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Comunidade política e bem comum na Chronica civitatis Ianuensis de Iacopo de Varazze

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

COMUNIDADE POLÍTICA E BEM COMUM NA CHRONICA CIVITATIS IANUENSIS DE IACOPO DE VARAZZE

Aléssio Alonso Alves

Belo Horizonte 2014

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1

Aléssio Alonso Alves

COMUNIDADE POLÍTICA E BEM COMUM NA CHRONICA CIVITATIS IANUENSIS DE IACOPO DE VARAZZE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Historia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História.

Linha de Pesquisa: História e Culturas Políticas.

Orientador: Prof. Dr. André Luís Pereira Miatello

Belo Horizonte

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais 24 de Janeiro de 2014

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2

Agradecimentos

À Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), particularmente ao Programa de Pós Graduação em História (PPGHis).

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela concessão da bolsa de estudo nesse último ano.

Ao professor Dr. André Luís Pereira Miatello por toda orientação, apoio e atenção. Ao professor Dr. Bruno Tadeu Salles e à professora Dra. Flávia Aparecida Amaral por terem tido a bondade de comporem a banca avaliadora tanto para a qualificação quanto para a defesa; e por todos os conselhos e críticas que ajudaram a melhorar este trabalho.

Ao professor Leandro Duarte Rust por ter ministrado, na UFMG, uma disciplina muito inspiradora que foi de grande importância não só para essa pesquisa, mas para a minha formação como historiador.

Aos colegas do Laboratório de Estudos Medievais (LEME), particularmente os que compõem o Núcleo UFMG: Francisco de Paula Souza Mendonça Jr., Letícia Dias Schirm, Olga Pisnitchenko e em especial ao Felipe Augusto Ribeiro, por todas as conversar e debates que tivemos desde a formação desse grupo de estudo e pesquisa e por todo esforço e trabalho para o mesmo pudesse crescer.

Ao meu pai, José Donizeti Alves, por mais uma vez ter sido meu segundo orientador, meu farol da vida acadêmica.

À minha mãe, Vânia Aparecida Alonso, por me incentivar e sempre acreditar em mim, mesmo quando eu assim não fazia.

Aos meus irmãos: Alexandre Alonso Alves, por continuar sendo, mesmo que involuntária e inconscientemente, um espelho para minha vida; e Guilherme Alonso Alves, por todo companheirismo, amizade e apoio emocional que um irmão e companheiro de república pode desejar.

Às minhas tias: Vera Lúcia Alonso, Míriam Sueli Alonso e Clélia Alonso. À minha tia Ângela Alves e ao meu tio Zé Roberto Dias, que nos meus primeiros anos de vida em Belo Horizonte me receberam como um filho.

Aos meus amigos: Alexandre ‘Xandão’ Belline Tasca, Alice Eulálio Bertucci, Arthur Oliveira Freitas, Carla Corradi Rodrigues, Daniel Leite, Eliza Toledo, Fabrício ‘Fa-aaa’ Guimarães, Frederico ‘Fred’ Leite, Gustavo ‘Guzão’ Leite, Germano ‘GG’ Leite, Iara Souto Ribeiro, Leonardo ‘Raposão’ Miranda, Leonardo Nascimento Ferreira, Lucas Nascimento

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3 Ferreira, Lucas ‘Barrão’ Carvalho Soares de Aguiar Pereira, Ludmila Andrade Rennó, Luis Felipe ‘Lipão’ de Matsya Aruanda Ramos Garrocho, Leandro ‘Maguila’ Gomes Figueiredo, Luca Palmesi, Luiz ‘Lulu’ Guimarães Sousa, Mariana de Moraes Silveira, Mayara Taroco, Múcio Andrade Araújo, Pauliane Braga, Paulo Renato Silva de Andrade, Pedro Alcântara, Pedro Veloso Batista, Rafael ‘Tião’ da Cruz, Rodrigo Dias, Theo Rodrigues, Thiago Lenine Tito Tolentino e Wilkie Buzatti Antunes.

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4

Audi, vide, tace, si vis vivere in pace

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5

RESUMO

O objetivo desse trabalho é estabelecer uma análise dos conceitos de Comunidade Política e

Bem Comum desenvolvidos pelo frade Pregador e arcebispo de Gênova Iacopo de Varazze em

sua Chronica civitatis Ianuensis ab origine usque ad annum MCCXCVII (Crônica da cidade de Gênova, desde sua fundação até o ano de 1297), texto composto na última década do século XIII. Para tanto, primeiramente esclareceremos a importância que esses temas tiveram nessa época, apresentando como eles foram debatidos e mobilizados em ações políticas. Posteriormente, nos deteremos sobre o momento e o processo de produção da crônica, debatendo suas características estruturais e composicionais e os objetivos que levaram o autor a compô-la. Por fim, desenvolveremos exame atento do uso feito do termo communitas e de expressões utilizadas que carregam o sentido de bem comum (como bonum commune, utilitas

commune e respublica) na Chronica.

Palavras-chave:

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6

ABSTRACT

The aim of this study is to establish an analysis of the concepts of Political Community and

Common Good developed by friar Preacher and archbishop of Genoa Iacopo Varazze in his Chronica civitatis Ianuensis ab origine ad annum usque MCCXCVII (Chronicle of the city of

Genoa, from its foundation to the year 1297), a text composed in the last decade of the thirteenth century. To do so, first we will clarify the importance that these issues had at the time, showing how they were discussed and deployed in political action. Subsequently, we will focus on the moment and the producing process of the chronic, debating its structural and compositional characteristics and the goals that led the author to compose it. Finally, we will develop a careful examination of the uses made of the term communitas and of expressions that bears the the sense of common good (like bonum commune, utilitas commune and

respublica) in the Chronica.

Key-words:

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7 SUMÁRIO AGRADECIMENTOS ... 2 EPÍGRAFE ... 4 RESUMO ... 5 ABSTRACT ... 6 SUMÁRIO ... 7 INTRODUÇÃO ... 9

1 COMUNIDADE POLÍTICA E BEM COMUM NO SÉCULO XIII ... 18

1.1 Comunidade Política ... 23

1.2 Bem Comum ... 35

2 HISTÓRIAS DE GÊNOVA: O FINAL DO SÉCULO XIII E CHRONICA CIVITATIS IANUENSIS AB ORIGINE USQUE AD ANNUM MCCXCVII ... 45

2.1 A Chronica civitatis Ianuensis ab origine usque ad annum MCCXCVII ... 46

2.1.1 Características Estruturais da Obra ... 46

2.1.2 Características Composicionais da Obra ... 48

2.2 A Situação Político-Social de Gênova no final do século XIII ... 59

2.2.1 O Arcebispado de Iacopo de Varazze: Ações e Tribulações ... 64

2.3 Entrecruzamento: Iacopo de Varazze, sua Chronica e seu Tempo ... 77

2.3.1 A Busca pela Cidade Celeste e o Fracasso da Chronica ... 77

2.3.2 A Chronica como Solução para os Problemas de Gênova ... 83

2.3.3 A Chronica como ferramenta de instrução ... 88

3 COMUNIDADE POLÍTICA E BEM COMUM NA CHRONICA CIVITATIS IANUENSIS DE IACOPO DE VARAZZE ... 95

3.1 Comunidade Política na Chronica de Iacopo de Varazze ... 97

3.1.1 Communitas ... 97

3.1.1.1 A Communitas como Instituição Política ou Conjunto de Cidadãos que se Autogoverna ... 102

3.1.1.2 Communitas e a Origem Comum ... 111

3.1.1.3 Communitas, Humilitas e Æqualitas ... 120

3.1.1.4 Communitas e a Boa Convivência ... 126

3.1.1.5 Communitas: pertencimento a um Grupo, Justiça e Paz ... 129

3.1.1.6 Communitas e o Compartilhamento de Vontades ... 131

3.2 O Bem Comum na Chronica de Iacopo de Varazze ... 131

3.2.1 Bonum commune e Bona comunia ... 132

3.2.2 Utilitas communis ... 138

3.2.3 Respublica e Bem comum ... 146

4 CONCLUSÃO ... 154

4.1 Acerca da Teoria ... 154

4.2 Acerca do Método ... 155

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8

Bibliografia ... 166 Anexo: Composição Estrutural dos Capítulos das partes VI-IX da Chronica civitatis Ianuensis de Iacopo de Varazze conforme um Sermão Moderno ... 171

