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3 COMUNIDADE POLÍTICA E BEM COMUM NA CHRONICA CIVITATIS

3.1 Comunidade Política na Chronica de Iacopo de Varazze

3.1.1 Communitas

3.1.1.3 Communitas, Humilitas e Æqualitas

Além de estabelecer a relação entre a communitas e uma origem comum, o segundo sermão proposto para a segunda-feira após a Páscoa no Sermones Quadragesimales coloca

constante na história universal que deveria nutrir a consciência civil – dando aos cidadãos um passado digno de ser vangloriado de da fama da cidade - e reabilitar o presente (final do século XIII) de Gênova.

329Apesar disso, Stefania Guidetti e Franco Cardini, entre outros historiadores, fizeram uma leitura equivocada

da Chronica e afirmam que esse terceiro Janus foi um dos fundadores de Gênova. Contudo, em momento algum de sua obra o arcebispo se referiu a ele como fundador da cidade: ele apenas alerta que há outro Janus que, apesar de ter sido cultuado pelos genoveses antes da conversão da cidade, não deve ser confundido com nenhum dos seus dois fundadores. Outro engano análogo a esse é o de afirmar que o primeiro Janus é descendente de Nemroth, o fundador da segunda cidade segundo o relato do livro Gênesis. Iacopo não fala que esse Janus era de sua linhagem, mas apenas que ele foi um dentre os que, após a destruição da Babilônia de Nemroth, chegaram à Itália a partir do Oriente e lá fundaram cidades. Para as passagens da Chronica que acabam com esses equívocos, conferir nota 312.

330Chronica, p. 344. “Verum est tamen quod Rome fuit quoddam templum, quod vocabatur Ianiculum, quod

Romani in honorem Iani, dei ipsorum, edificaverunt, sicut dicit sanctus Ysidorus et sicut dicetur infra. Si igitur aliqui vellent dicere quod istud Ianiculum sit illa Ianicula, de qua dicit Solinus, quam Ianus, rex Ytalie, edificavit, istud stare non potest. Quia Ianus, rex Ytalie, per annos .DC. et amplius fuit antequam Roma edificaretur, sicut ex cronicis manifeste habetur, et ideo impossibile est quod ipsum templum edificare potuerit”.

121 em pauta também a questão da humildade (humilitas) e da igualdade (equalitas331). No entanto, o texto não estabelece, pelo menos de maneira imediata, uma ligação entre esses dois termos e a comunidade, limitando-se apenas a apontar que Cristo as possuía. A partir dessa possessão comum, cremos que há de fato uma associação a ser realizada entre todas essas características – e que assim como foi possível demonstrar para a relação entre communitas e

origem comum, que a valoração que foi atrelada aos termos no sermão pode encontrar um

correspondente em sentido político na Chronica.

Para que seja possível manter uma communitas é preciso que haja senso de humildade por parte de seu líder; que todos sejam tratados com igualdade; e algo que una essas pessoas, que seja comum a todas elas. No caso exemplar dado pelo sermão, Jesus (o líder) era humilde (pois falou primeiramente com a mulher insignificante – parve mulier - que era Maria Madalena) e tratou a todos com igualdade ao não excluir ninguém de seu chamado. Essa ação possibilitou a manutenção daquela comunidade visto que aquelas pessoas possuíam previamente algo que lhes era comum – no caso, o mesmo Pai, a mesma origem. Transpondo essa reflexão para a Chronica e para o âmbito da política do governo da cidade, a humilitas e a æqualitas seriam necessárias para a formação e manutenção de uma communitas. Vejamos como isso se daria segundo a documentação.

Sobre a humildade, no terceiro capítulo da parte VI da Chronica que trata d’O grande

perigo que deriva de um mau regime e a grande utilidade do bom regime332, Iacopo afirma o seguinte:

A fim de que o governante não se deixe levar pela soberba e tirania, deve se reconhecer como homem mortal, cuja pena será tanto mais grave quanto for cruel ao infligir injúrias. Assim disse no livro da Sabedoria: ‘Um maior tormento espera os mais fortes e os poderosos padecerão de poderosos tormentos’. Essa consideração manterá no temor os governantes e os conservará na humildade.333

331A grafia dessa palavra no latim clássico seria æqualitas. No entanto, a forma utilizada pelo frade no seu

sermão é exatamente como a apresentada no corpo do texto. Sendo assim, quando citarmos uma passagem da crônica em que a palavra foi empregada, seguiremos a grafia do autor; quando formos nos referir ao conceito por nossa própria conta, seguiremos o modo clássico.

