas essas que são repetidas de maneira idêntica na introdução da referida parte), o cronista acaba circunscrevendo mais ainda seu interesse, pois fala apenas em cives e não mais em habitatores. Já no título do primeiro capítulo, Iacopo especifica ainda mais seu interesse, pois nele afirma-se “que os conselheiros de cidades devem ser sábios e

maduros” [“Quod consiliarii debent esse sapientes et maturi”]: já não se faz referência direta ao cidadão

entendido de maneira ampla, mas refere-se diretamente aos consililiarii civitatum, uma magistratura pública. Percebe-se, então, a circunscrição do interesse de tratar do cidadão em um local específico: em um conselho da comuna (porém sem ser exato ao precisar quando dos conselhos). Sendo assim, ao traçar as linhas gerais de um cidadão modelo para Gênova, o arcebispo viu-se levado a referir-se impreterivelmente a uma das principais funções públicas que poderia ser exercida pelo cidadão. O interesse do cronista nesse primeiro capítulo, portanto, recai sobre esse personagem em atividade política, tomando parte do expediente público- administrativo da comuna. Quanto aos outros dois capítulos dessa VIIIª parte, Iacopo volta a falar em cives sem fazer referência alguma a algum cargo da política comunal. Posto isso, percebe-se que o escopo começa fechado naqueles que desempenham função pública e, posteriormente, se abre para todos os cidadãos (ou até mesmo o habitatores) sem que isso implique na sua participação política. A percepção dessas nuanças nos coloca um questionamento: quais eram então os cidadãos que estavam aptos a desempenharem uma magistratura pública como a de conselheiro? A respeito disso o historiador Giuliano Milani afirma que no século XIII - graças a um crescimento econômico que colocava um número cada vez maior de indivíduos na condição de procurar os recursos e o tempo para combater a cavalo – houve uma espécie de maior acessibilidade à militia, a categoria social que, na época consular (século XII) dominava o cenário da política – enquanto o restante dos cidadãos tinha acesso somente à concio, o Conselho Geral da comuna. Todavia, o aumento do número dos milites acabou por gerar, principalmente nos últimos trinta anos do século XIII,