(10)

9

INTRODUÇÃO

O objeto da pesquisa que desenvolvemos neste trabalho se concentra em questões relativas aos temas Comunidade Política e Bem Comum. Mais especificamente, esses tópicos são tratados a partir de um texto composto na última década do século XIII, a Chronica

civitatis Ianuensis ab origine usque ad annum MCCXCVII (Crônica da cidade de Gênova,

desde sua fundação até o ano de 1297), de autoria do frade Pregador e arcebispo de Gênova Iacopo de Varazze.1

Os problemas aos quais nosso estudo se dedica constituem assuntos importantes tanto no quadro de pesquisas desenvolvidas nos últimos anos por historiadores do político2 quanto nas discussões político-econômicas em curso no mundo contemporâneo.3 Mais do que isso,

Comunidade Política e Bem Comum formaram dois dos principais objetos das reflexões

políticas realizadas por homens de saber durante todo o século XIII da história da cristandade ocidental e desde as filosofias grega e romana antigas, pelo menos, constituem dois pilares das discussões voltadas para a vida humana em sociedade.4

Em relação à documentação, ao tratar desses assuntos a partir de um texto como a

Chronica - que muito provavelmente visava o público genovês leigo-secular além do clerical5

1 A edição da obra utilizada em nossa pesquisa é a seguinte: IACOPO DA VARAGINE. Cronaca della città di

Genova dalle origini al 1297. Ed. Stefania Guidetti. Gênova: ECIG, 1995. Nas próximas menções nos

referiremos a ela somente por Chronica seguido do número da página onde a informação se encontra na reprodução do texto latino original.

2 Especificamente quanto a estudos que versam sobre comunidade política e/ou bem comum no meio

acadêmico dedicado à História do período Medieval, destacamos os seguintes estudos: GILLI, Patrick.

Cidades e Sociedades Urbanas na Itália Medieval (século XII-XIV). Campinas, SP: Editora da Unicamp;

Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2011. FONDAZIONE CENTRO ITALIANO DI STUDI SULL’ALTO MEDIOEVO. Il Bene Comune: forme di governo e gerachie sociali nel Basso Medioevo. Atti del XLVIII Convegno storico internazionale. Todi, 9-12 ottobre 2011. Spoleto: Fondazione CISAM, 2012; KEMPSHALL, Matthew S.. The Common Good in Late Medieval Political Thought. Oxford: Clarendon Press. 1999. BLACK, Antony. Political thought in Europe, 1250-1450. Cambridge; New York, NY, USA: Cambridge University Press, 1992.

3

Em 2009, o Prêmio Nobel de Economia foi concedido a Elinor Ostrom “por sua análise da governança

econômica, especialmente os [bens] comuns”. Cf. < http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/economic-sciences/laureates/2009/ostrom-facts.html>. Acesso em: 15/07/2013.

4 A questão da comunidade política é central, por exemplo, para a filosofia de Aristóteles que, além de ter

estabelecido as formas puras de governo e suas respectivas corrupções, também afirma que a comunidade humana (a polis) como sendo um grupo perfeito cujo objetivo não é só proporcionar os meios para que a vida se sustente, mas permitir que se viva a boa vida, isto é, a vida de virtude. Além de se preocupar com questões relativas à respublica - por exemplo, propondo suas bases e até o seu melhor estado, o optimus status civitatis - o tema do bem comum desempenhou um papel central nas obras do filósofo romano Marco Túlio Cícero. Posto isso, esperamos que ao destacar a presença desses tópicos em dois expoentes da filosofia antiga grega e romana - e que foram tomados como auctoritates pelos homens do século XIII - seja suficiente para demonstrar o longo caminho percorrido por esses temas ou longo dos séculos.

5

GUIDETTI, Stefania. Scrittura, oralità, memoria: la Legenda Aurea fonte e modelo nei Sermones e nella Chronica Citatis Ianuensis di Iacopo da Varagine. In: FLEITH, Barbara; MORENZONI, Franco. De la

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10 – pretende-se chamar a atenção para o fato de que no século XIII se buscou fazer com que essas discussões alcançassem e permeassem o amplo ambiente da vida civil urbana. Isto é, que o debate político não ficasse restrito aos ambientes de saber universitários e clericais e à função de exercer influência efetiva na ação política cotidiana empreendida pelas entidades governamentais das comunidades. Assim, o que estava em jogo era não só a política, mas o

político da sociedade. No caso específico dessa crônica, como intencionamos apresentar a

seguir, além de assumir essa funcionalidade genérica de intervenção social e política que poderia muito bem ter como ponto de partida “problemas conceitos” recorrentes nos debates políticos (como é o caso do bem comum), cremos que ela foi também o produto de uma cuidadosa reflexão sobre a situação político-social da comuna de Gênova no final do século XIII, da qual Iacopo de Varazze se tornou arcebispo em 1292.

O desafio de estudar esses temas foi tomado tendo como base a teoria da História

Filosófica do Político caucada principalmente em formulações conceituais elaboradas pelo

filósofo francês Claude Lefort e que, atualmente, tem nos historiadores franceses Pierre Rosanvallon e Marcel Gauchet seus principais representantes. Nosso alinhamento a essa teoria tem sua razão no fato de que Lefort foi um dos principais responsáveis pelo resgate da história política na segunda metade do século XX. Apesar de ter gozado de grande prestígio durante todo o século XIX, esse tipo de fazer historiográfico que até então envolvia o estudo do Estado (seu poder, suas lutas, suas conquistas, instituições que o preservavam e revoluções que o modificavam), no início do século XX foi fortemente criticado pelo materialismo histórico, e posteriormente pela história social e pela história das mentalidades, como apologista das elites. Afirmava-se que o conhecimento produzido por ela era muito limitado à cronologia, resumindo-se a narrativa dos eventos, aos grandes dirigentes políticos, ignorando os interesses de classes e encobrindo papel do inconsciente.6 Como é perceptível, esse tipo de história deixava pouco espaço para a religião, de modo que ela era relegada ao campo do privado e a política era estudada por meio de um forte viés secularizador.

De modo geral, o resgate da história política ocorreu em três frentes: a alemã, com Otto Brunner e Reinhart Koselleck; a inglesa, com Peter Laslett, John Dunn, Quentin Skinner J. A. Pocock; e a francesa, com René Rémond, Raymond Aron, François Furet e Claude

sainteté a l'hagiographie: genèse et usage de la Légende dorée. Genebra: Librairie Droz, 2001. pp. 123-138.

p. 137.

6 LYNCH, Christian Edward Cyrill. A democracia como problema: Pierre Rosanvallon e a escola francesa do

político. In: ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010. pp. 9-35. p. 12-13.