332Chronica, p. 389. “Quod Magnum periculum provenit ex regimine malo et magna utilitas ex regimine bono”. 333

Chronica, p. 390. “Ne igitur rector in superbiam et tyrannidem convertatur, debet recognoscere se esse hominem mortalem, cuius pena tanto erit gravior, quanto ad irrogandas iniurias fuerit crudelior. Unde dicitur in libro Sapientie: ‘Fortioribus fortior instat cruciatio et potentes potenter tormenta patientur’. Talis igitur consideratio rectorem tenebit in timore et conservabit in humilitate”. Logo em seguida a essa

passagem, o cronista acrescenta: “Por isso os romanos, quando alguns cônsules retornavam vencedores, faziam três ações que eram feitas pela honra e três que era feitas para conservar a humildade. Como referiu Túlio [Cícero] (...) para que não se elevassem muito pela vitória conseguida e pela grande honra que lhes

era feita, então por três maneiras moderavam a sua vitória e sua honra. A primeira era colocando no carro

com eles um homem de baixíssima condição com uma veste preciosa, para dar a cada um, mesmo que paupérrimo, a esperança de poder chegar a tal glorificação, se o seu valor o permitisse. A segunda era que

122 O risco da tirania havia sido assinalado pouco antes pelo cronista. Segundo seu escrito,

“tirano, e não governante, é chamado quem sempre deseja a utilidade própria e não busca a utilidade comum do povo, quem não zela pela república”.334

Sendo assim, conforme esses postulados, a boa organização político-social e a manutenção de uma communitas dependeriam em certa medida de uma política pautada em humildade, de modo que não é a instituição política ou o sistema de governo (ou seja, a forma de soberania) que garantiria esse bom ordenamento, mas o modo de ação do governante - que, por sua vez, é proveniente de seus vícios e virtudes.335 No caso específico, o modo indicado pelo arcebispo para se assegurar uma conduta reta seria relembrar aos poderosos o que poderia lhes ocorrer caso não atuassem por meio da humilitas. É importante notar, também, que o problema do bem comum é central nessa passagem na medida em que somente o rector é capaz de garantir a preeminência do que é útil a todos os componentes da communitas sobre os interesses e utilidades particulares.336

aquele homem segurava em punhos o próprio vencedor dizendo: ‘Conhece a ti mesmo e saibas que és mortal’. A terceira coisa era que todos naquele dia podiam dirigir-lhes os insultos que desejasse, para que assim, humilhados, não se elevassem” [“Talis igitur consideratio rectorem tenebit in timore et conservabit in

humilitate. Unde Romani, quando aliqui consules redibant victores, tria eis faciebant, que erant in honorem et tria que erant ad humilitatis conservationem. Sicut refert Tulius (...) ne vero ex acquisita victoria et

impenso honore supra se nimis elevaretur, ideo eius victoriam et honorem tripliciter temperabant. Primo,

quia unus homo infime conditionis precisa veste indutus secum in curru ponebatur, ut cuilibet, quantumcumque infimo, spes daretur perveniendi ad talem honorem, si probitas mereretur. Secundo, quia ille homo ipsum victorem colaphis cedebat dicens: "Cognosce te ipsum et scito te esse mortalem". Tertio, quia quilibet illo die dicere sibi poterat obprobria, que volebat, ut sic humiliatus non efficiatur elatus”]. Tradução

e grifos nossos.

334

Chronica, p. 389. “Tirannus, non rector, est dicendus qui propriam utilitatem semper appetit et communem utilitatem populi non requirit, qui rempublicam non procurat”. Aqui, então, identifica-se já o primeiro ponto

de encontro entre a communitas e o bem comum (bonum commune, utilitas publica) que será analisado na segunda parte desse capítulo.

335

A partir dessas observações nos colocamos em relativa concordância a tese de Michel Senellart que afirma que o regimen (o modo do exercício do poder soberano) precedeu o regnum (a forma da soberania) até o século XII. Afirmamos esse alinhamento ser relativo por dois motivos. O primeiro devido ao fato de Senellart trabalhar mais com as ideias relativas à monarquia - o que não estava nem debate na Chronica de Iacopo de Varazze - de modo as atestações a partir da documentação demonstram que, na verdade, essa precedência do

modo de exercício do poder soberano não se dava somente em relação à forma monárquica de soberania, mas

também quanto a comunal. Como será demonstrado logo mais no corpo do texto, o próprio fato de Iacopo não ter estabelecido uma ou mais formas de soberania como ontologicamente melhores que outras reforça essa ideia. O segundo fator que faz nossa concordância com Senellart ser relativa se dá quanto à datação. Segundo esse filósofo, a primazia do regimen se deu somente até o século XII. No entanto, tendo a Chronica sido composta no final do XIII, deveríamos, então, estender esse marco final até os derradeiros anos desse século. Cf. SENELLART, op. cit., p. 41-45.

336

Conforme afirma Senellart, todo o pensamento político ocidental desenvolvido a partir de Agostinhos até o século XV “é atravessado pela oposição entre ‘regere’ (dirigir, governar, comandar) e dominar, que subjaz

à antítese do ‘rex’ e do tirano. ‘Regere’, a atividade de reger, de conduzir um povo, é portanto o contrário da dominação (...) [é] um conceito específico de ‘governo’ contra a prática da ‘dominatio’”. Segundo

123 Posto isso, resta então verificarmos qual seria a relação entre a æqualitas e

communitas. No sermonário no qual esses dois termos foram utilizados em certa associação, o

nexo estabelecido entre eles não diz respeito a uma suposta igualdade existente entre os membros de uma comunidade, mas ao tratamento igual que lhes foi oferecido pelo seu líder. Esclarecido isso, retornemos então à Chronica para aferirmos se essa significância se fez de alguma forma presente com sentido político ou com valoração política.

No primeiro capítulo da sétima parte da Chronica (na qual o cronista trata das qualidades exigidas dos que governam), o arcebispo afirma que os governantes devem ser poderosos e magnânimos para julgarem sem temor.337 Possuindo essas qualidades, os governantes seriam capazes de extirpar a iniquidade (iniquitates) sem temer outro poderoso que pudesse obstruir a justiça. Caso contrário, punir-se-iam somente os simples e pobres (simplices et pauperes), mantendo os poderosos e ricos (potentes et divites) inumes à ação judiciária. Para essa última afirmação, além da fonte bíblica338, o arcebispo busca também a autoridade dos antigos, mais especificamente Valério Máximo, para trazer a metáfora das leis humanas e a teia das aranhas: as primeiras seriam como a segunda; os animais pequenos seriam capturados e comidos, enquanto os grandes arrebentariam a teia e passariam por ela; do mesmo modo, os pobres seriam presos e punidos pelas leis humanas, enquanto os ricos e poderosos não seriam presos por elas. Todavia, afirma o arcebispo, os pequenos e grandes devem igualmente submeter-se às leis.339 Como confirmação desta atestação, Iacopo cita um

que o primeiro é norteado pela disciplina e benevolência, enquanto o segundo se dá em razão do orgulho e luxúria. Cf. SENELLART, op. cit., p. 20, 71.

337

Chronica, p. 392. “Quod rectores debent esse potentes et magnanimes ut sine timore iudicente”. [“Que os

governantes devam ser poderosos e magnânimos para julgarem ser temor”].

338II Paralip., XIX 6-7. “Veja aquilo que faz, pois não julga em nome dos homens, mas pelo Senhor, o que estará

convosco sempre que julgar. Que o temor a Deus esteja convosco e que faças tudo com diligência; Pois junto ao nosso Senhor não está nenhuma iniquidade; Ele não tem preferência pessoal nem desejo por presentes” [“Videte quid faciatis. Non enim hominis exercetis iudicium, sed Dei et quodcumque iudicaveritis, in vos

redundabit. Sit timor Domini vobiscum et cum diligentia cuncta facite. Non est enim apud Dominum nostrum iniquitas nec acceptio personarum nec cupido munerum"]. Tradução nossa.

339Chronica, p. 392-393. “Devem, então, [os governantes] serem poderosos e magnânimos para poderem julgar

sem temor e em seu juízo não temer a ninguém (...) Esse governantes [os maus] e juízes tímidos e injustos usam um duplo peso, isto é, uma sentença leve e uma grave, de modo que dão a leve sentença contra os ricos e poderosos quem mais oferta mais ofenderam; e a mais grave contra os pobres, que cometeram delitos menores. Sobre isso, Valério Máximo diz que os filósofo Anacársis comparava as leis e os estatutos dos homens às teias das aranhas. Pois do mesmo modo que os insetos pequenos, que passam na teia são capturados e o mortos, ao invés os animais maiores arrebentavam a teia e livremente passavam através dela; do mesmo modo também os pobres são capturados e punidos pelas leis humanas, enquanto os ricos e os poderosos não são presos, e, todavia, tanto os pequenos quanto grandes devem igualmente se submeterem à leis. E por isso é dito no Eclesiástico [reelaboração de Ecclesiastic., IV 9, 27]: ‘Trate com justiça o ínfimo e o grande de modo similar’. E no livro da Sabedoria [Sap., VI 7] é dito a respeito ao Juiz Universal: ‘Pois Ele fez o ínfimo e o grande, e cuida de todos igualmente’” [“Debent igitur esse potentes et magnanimes, ut sine