(12)

11 Lefort. Especificamente quanto à última, a retomada desse tipo de história se deu pela valorização da multidisciplinaridade e pela proposta de uma nova história como História do

Político, que englobasse desde temas como eleições, partidos políticos, opinião pública e

mídia até estudos das ideias e de religiões.7 Conforme afimou Furet, o objetivo dessa retomada é o de fazer com que

a história política seja ao mesmo tempo a história das ideias, não apenas de recepção social. E aliás, dentre dessa perspectiva, eu advogo uma alinça da história com a filosofia. Minha ideia central, o que faço no Instituto Aron, é juntar os historiadores e os filósofos. É tentar reabilitar não apenas a história do político, mas também a história das ideias, que foi praticamente arruinada pela Escola dos Anais8

No interior desse movimento, Claude Lefort desempenhou o papel fundamental de estabelecer de maneira propriamente dita a reflexão sobre o Político, pois, até então, esse conceito ainda permanecia indefinido e fluido.9 Sendo assim, por desempenhar uma função basilar na História Filosófica do Político e, em um âmbito mais amplo, no resgate da história política, o entendimento desse conceito é primordial para essa teoria e para nosso trabalho. No entanto, para que seja compreendido como ele foi estabelecido – especialmente no que diz respeito à sua diferenciação quanto a outro, o de política - é preciso que seja esclarecida também a maneira como o próprio Lefort distinguiu, e contrapôs, filosofia de ciência (esse último termo em sua obra designa mais especificamente a ciência e a sociologia política), pois os modos de operação dessas duas distinções estão intimamente relacionados.10

Para Lefort, pensar o político exige um rompimento com o ponto de vista científico. Segundo afirma o autor, a ciência busca sempre um patamar de conhecimento superior e, para tanto, olha a sociedade como se estivesse fora dela; o cientista estaria fora do social. Essa postura, ou melhor, essa localização da ciência, tem como razão a sua busca por validades neutras, fatos positivos e leis que correspondam aos domínios sociais. Ao olhar a sociedade de um ponto de vista externo a ela, o que a ciência faz é dividir o social em domínios particulares e subdomínios. Nesse procedimento de demarcação de áreas, o político seria delimitado como

7

Idem.

8 FURET, François. O historiador e a história: um relato de François Furet. In: Estudos Históricos. Rio de

Janeiro, nº 1, 1988. pp. 143-161. p. 152-153.

9 LYNCH, p. 13, 20.

10 “Se quisermos reiterpretar o político, nós devemos romper com os pontos de vista científicos, no geral, e com

o ponto de vista que dominou o que são conhecidas como a ciência política e a sociologia política em particular (...) Interpretar o político significa romper como o ponto de vista da ciência política”. Na edição

em língua inglesa da obra de Lefort que aqui utilizamos, o termo political tem seu correspondente em português como o político, enquanto politics está para a política. Cf. LEFORT, Claude. Democracy and

(13)

12 um subsistema do social.11 Contra essa forma de interrogação e conhecimento do social, Lefort desenvolveu um conceito do político como o campo de interrogação propício ao pensamento filosófico. Afastando-se da ciência e se colocando contrário a ela, a filosofia para Lefort teria como principal característica a inquirição sobre a origem dos princípios de diferenciação entre as esferas sociais e, sendo assim, seria mais adequada para pensar o

político.

Se a melhor forma de interrogar a sociedade é nos perguntarmos sobre quais são os princípios que guiam a divisão das esferas sociais largamente aceitas, qual é a relação do

político com essa contraposição entre filosofia e ciência? Segundo define o filósofo francês,

essa operação de determinação dos domínios sociais tem em si um sentido político. Ele afirma o seguinte:

O fato de que algo como a política tenha sido circunscrita na vida social em um dado momento tem em si um significado político, e um significado que não é particular, mas geral. Isso até levanta a questão da constituição do espaço social, da forma de sociedade, no sentido do que uma vez fora denominado de 'cidade'. O político é então revelado não no que chamamos de atividade política, mas no movimento duplo pelo qual o modo de instituição da sociedade aparece e é obscurecido. Aparece no sentido em que o processo pelo qual a sociedade é ordenada e unificada sobre suas divisões se torna visível. Obscurecido no sentido em que o locus da política (o locus no qual os partidos competem e no qual uma operação do poder toma forma e é reproduzida) se torna definido como particular, enquanto o princípio que gera a configuração total é ocultado.12

Primeiramente, o que se deve reter desse fragmento é que o político e a política constituem conceitos diferentes. Como colocado, em seu movimento de aparição, o político é a forma de classificação social, isto é, a forma e o modo pelo qual a sociedade é instituída, é a sua configuração total. Ou seja, o que ele opera é uma formação do social (mise en form) que, em um sentido mais profundo, implica em duas outras configurações: a de criação de sentido (mise en sens), onde o espaço social emerge como dotado de inteligibilidade; e a de

representação da própria sociedade (mise en scène).13 Essa criação de sentindo se dá na medida em que a sociedade estabelece sua identidade ao se externalizar como seu outro em uma representação. Essa divisão primária da sociedade – a partir de qual toda interrogação

11 “Um efeito dessa ficção (a ciência e a sociologia política) é imediatamente óbvio: democracias modernas são

caracterizadas, entre outras coisas, pela delimitação de uma esfera de instituições, relações e atividades, que parecem como político, como distinto de outras esferas que aparecem como econômica, jurídica e assim por diante”. Ibid.. p. 11.

12

Idem.

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13 filosófica deveria começar14 - constrói o exterior do qual a sociedade se diferencia, porém de forma que ele não tenha vida própria, mas sendo dependente do interior. Além disso, conforme Lefort, a forma como esses dois âmbitos se relacionam nessa divisão se dá por meio de gestos simbólicos que o poder faz em direção ao exterior e que institui a sociedade ao significar sua identidade social.15 No entanto, esse poder também atua no âmbito interno, de modo que a instituição da sociedade também ocorre em um nível simbólico, e, sendo assim, precisa ser representada (mise en scène).16 Assim, o poder encontra-se no centro do político, de modo que não existe sociedade sem referência a um lugar de poder.17 De maneira geral, portanto, o político corresponde à construção de uma ordem social (aqui entendida como práticas que perduram por certo tempo e que orientam ações e valores, ou seja, normas partilhadas como vigentes).

Quanto à política, assim que o seu locus é determinado, o político acaba por se ocultar, de modo que a atividade política adquire maior visibilidade. Ela, então, emerge como uma forma específica de ação ou uma esfera social18; ela corresponderia, em resumo, aos domínios institucionais, ao Estado (ou poder público), aos espaços legisladores, judiciários e executivos e suas respectivas ações; é também, obviamente, o campo da competição entre os protagonistas da política cujos modos de ação e programas explicitamente os designam como candidatos ao exercício da autoridade pública.19 Assim, a delineação de uma atividade política específica tem o efeito de erguer um palco no qual o conflito é representado, para que todos vejam, como sendo necessário, irredutível e legítimo.20

14

Ibid., p. 225.

15 Nesse sentido, Rosanvallon é bastante esclarecedor. Em um de seus artigos – no qual o historiador tem por

objetivo de defender uma História Conceitual do Político (sinônimo de História Filosófica do Político) para preencher lacunas metodológicas deixadas por outros tipos de História que anteriormente pensaram o político – o tipo de abordagem proporcionado por essa teoria é caracterizada como tendo por intenção a compreensão da formação evolutiva das racionalidades políticas, ou seja, “sistemas de representações que comandam a

maneira pela qual um época, um país, ou grupos sociais conduzem sua ação e encaram seu futuro [que] resultam (…) do trabalho permanente de reflexão da sociedade sobre ela mesma (...)”. A nosso ver, essa

formulação de Rosanvallon se aproxima muito do que Lefort denomina por mise en scène. Cf. ROSANVALLON, Pierre. Por uma história conceitual do político (nota de trabalho). In: Revista Brasileira de

História, v. 15, nº30. São Paulo: 1995. pp. 9-22. p. 9, 16.