124 trecho bíblico que assegura essa igualdade de tratamento (Sap., 6, 7)340. É importante notar que Iacopo não coloca em xeque a qualidade de justiça341 das leis, mas sim a aplicação delas. O cronista afirma que “tanto pequenos quanto grandes devem igualmente submeter-se às

leis”.342

Elas, em si, não são tomadas como defeituosas, mas seu emprego.343

A relação entre lei e justiça na Bíblia, conforme demonstrada por Walter Ullmann, se dá de forma direta: os criadores de leis são quem decretam a justiça (Prov. 8, 15).344 As leis, portanto, são a própria justiça. Elas também estão em estreita relação com a manutenção do bem estar da comunidade regida por elas. Os que as transgridem (injustos, portanto) deixam de lado a utilidade pública e preocupam-se somente com o bem particular. Em metáfora corporal: assim como a alma rege o corpo, as leis regem o corpo político mantendo a unidade das instituições públicas. No interior da lógica ‘anima-corpus’, as leis possuiriam as mesmas características da alma: eternidade, imortalidade e existência transcendental. As leis não seriam uma invenção humana, mas dada a eles por Deus; elas viveriam sem as instituições

et iniusti habent pondus et pondus, idest sententiam levem et gravem, ita quod levem sententiam dant contra divites et potentes, qui plus offenderunt, et graviorem contra pauperes, qui minus deliquerunt. Unde dicit Valerius quod Anacharsius philosophus leges et statuta hominum assimilabat telis aranearum. Sicut enim parva animalia per illas telas transeuntia capiuntur et occiduntur, animalia vero grossiora illas telas frangunt et libere transeunt; sic etiam humanis legibus pauperes astringuntur et puniuntur, divites vero et potentes illis legibus non alligantur, et tamen tam parvi quam magni deberent legibus equaliter subiacere. Ideo dicitur in Ecclesiastico: ‘Iustifica pusillum et magnum similiter’. Et in libro Sapientie dicitur de universali Iudice: ‘Quoniam pusillum et magnum ipse fecit, et equaliter est sibi cura de omnibus’"]. Tradução

e grifo nossos. Nota-se que tanto o termo æqualiter quanto a significância atrelada a ele (tratamento igual) são os mesmo que foram empregados no sermão onde originalmente encontramos a palavra e o significado gravitando em torno de communitas.

340Sap. VI 7: “Non enim subtrahet personam cujusquam Deus, nec verebitur magnitudinem ejus cujusquam,

quoniam pusillum et magnum ipse fecit, et æqualiter cura est illi de omnibus”. [“Pois o Senhor a ninguém

teme. Não se deixa impressionar pela grandeza; pequenos e grandes, foi ele quem os fez: com todos se preocupa por igual”]. Tradução e grifo nossos.

341Segundo Skinner, o termo latino æquitas - cuja origem é a mesma de æqualitas, ou seja, o termo equus (cujos

significados são os seguintes: Igual, justo, imparcial) – foi largamente usado por autores pré-humanistas como referente à ideia de justiça entre indivíduos em contraste com malícia, traição ou inflição de danos. As concepções de Cícero em De officiis teriam sido as principais fontes dessas formulações. Cf. SKINNER, op.

cit., vol. 2, p. 49-51.

342

Cf. nota 339.