16 LEFORT, op. cit., p. 225. 17

LYNCH, op. cit., p. 23.

18 LEFORT, op. cit., p. 11. 19 Ibid., p. 226-227. 20

Esclarecida essa diferença entre político e política, declaramos que esses termos são sempre empregados nesse trabalho de forma precisa e de acordo com essas conceitualizações.

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14 Assumindo esses marcos teóricos-conceituais como os mais adequados à elaboração de um estudo historiográfico21, reconhecemos que se o político é aquilo que institui a sociedade, a principal questão que devemos colocar à nossa documentação é justamente a que indaga sobre o sentido de ordem social presente no(s) discurso(s) estudado(s). Essa, então, é a principal orientação de nossa inquirição sobre os temas comunidade política e bem comum: entender como é que esses dois conceitos foram empregados por Iacopo de Varazze em sua

Chronica para propor uma formatação da sociedade; qual era o formato social pretendido a

partir deles. Além disso, adotar essa teoria, conforme atesta o historiador Pierre Rosanvallon, é traçar nosso objetivo como sendo o de

fazer a história da maneira pela qual uma época, um país, ou grupos sociais procuram construir as respostas àquilo que percebem mais ou menos confusamente como um problema (…) fazer a história do trabalho realizado pela interação permanente entre a realidade e sua representação definindo os campos histórico-problemáticos22

Esse tipo de história torna-se história política (ou história do político para ser mais abrangente e fiel à teoria que aqui acabamos de explanar) na medida em que o ponto de articulação entre a sociedade e essas representações se encontra precisamente no político.23 Posto isso, declaramos que nesse trabalho a Chronica é tomada como situada precisamente nesse ponto: o político. Ela é abordada como uma representação da sociedade genovesa (mise en scène) voltada para propor resposta àquela comunidade a respeito daquilo que era por ela entendido como problemático (mise en sens) com o objetivo de instaurar uma ordem social (mise en

form). Se considerarmos os locais-sociais ocupados pelo autor da crônica, atentando para o

fato de que Iacopo de Varazze antes de arcebispo de Gênova era também um frade Pregador, pertencente a uma Ordem cuja função era justamente provocar mudanças sociais especialmente pela pregação, perceber-se-á que o objetivo político de formatação social a partir de um sentido proposto como ideal não deveria ser nem um pouco estranho a ele: desse ponto de vista, se o autor tomou seu tempo para pensar como a comunidade política deveria ser e qual o papel que a ideia de bem comum desempenha nisso, é porque esses assuntos certamente eram considerados por sua época como questões/problemas a serem elucidados.

21

Segundo saliente Christian Edward Cyril Lynch, “o ‘pensamento político’ lefortiano busca compreender o

funcionamento do social fenomenologicamente, isto é, a partir dos dados da experiência – aspecto este que explica a centralidade por ele conferida à história”. Cf. LYNCH, op. cit., p. 23.

22

ROSANVALLON, op. cit., p. 16.

(16)

15 Se como visto o político é aquilo que institui a sociedade, o que lhe concede forma e molda sua ordem social, com efeito, toda a ação que tem por objetivo estabelecer modelos de conduta para guiar a vida comunitária de uma sociedade é, portanto, uma ação de cunho

político.24 Nota-se que falamos de ações que possuem a configuração social por objetivo, de modo que essas podem ou não serem bem sucedidas, logo, importando apenas o seu sentido e não sua efetividade prática na vida pública de uma comunidade. Sendo assim, tanto a pregação como a escrita de uma crônica nos parâmetros expostos configuram ações de cunho

político independentemente de seu sucesso ou fracasso. Disso, então, resulta o valor do

alinhamento a esse conceito de político que nos permite pensar essas ações em um âmbito social maior que vai além de meras exortações de cunho religioso.

Apesar de superar a interpretação desse tipo de ação e obra como simples admoestação de fé, o religioso, as crenças que os homens partilham e que em grande medida atestam um conjunto de normas que estabelecem o que é justo e injusto, certo e errado, bem e mal, fazem parte do político? Elas podem (ou devem) ser levadas em conta quando de um estudo

político? Quanto a isso, Claude Lefort afirma que pensar os princípios geradores de uma

sociedade (o político, portanto) de forma filosófica nos permite incluir fenômenos religiosos em nossa reflexão, ao contrário do que aconteceria em outras abordagens, como as da ciência e da sociologia política. Segundo o filósofo francês

não se pode separar a elaboração de uma forma política (...) da elaboração de uma forma religiosa. Em resumo, o político e o religioso trazem o pensamento filosófico face a face com o simbólico (…) em um sentido que, através das articulações internas deles, o político e o religioso governam o acesso ao mundo.25

Assim, caso renegássemos o religioso quando de um estudo do político, estaríamos em verdade perdendo, ou deixando de lado em nossa análise, uma dimensão constitutiva das relações do homem com o mundo de modo que nosso próprio conhecimento construído a acerca da sociedade estudada seria, no mínimo, incompleto. Mais especificamente quanto ao século XIII ocidental, essa rejeição provocaria um extremo dano ao estudo historiográfico. Conforme as pesquisas do historiador e filósofo francês Marcel Gauchet, até o advento da democracia moderna, a religião constituiu o princípio ordenador do político: até então, o

24

Preferimos aqui a utilização ou até mesmo possivelmente a invenção da expressão-conceitual ação de cunho

político ao invés da definição de ação política, pois assim consideramos nos manter mais próximos do sentido

lefortiano de político. Para nós, portanto, essa segunda definição ficaria restrita às ações promovidas dentro das instituições da administração pública, enquanto a primeira abrangeria ações em um âmbito muito maior.

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16 conjunto de representações forjadas por ela e projetado para a política (que veiculava uma organização hierárquica do mundo) formava a base da vida comunitária ao assegurar às sociedades a possibilidade de pensarem a si mesmas como unidades, sem que com isso tivessem que renunciar às suas pluralidades internas.26 Em conformidade, Pierre Rosanvallon sustenta que é por meio do religioso que o político adentra a dimensão simbólica característica da sociedade, engendrando um princípio ou um conjunto de princípios que regulam as relações que as pessoas mantém entre elas e com o mundo.27 Sendo assim, alinharmo-nos a essas proposições teórico-conceituais nos endossa a abordar os preceitos religiosos propostos por Iacopo na Chronica como parte do político; a não mantê-los restritos unicamente ao domínio das questões de fé ou da doutrina da Igreja Católica do século XIII; e a não corroborarmos as análises que separam como precisamente distintas a esfera da religião de outras, como a da política, por exemplo. Ao considerarmos esses dois âmbitos como partes de um todo maior (o político) é então possível avaliarmos as inter-relações estabelecidas por eles e/ou até mesmo atestarmos interpenetrações que resultam em um amálgama onde um não pode ser distinguido do outro.