343Obviamente que a igual sujeição às leis implica em uma desigualdade no que se refere à sua aplicação no

sentido de que cada caso deve ser julgado de acordo com a gravidade do delito e punido conforme previsto. Essa consciência se faz presente no nosso cronista no segundo capítulo da parte VII, no qual ele esclarece-se que o governante “depois de ter indagado e determinado a culpa, deve ponderar sobre a balança de seu julgamento e seus juízos e ver quais são mais graves e quais são mais leves. Deve punir o mais grave gravemente e o mais leve levemente” [“(...) postquam culpas inquisivit et invenit, debet eas in statera sue

discretionis et iudicii ponderare et videre que sint graviores et que sint leviores. Graviores debet punire graviter et leviores leviter (...)”]. No capítulo seguinte, isso é novamente afirmado: “Assim [juízes e

governantes] não devem punir todas as culpas igualmente, mas aqueles leves devem punir levemente, aqueles médias de modo mediano e aquelas graves gravemente” [“Non enim debent omnes culpas punire

equaliter, sed leves debent punire leviter, medíocres mediocriter et graves graviter”]. Cf. Chronica, p. 395,

398. Tradução e grifo nossos.

125 públicas que, por sua vez, desapareceriam sem as leis, assim como o corpo não vive sem a alma, mas a alma vive sem o corpo.345 Conforme uma passagem bíblica citada literalmente por Iacopo no segundo capítulo da parte VII – a mesma a qual nos referimos há pouco - o homem não exercita a sua justiça, mas a de Deus346, ou seja, aplica as leis divinas. Portanto, o que está em jogo quando Iacopo afirma a necessidade da correta aplicação das leis vai além da injustiça para com uma pessoa em particular, mas corresponde à própria condição de existência da communitas, a realização da vontade divina na Terra e, por conseguinte, a salvação da cidade.347 Nesse sentido, Gênova é entendida como uma pessoa coletiva que, mesmo tendo sido fundada sob a marca do pecado (assim como todas as cidades), pode, após sua conversão, alcançar uma ideal formação e funcionamento no século, bem como a salvação por meio de escolhas salutares.348 Para tanto, a justiça seria o valor principal do cidadão e do governante. É por isso que os conselheiros da comuna devem por ela prezar349 e que o chefe

da cidade (além das razões bíblicas já expostas) é chamado de “governante ou juiz”.350

Em suma, a relação entre communitas, humilitas e æqualitas que conseguimos identificar na Chronica diz respeito à atividade política do governante, de modo que as duas últimas são condições para que a primeira se dê de modo ideal. Cabe ainda notar que o aviso que é dado em prol da conservação da humildade - que faz referência ao Juízo Final ao qual todos são igualmente submetidos351 - aponta para o modo como o próprio governante deve

345ULLMANN, Walter. La Biblia y los principios de gobierno em la Edad Media. In: ULLMANN, Walter.

Escritos sobre Teoria Política Medieval. Espanha: EUDEBA, 2003. p. 130-133, 139-140.

3462Par. XIX 6. “Videte quid faciatis. Non enum hominis exercetis iudicum, sed Dei”. [“Vede o que fazes. Pois

não exercitas ajustiça do homem, mas de Deus”]. Para o trecho da crônica no qual ele é transcrita, cf.

Chronica, p. 394.

347Nota-se que, assim, a importância da igual sujeição às leis possui importância tanto terrena quanto

transcendental.

348

BOUREAU, op. cit.. p. 110.

349Chronica, p. 405, 407. Na última página referida o autor estabelece que os “conselheiros devem odiar a

crueldade e amarem a igualdade” [“(...) consiliarij debent odire crudelitatem et diligere equitatem”]. Tradução e grifo nossos.

350Chronica, p. 396, 398. “Rector sive iudex”. BOUREAU, op. cit., p. 111.

351No sexto capítulo da parte IX, sobre o “modo [que] os patrões devem comportar-se com os escravos e os

domésticos e os escravos com os patrões”, Iacopo afirma que, apesar dos escravos serem inferiores aos seus patrões, são cinco as igualdades que partilham. Dentre elas, a quinta corresponde ao Juízo Final: “A quinta igualdade deriva dos últimos juízos, pois todos, tanto os livres quanto escravos, virão diante ao juízo de Deus e renderam razão de todas as suas ações, e lá receberão a glória ou a pena. Por isso disse o Apóstolo na carta aos Coríntios: ‘É necessário que todos nos manifestemos diante do tribunal do nosso Senhor Jesus Cristo, cada um para receber a recompensa da obra feita quando estava no corpo, seja no bem ou no mal’. E o mesmo Apóstolo disse na carta aos Efésios: ‘Cada um, seja escravo ou livre, receberá do Senhor segundo aquilo que haverá feito de bom’” [“Quinta equalitas attenditur ex parte iudicij extremi, quia omnes, tam liberi quam

servi, ad iudicium Dei venient et de omnibus factis suis rationem reddent, et ibi gloriam vel penam recipient.