Esclarecida a teoria que embasou nossa pesquisa, por fim, é preciso declarar as etapas que compõem o presente texto. No primeiro capítulo realizamos uma abordagem de como os temas Comunidade Política e Bem comum foram discutidos no século XIII, quais foram as linhas-gerais desse debate, os conceitos centrais que gravitavam em torno desses tópicos, bem como as auctoritates que embasaram as reflexões nessa época. No segundo capítulo, por sua vez, centramo-nos na Chronica civitatis Ianuensis de Iacopo de Varazze. Primeiramente é apresentada a estrutura composicional da obra, suas divisões em partes e capítulos e seus respectivos temas; em um segundo momento é discutido a sua estrutura composicional, onde ocupamo-nos dos diferentes gêneros de escrita empregados pelo autor e os objetivos da obra que são passíveis de se depreender do texto. Em uma terceira etapa, ainda nesse segundo capítulo, é realizada a alocação do momento de produção da crônica no interior da situação político-social de Gênova no final do século XIII, quando abordamos os conflitos interiores

26 LYNCH, op. cit., p. 28-29. Infelizmente não tivemos acesso direto à principal obra de Gauchet, Le

désenchantement du monde: une histoire politique de la religion (1985), no entanto, segundo Lynch, Gauchet

estabelece que foram três os momentos cruciais para a formação do regime democrático moderno e que retiraram a religião de seu posto de ordenador do político. Dentre elas a primeira é o que ele chama de a

revolução da política do século XVI. Lynch não entra em maiores detalhes a respeito do que isso constituiria,

todavia, como será visto no primeiro capítulo, o final do século XVI e o início do seguinte presenciaram o triunfo de um novo paradigma da política, isto é, o seu entendimento como Razão de Estado. A obra que versa sobre essa revolução seria La révolution des droits de l’homme (1989).

(18)

17 da cidade, o processo de eleição de Iacopo de Varazze à sede arquiepiscopal e as ações e tribulações ocorridas durante seu mandato. Na última parte desse segundo capítulo, é feita uma discussão da principal literatura-historiográfica que se ocupou do estudo da Chronica, tomando-a de forma crítica e de modo a valermo-nos de informações e esclarecimentos pertinentes e propormos também novas perspectivas de análise. Posteriormente, o terceiro e último capítulo volta-se especificamente para os temas comunidade política e bem comum conforme foram tratados na Chronica. Nele o objetivo é o de esclarecer como esses tópicos foram mobilizados pelo autor e compreender como os conceitos que gravitam em torno a essas temáticas foram empregados e apropriados por meio de um estudo que parte do vocabulário político utilizado. Por fim, na derradeira parte desse trabalho realizam-se considerações sobre todos os aspectos do trabalho realizado: a teoria que o embasou, a metodologia de pesquisa aplicada no terceiro capítulo e as conclusões acerca da temática abordada.

(19)

18

CAPÍTULO I

COMUNIDADE POLÍTICA E BEM COMUM NO SÉCULO XIII

O atual interesse acadêmico-historiográfico por temas como os temas da comunidade

política e o bem comum tem voltado sua atenção para um variado número de autores que

trataram desses assuntos desde o final do século XII e início do século XIII em diante e para problemas relativos às comunidades dessa mesma época. As razões da contemporânea predileção por esse recorte temporal parecem poder ser encontradas em dois fatores que são fornecidos pela própria conjuntura política e literária da época. O primeiro, de ordem política, se encontra no surgimento das comunas urbanas a partir do final do século XI em território centro-setentrional da Península Itálica – que persistiram, passando por inúmeras transformações em suas estruturas governamentais, até as primeiras décadas do século XIV. Essa nova forma de organização da vida política suscitou fortemente a produção de obras literárias (e até mesmo pictóricas) que tinham por objetivo pensar o governo dessas cidades e propor postulados de uma doutrina de vida cívica e lições de urbanidade.28 Ocuparam um lugar central nessas obras os conceitos de comunidade política e bem comum - juntamente com os de paz e concórdia que foram abordados principalmente a partir dos textos romanos antigos, em particular, Cícero e Sêneca. Tomados como base de uma doutrina política comunal, esses temas serviram tanto para exaltação do poder governamental e da comuna quanto para críticas e proposições de modelos de conduta política - ou seja, parâmetros aos quais os homens que participavam da administração da vida pública deveriam se ajustar - e até mesmo social29. A insistência dos autores da época em temas como o do bem comum, paz e concórdia, no entanto, não deve ser considerada de modo a construirmos uma concepção que afirmaria que a atividade política desse momento sempre fora de fato devotada a esses princípios. Muito pelo contrário, a ocorrência frequente dessas discussões em uma teoria normativa da política como a do século XIII – que se propunha a indicar como a política deveria ser e não como ela se dava na prática – tem sua razão justamente no fato de os autores

28 GILLI, op. cit., p. 57, 351, 367.

29 Pensamos, aqui, especificamente no caso de Iacopo de Varazze e sua Chronica. Como será demonstrado no

capítulo seguinte, além de propor normas de conduta política para os governantes, o arcebispo também formulou prerrogativas referentes aos cidadãos - tanto quando do exercício de cargos públicos (mais especificamente como conselheiros comunais) quanto no que diz respeito de sua participação em um âmbito maior, ou seja, o do cidadão como importante parte componente de uma comunidade política mesmo sem exercer funções políticas. Para isso, p. 47-48, 52.

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19 considerarem seus governos como problemáticos e produzirem suas obras com o preciso escopo de persuadir seu público à busca de um ideal considerado mais nobre.

O segundo fator, de ordem literária - que não se restringe somente ao território italiano, tendo grande repercussão nos meios universitários como o de Paris e que, em certa medida, foi irradiado para toda cristandade a partir desses ambientes - se deve à tradução para o latim de duas obras de Aristóteles: Ética a Nicômaco e A Política, feitas, respectivamente, por Roberto Grosseteste por volta de 1240 e Guilherme de Moerbeke na década de 1260. Graças a essas obras, o debate político tomou novo impulso. Segundo o filósofo italiano Maurizio Viroli e o historiador inglês Antony Black a partir desse momento abriu-se caminho para a aquisição de uma linguagem própria da política, rica em termos constitucionais que ofereciam novas ferramentas conceituais que poderiam ser empregadas para a avaliação das diferentes formas de governo. Assim, começou a se difundir uma concepção de política mais ampla, de maneira que ela passou a ser pensada não somente como arte de governar uma cidade segundo razão e justiça, mas também como a ciência da cidade em geral: em muitos casos, o centro das reflexões que antes era encontrado na figura do governante teria sido realocado de forma a, então, coincidir com a vida coletiva – passou-se de uma avaliação dos deveres e virtudes do homem político para um exame atento das diversas formas institucionais de governo.30 No entanto, conforme atenta Black, esse aristotelismo foi tomado por autores escolásticos somente enquanto linguagem e uma nova forma de abordagem e não como doutrina, sendo, nesse sentido, apropriado de acordo com os interesses para os quais era invocado para oferecer a força desejada da auctoritas.31

30 VIROLI, Maurizio. Dalla Politica alla Ragion di Stato: La scienza del governo tra XIII e XVIII secolo.

Roma: Donzelli Editore. 1994. p. 3, 19-21. BLACK, Antony. Political thought in Europe, 1250-1450. Cambridge; New York, NY, USA: Cambridge University Press, 1992. p. 9. Segundo Viroli, até então não se encontra na literatura sobre o governo comunal nenhuma menção de uma ciência ou de uma arte política. Para indicar a Ciência do Governo Público, os escritores da idade comunal serviram-se da expressão latina civilis

sapientia (o que Viroli traduz por direito civil). Cf. VIROLI, op. cit., p. 37.

31

O historiador afirma o seguinte: “Desde que Aristóteles considerou a ‘polis’ (cidade-estado) como a

comunidade política normativa, era de se esperar que seu reavivamento reforçasse a autonomia civil e o republicanismo; mas não foi isso o que ocorreu. Estudiosos medievais mostraram pouco interesse em cidades-estado como uma distinta categoria de comunidade política; ao contrário, eles aplicaram a categoria de ‘polis’ (civitas) a qualquer unidade política existente (...) essas pessoas não derivavam suas concepções políticas de Aristóteles; de modo contrário, eles o usaram, geralmente, para apoiar o que eles já acreditavam (...) o que Tomás de Aquino e os outros tomaram de Aristóteles não foram novas doutrinas, mas toda uma nova abordagem. Se compararmos escritos sobre o papado e sobre o império antes e depois da absorção de Aristóteles pelo discurso político nós observaremos uma profunda mudança não na doutrina, mas na maneira que ela era expressa”. Segundo o autor, essas duas obras do filósofo grego forma usadas tanto para apoiar

supremacia da Igreja sobre o poder secular, como para afirmar o domínio imperial e monárquico - bem como para sustentar concepções de governos em concordância com as leis e regras comandados por alguns ou muitos. No que se refere ao tema do bem comum, o historiador inglês Mathew Kempshall chama atenção para o fato de que a noção que afirmava que o bem comum deveria ser preferido ao bem privado já se colocava no

(21)

20 A partir dessas colocações não pretendemos afirmar que os temas da comunidade

política e do bem comum não constituíram objetos de interesse da reflexão política em

períodos anteriores ao citado, mas sim atestar que eles foram alvo de grande interesse a partir do final do século XII, e principalmente ao longo do XIII, e que essa configuração histórica contribuiu para que houvesse uma maior quantidade de estudos contemporâneos centrados em personagens, escritos e eventos dessa época.

Contudo, cremos que esses dois fatores não são os únicos motivos que podem explicar a atenção oferecida por historiadores do tempo presente aos temas da comunidade política e do bem comum. A existência de estudos atuais, além de nos revelar que essas preocupações foram recorrentes aos homens do passado, nos mostra que os historiadores da contemporaneidade têm insistido nessas duas categorias como formas de se pensar o político e a política da época em questão - e isso deve ser levado em conta junto aos motivos há pouco elencados. Segundo Viroli, o abandono da Filosofia Civil por parte de homens que se dedicaram a pensar a política e a sua concomitante afirmação conceitual como Razão de Estado a partir do século XVII32 (cujo único objetivo seria a conservação do Estado no sentido de domínio sobre um povo33) fez com que a teoria política corrente desde então não fosse mais capaz de oferecer suporte para uma compreensão sócio-política e nem sequer indicar uma concepção de política pela qual valeria a pena se engajar.34 Em consequência dessa conjuntura, seu objetivo como filósofo na atualidade seria o de demonstrar que a concepção de política entendida como Filosofia Civil é a melhor das teorias que hoje encontramos disponíveis. Assim, a persistência desses temas na historiografia parece indicar que Viroli de fato tem razão em sua afirmação, pois os estudiosos se voltam a essas categorias da Filosofia Civil para melhor compreender uma realidade passada: avaliar a história política do século XIII por meio de conceitos estreitamente ligados à realidade dos Estados Modernos

século XIII antes da tradução de Aristóteles, pois estava incorporada a uma tradição romana com base especialmente em Cícero, Sêneca e Justiniano. Cristianizadas por Agostinho, essas ideias teriam sido inseridas na lei canônica, de modo que os princípios apresentados pela Ética teriam apenas reforçado concepções já bem conhecidas e debatidas. Cf. BLACK, p. 9, 11, 21. KEMPSHALL, Matthew S.. The Common Good in

Late Medieval Political Thought. Oxford: Clarendon Press. 1999. p. 16-17. Tradução nossa.

32 Concepção, essa, também partilhada por Michel Senellart. Cf. SENELLART, Michel. As artes de governor:

do regimen medieval ao conceito de governo. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 12.

33 VIROLI, op. cit., p. VIII. O que o filósofo italiano chama de Filosofia Civil, Senellart chama de Arte de

Governar que, assim como a concepção de Viroli, difere da Razão de Estado. Segundo Senellart, "a finalidade do governo não é fortalecer indefinidamente o Estado, mas [segundo Antonio Palazzo em seu Discorso del governo e della ragion vera di stato (1606)] instaurar, pela manutenção da tranquilidade civil 'um movimento acertado e contínuo das obras virtuosas'". Essa Arte de Governar, no século XIII, seria

denominada de Ars regiminis. Cf. SENELLART, op. cit., p. 13-14.

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21 se mostrou uma tarefa um tanto quanto problemática para os historiadores. Adiciona-se a isso que, segundo o filósofo francês Claude Lefort, a atividade de pensar o político corresponde a interrogar sobre os nossos laços com a tradição da filosofia política.35 Caso consideremos essa afirmação como correta, o que estamos fazendo ao tomarmos esses dois conceitos para uma análise histórica é assumirmos um posicionamento frente à política como Filosofia Civil que a considera no mínimo como uma boa maneira de interrogarmos o passado.

Ainda segundo Lefort, a tarefa de pensar o político deve ser feita por meios filosóficos (e não científicos), pois isso implica na inquirição sobre um princípio ou um conjunto de princípios que atuaram como geradores das relações que os homens mantêm entre si e com o mundo.36 Isso obviamente não significa que esses dois conceitos estabeleciam de fato as relações empreendidas pelos homens no século XIII (o que é possível), mas que eles foram, é seguro afirmar, o que se desejava que atuasse como um princípio gerador da sociedade, caso contrário, não teríamos tantos registros que insistissem em tratar do bem comum e de

comunidade política – obras essas, é preciso ressaltar, compostas segundo estritos padrões

retóricos, o que deixa transparecer seu intuito persuasivo e de configuração político-social orientado por valores considerados nobres.37

A presença de preocupações, discussões, conceituações e empregos dessas duas categorias se manifestaram nas sociedades cristãs ocidentais a partir do século XIII de forma muito variada e abrangente. Elas se fizeram presentes em tratados político-filosóficos de origem universitária, proveniente dos studia dos frades mendicantes38 ou produzidos por homens diretamente envolvidos com o desempenho de atividades políticas cotidianas39, como notários públicos40; na documentação referente à Cúria Romana41 e à administração pública

35

LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 10.

36 Ibid., p. 10.

37 VIROLI, op. cit., p. X. “Seria ingenuidade pensar que antes do triunfo da Razão de Estado a ação política

era sempre boa e que governantes, príncipes e cidadãos, eram apenas comprometidos com o bem comum. Brunetto Latini e os posteriores escritores políticos humanistas eram retóricos que deliberadamente produziam definições laudatórias de política. Em seus escritos, eles objetivavam persuadir seus leitores para a busca um ideal louvável”. Tradução e grifo nossos.

38

Por exemplo, o Liber de regimine civitatum de Giovanni de Viterbo (1240), o De regimine principum ad

regem Cypri de Tomás de Aquino (1267), o De regimine principium libri III de Egidio Romano (ca. 1280), o De quatuor vitutibus cardinalibus de Enrico da Rimini (ca. 1300), o De bonum comune de Remigio de

Girolami (1304).

39 Livres dou Trésor de Bruneto Latini (1266). 40

É importante esclarecermos que muitas vezes as pessoas provindas de um ambiente universitário acabavam tomando parte efetiva na administração pública. Isso foi bastante recorrente principalmente no que se refere aos frades mendicantes, tanto dominicanos quanto franciscanos, que estiveram presentes nas cortes e reinos europeus e asiáticos como conselheiros de monarcas e ocuparam magistraturas públicas, como os cargos de notário e até mesmo o de potestas nas comunas Italianas. Quanto a esse importante cargo da instituição

(23)

22 de governos monárquicos e comunais42; em obras de caráter historiográfico, como as crônicas citadinas e textos panegíricos; em obras artísticas pictóricas43; e até mesmo nos sermões, principalmente nos produzidos por frades franciscanos e dominicanos.44

Dentro da literatura política tratadística, destaca-se a obra Livres dou Trésor, composta em 1266 pelo notário e chanceler da república de Florença Bruneto Latini. Segundo Viroli, esse tratado foi responsável por definir o que se tornaria o núcleo da concepção corrente de política até o início do século XVII, ou seja, o entendimento da política no sentido de arte de

governar segundo justiça e razão. Seguindo as concepções ciceronianas a respeito da origem e

natureza da comunidade política, Bruneto Latini pensa a instituição da cidade como fruto de um intuito de defesa por parte de uma coletividade frente às ameaças de inimigos externos e à ambição dos que desejam impor sua vontade a outros.45 O bem comum, portanto, desempenharia um papel central na formação das sociedades. Além disso, é importante chamarmos a atenção para essa obra pelo fato de ela ter sido composta não por um teórico no sentido estrito do termo, mas por um homem que, além da prática redacional, tomou parte efetiva da vida política em uma comuna italiana de seu tempo. Se crermos que o que Bruneto Latini escreveu em sua obra de fato guiava sua conduta como homem político, e que a redação de seu texto teve como base sua experiência pessoal, temos então um indício de como essa Filosofia Civil tinha seu correspondente na prática política ordinária. Há, no entanto, posturas que se dizem realistas no trato da política e para as quais a política como Filosofia Civil é algo utópico. Assim pensava Norberto Bobbio frente a uma concepção de república como um “ideal moral e político”, negando-lhe a possibilidade de desempenhar um papel de

“ponto de referência para a ação política”. Bobbio, assim, enxerga as obras políticas como

as do século XIII como simples textos retóricos.46 Mas atuar na política segundo os preceitos de uma Filosofia Civil não é nada que seja inalcançável ou completamente estranho ao

política comunal, Gilli chama a atenção para o fato de que os homens que o ocupavam com grande frequência eram pessoas formadas em direito. Mais do que isso, Gilli afirma que a interação entre o ambiente universitário e o da comunidade política se dava também nos estatutos das universidades que por vez eram integrados aos das cidades, um evidente sinal de municipalização. Cf. EVANGELISTI, Per uno Studio della

testualità politica francescana tra XIII e XV secolo. Autori e tipologia delle fonti. In: Studi Medievali, vol. 37, n. 2, p. 549-615, 1996.p. 550-551. GILLI, p. 74, 386.

41 Veri pacifici vestigia do Inocêncio papa Inocêncio III (1214). 42 Liber Paradisus da Comuna de Bolonha (1257).

43 Os afrescos da sala dos notários no palácio comunal de Perúgia (ca.1300) e os de autoria de Ambrósio

Lonrenzetti em Siena (1338-1339).

44 O sermão Sicut laetantium omnium habitatio est in te de Giordano de Pisa pronunciado em 12 de abril de

1304.

45

VIROLI, op. cit., p. IX, 16.

(24)

23 homem. Conforme contra-argumenta Viroli, a ação segundo uma virtude civil não é impossível. Ela se coloca para aqueles que desejam

viver com dignidade e, porque sabem que não podem viver com dignidade em uma comunidade corrupta, fazem o que podem, quando podem, para servir à liberdade comum: exercem a profissão com consciência, sem obter vantagens ilícitas, sem se aproveitar da necessidade ou da fraqueza dos outros [...] assumem os seus deveres civis, mas não são, em absoluto, dóceis; são capazes de mobilizar-se, para impedir que seja aprovada uma lei injusta ou para pressionar quem governa a enfrentar os problemas pelo interesse comum [...] Este tipo de virtude não é impossível.47

Obviamente que não desejamos com essa argumentação afirmar que a prática política no século XIII se dava segundo esses preceitos em sua efetividade. No entanto, não nos parece absurdo pensar que ações particulares de homens públicos pudessem se pautar por esses preceitos, mesmo que isso não constituísse o padrão do comportamento sócio-político. Tomar a república em termos de ideal moral e político pode não ter sido “aquilo que de fato sucedia

no mundo” como afirma Bobbio, e certamente não o foi de maneira geral, mas constituía o

que os homens que se dedicaram à reflexão política desejavam para suas vidas em coletividade.

1.1 Comunidade Política

Falar sobre o que os homens que se dedicaram a pensar o que era a comunidade

política em termos conceituais no século XIII parece-nos requerer que ao mesmo tempo seja

esclarecido o que se pretendia entender e/ou fazer crer como política na época. Conforme assegura o filósofo francês Michel Senellart, até o século XVI o Ocidente se pautou largamente por uma concepção de arte de governar entendida como “uma prática moral (e

não calculista e cínica) do poder, ordenada para o bem comum”, de maneira que o objetivo

da atividade política não seria o fortalecimento infindável de um Estado em detrimento da sociedade, mas o estabelecimento e manutenção de uma tranquilidade civil. Esse “modo de

exercício do poder soberano”, no século XIII, teria sido denominado pelo título de ars regiminis.48

47

Ibid., p. 10-11. Grifo nosso.

(25)

24 No bojo dessa arte encontrava-se o conceito de governar (regere) conforme estabelecido por Agostinho de Hipona no início do século V.49 No capítulo XII do quinto livro d’A cidade de Deus o bispo afirma que os antigos romanos “porque consideravam

vergonha para sua pátria servir e uma glória dominar e imperar, desejaram com todo o empenho, antes de tudo, que ela fosse livre e depois que fosse soberana”.50 O autor, então, oferece uma citação direta d’A conjuração de Catilina do poeta romano Caio Salústio para apresentar o resultado dessa conduta dos romanos:

É por isso que, não suportando o domínio da realeza, criaram uma autoridade renovável todos os anos e partilhavam-na por dois chefes cônsules, palavra derivada de consulere (aconselhar), em vez de lhes chamarem reis ou senhores, palavras que derivam de regnare (reinar) e dominare (dominar).51

Mais do que o fato histórico, o que interessa ao nosso atual propósito é a crítica feita por Agostinho logo na sequência: ele rejeita a etimologia da palavra rei feita por Salústio e propõe uma formulação mais acertada da seguinte maneira:

Mas seria melhor derivar a palavra reis do verbo que significa governar (regere). Como reino deriva de rei, assim é rei da palavra governar (regere). Pareceu-lhes, porém, que o fausto régio não era próprio da vida de disciplina de um dirigente nem de benevolência de um conselheiro, mas da soberba de um senhor.52

Segundo afirma Senellart, é nesse preciso trecho que o bispo de Hipona contrasta dois tipos de governo (regimen) por meio da oposição entre os termos regere e dominare.53 O primeiro referir-se-ia ao modo de ação do governante justo, enquanto o segundo estaria para a conduta do tirano; um rege a comunidade, conduz o povo (controlando e corrigindo-o), protege a

49

A atenção que se confere a obra de Agostinho se justifica tendo em vista a sua utilização por Iacopo de Varazze na composição da Chronica (além de sua função como mediadora das ideias de Cícero, como será exposto logo mais no corpo do texto, cf. p. 29). Segundo Stefânnia Bertini Guidetti, a produção letrada do bispo de Hipona foi, depois da Bíblia, a fonte mais empregada por Iacopo na composição da referida obra. Ao todo, Agostinho foi citado 27 vezes, dentre as quais 13 foram feitas a partir d’A cidade de Deus. Cf. GUIDETTI, Stefania Bertini, Potere e propaganda a Genova nel Duecento. Gênova: ECIG. 1998, p. 34-36.

50 AUGUSTINUS. De civitate Dei. In: MIGNE, J.-P.. Patrologia Latina, tomo 41, V 12, col. 154. “Ipsam

denique patriam suam, quoniam servire videbatur inglorium, dominari vero atque imperare gloriosum, prius omni studio liberam, deinde dominam esse concupiverunt”. A partir de agora nos referiremos a ess obra

apenas por De civitate Dei, seguido pela numeração do livro, o capítulo e a coluna.

51 De civitate Dei, V 12, col. 154. “Hinc est quod regalem dominationem non ferentes annua imperia binosque

imperatores sibi fecerunt, qui consules appellati sunt a consulendo, non reges aut domini a regnando atque dominando”. Cf. SALUSTIUS, VII 6.

52 De civitate Dei, V 12, col. 154. “Cum et reges utique a regendo dicti melius videantur, ut regnum a regibus,

reges autem, ut dictum est, a regendo; sed fastus regius non disciplina putata est regentis vel benivolentia consulentis, sed superbia dominantes”.

(26)

25 cidade enquanto o outro - movido por interesses pessoais e um desejo desregrado de poder - domina os que a ele se submetem.54 Contudo, apesar de não discordarmos de Senellart quanto ao fato de que os dois termos foram contrastados de forma categórica e com esse exato propósito55, o fragmento apresentado d’A cidade de Deus não parece estabelecer essa antinomia de modo explícito. O interesse e objetivo de Agostinho nessa parte do referido capítulo aparentemente estiveram mais voltados a reabilitar o cargo/ofício de rei ao conectá-lo ao verbo regere - pois a etimologia apresentada por Salústio obscureceria a diferença entre o

verdadeiro governar e a sua(s) forma(s) deturpada(s)56 - do que para formar uma comparação antinômica. Conforme a leitura diversa feita pelo cientista político John von Heyking, por meio dessa operação o autor teria estabelecido a concepção do que seria o verdadeiro

governar - voltado para o bem comum e que ao mesmo tempo era livre do desprezo pelo

governante monárquico manifestado por Salústio. Regere, portanto, seria como que a raiz de todos os tipos de governo. No interior dos mecanismos de operação das categorias lógicas aristotélicas, ele seria o gênero, enquanto regnare seria uma de suas espécies que significaria especificamente o governo do rei, daquele que detém o poder real. Consequentemente, o

regere não diz repeito apenas ao governo do rei, mas àquele de qualquer governante que se

volta para o bem comum.57 Essa ideia, segundo afirma Heyking, já estaria presente no De re

publica de Marco Tulio Cícero quando é afirmado no primeiro livro que “quando, portanto, reside em uma única pessoa a soma de todas as coisas, nós o chamamos de rei, e o status dessa república é reino.58 A partir dessas constatações destaca-se dois pontos. Em primeiro lugar, quanto a contraposição de regere e dominare, além de as duas formarem ações diferentes e opostas, a antinomia entre elas apresentada por Senellart é radicalizada visto que formam gêneros diferentes. Uma vez que o gênero contém todas as suas espécies e se faz presente nelas em essência e integridade, mas não é contido por todas elas, regere e dominare nunca poderão produzir espécies que possuem algo em comum. Assim, o regnare, bem como qualquer outra espécie de regere e as comunidades políticas regidas por esse modo de ação política (como, por exemplo, o correto governar de uma comuna por parte de uma podestà)

54 Ibid., p. 20, 24, 26.

55 Como será apresentado no terceiro capítulo, o próprio Iacopo de Varazze estabeleceu essa dupla antítese que

contrasta governante/regere com tirano/dominare em sua Chronica. Cf. p.122

56 HEYKING, John von. Augustine and Politics As Longing in the World. Columbia: University of Missouri

Press. 2001. p. 70.

57 Idem.

58 CICERO. De re publica. Leipzig: Bibliotheca scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana, 1964. I xli,

42. “Quare cum penes unum est omnium summa rerum, regem illum unum vocamus, et regnum eius rei

(27)

26 estará sempre voltado para o bem comum; enquanto qualquer derivação de dominare, em oposição, estará para o bem individual - seja no governo de uma só pessoa ou no de muitas. Em segundo lugar, nota-se que nesse pensamento a comunidade política é formada e tem sua razão de ser conforme os modos da ação política: é o reinar do rei (ou seja, o seu governar

específico – aqui no preciso sentido da categoria lógica de espécie) que faz o reino; é o

governar do podestà que faz a comuna. Isso, então, de certa forma concorda com o que postula Senellart: até o século XII, o regimen precedeu a instituição governamental, tanto em conceito quanto em prática.59

Em termos ideais60, portanto, a comunidade política desejada seria a que passa a existir e toma forma de acordo com o regimen cujo funcionamento mais se aproximasse do

regere enquanto gênero e categoria considerada mais pura. Como assegura Senellart, o

governo mais sublime e almejado seria aquele que tem como finalidade a salvação da alma, o que opera nela um controle afetivo e moral pelo qual realiza uma transformação que a retira do seu estado decaído adquirido após o pecado cometido por Adão e a transporta ao seu reencontro de sua semelhança divina original61:

o regimen, então, não se inscrevia na perspectiva da potência, mas no horizonte da escatologia. A arte das artes, ars artium, para os Padres da Igreja, era o governo das almas, regimen animarum. Por muito tempo, o governo dos reis não foi senão um auxiliar bastante grosseiro, encarregado da manutenção da ordem e da disciplina dos corpos62

59 SENELLART, op. cit., p. 41.

60 Segundo Antony Black, a relação entre teoria e prática no que se refere às comunidades políticas entre os

séculos XIII e XV se daria no sentido de questionar qual era o seu melhor ou perfeito estado. Colocava-se, então uma questão de princípio platônico. Segundo o historiador, “ciência política significava encontrar a

melhor constituição e reformar os Estados existentes à luz dela, não o exame dos trabalhos humanos como fonte de maior esclarecimento”. Esse padrão teria começado a mudar com a reintrodução das obras de

Aristóteles, que se perguntavam não como essas comunidades deveriam ser, mas como elas de fato são. Cf. BLACK, op. cit., p. 3-4, 9.

61 SENELLART, op. cit., p. 29.

62 Ibid., p. 24. A partir dessas constatações, Senellart caracteriza o regimen como sendo um conceito não

político: “é preciso mostrar por que caminhos a própria ideia de um governo político se separou do conceito,

não político, de ‘regimen’” (p. 25, grifo nosso). À luz da teoria proposta pela História Filosófica do Político

consideramos necessário, então, ajustar essa formulação do estudioso francês. Ora, o fato do regimen ter seu horizonte final na escatologia e não em coisas propriamente do século não muda em nada o papel que desempenhou no processo de formatação da sociedade, de maneira que a sua inclusão no interior do político - conforme estabelece essa teoria a partir do pensamento de Claude Lefort - se mostra não somente como perfeitamente possível, mas como adequada e necessária para um melhor entendimento das sociedades do século XIII. Quanto a isso, parece adequar-se a Senellarte a crítica feita a Michel Foucault por Pierre Rosanvallon. Apesar de comungar da intenção original de Foucault de capturar as racionalidades políticas a partir de uma perspectiva total, Rosanvallon considera o entendimento desse filósofo sobre o político como sendo limitado às oposições de força e a processos de ação e reação, de maneira que abordagem dele seria muito restrita ao fenômeno do poder em termos de ação estratégica – além de presumir uma racionalidade da dominação. Como atenta Rosanvallon, obviamente que todos esses aspectos privilegiados pela análise empreendida por Foucault fazem parte do político e merecem a atenção do pesquisador; todavia, o seu

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