• Nenhum resultado encontrado

3 COMUNIDADE POLÍTICA E BEM COMUM NA CHRONICA CIVITATIS

3.2 O Bem Comum na Chronica de Iacopo de Varazze

3.2.1 Bonum commune e Bona comunia

A palavra commune aparece precedida pelo termo bonum apenas uma vez em toda a crônica de Iacopo – é interessante notar que essa ocorrência não se dá em uma das suas partes tratadísticas, mas em uma de narrativa histórica, o décimo-segundo caítulo da parte XI.

No tempo desse bispo [João, 12º bispo de Gênova] os Húngaros se converteram a fé de Cristo pela intervenção de Galla, irmã do imperador Henrique e esposa do rei Estêvão da Hungria [...] Fortes são aqueles que desprezam o mundo e os prazeres da carne em nome de Cristo, como se comportaram as santas virgens, que suportaram o martírio pela fé de Cristo. No grupo dos fortes podemos também contar essa santa Galla, a qual, embora não tenha suportado o martírio, todavia realizou um bem

comum maior, isto é, converteu um povo inteiro a Cristo.369

Em sua única aparição, a expressão bonum commune, portanto, não possui um significado material no sentido de tesouro ou local público, mas sim o de uma ação que beneficia uma coletividade.370 Nesse caso específico, a ação é a da conversão, que toma para si o sentido de

bem ao garantir a todos os convertidos a possibilidade da salvação eterna. Ou seja, uma ação

no mundo terreno que tem sua finalidade na vida transcendental. Atrelar o bem comum a um ideal cuja realização se daria em um plano metafísico se apresentou como uma operação comum aos homens que se dedicavam a pensar e produzir obras literárias a respeito da vida política no século XIII.371 Mais uma vez há proximidades entre as afirmações de Iacopo e as de Tomás de Aquino no De regno. No segundo capítulo do primeiro livro dessa obra, o teólogo afirma que há uma distinção entre certo e errado (não certo, como dito no texto) no tocante aos modos de regimes da multidão (regimes políticos), de maneira que há os que levam a um fim conveniente e os que levam a um não conveniente. No caso de homens livres, uma congregação civil, portanto, o fim conveniente seria o bem comum das multidões.372 Mais

369

Chronica, p. 458-459. “Huius episcopi tempore Ungari ad fidem Christi sunt conversi per Gallam, sororem Henrici imperatoris, Sthephano regi Ungarie in uxorem traditam [...] Fortes sunt que mundum et carnales delicias pro Christi nomine despexerunt, sicut fuerunt sancte virgines, que pro Christi fide martirium sunt passe, in numero autem forcium possumus predictam sanctam Gallam numerare, que, etsi non sit passa martirium, tamen fecit maius bonum commune, quando scilicet unam gentem convertit ad Christum”.

Tradução e grifo nosso.

370É importante notarmos, também, que a palavra commune no trecho supracitado não possui o significado de

comuna, mas anuncia genericamente algo que diz respeito a um conjunto de pessoas sem aplicar-lhe qualquer tipo de adjetivação. Para as três outras ocorrências do termo nesse sentido, cf. Chronica, p. 359; 434; 467.

371

KEMPSHALL, op. cit., p. 9.

372De regno, p. 2. “Contingit autem in quibusdam, quae ordinantur ad finem, et recte, et non recte procedere.

Quare et in regimine multitudinis et rectum, et non rectum invenitur. Recte autem dirigitur unumquodque quando ad finem convenientem deducitur; non recte autem quando ad finem non convenientem (...) Si igitur

133 adiante, no capítulo XV, Tomás atesta que “governar é convenientemente conduzir ao devido

fim aquele que se governa”. Mas esse fim, para o homem, é exterior a ele, pois só Deus, que é

o fim de todas as coisas, possui seu fim em si mesmo. Para o ser humano, esse fim externo é a

beatitude final, a fruição de Deus esperada após a morte.373 Tomás é incisivo em suas colocações: buscar o bem comum é buscar Deus. Logo, Deus é o bem comum, Ele é o fim. Já Iacopo, no trecho exposto, coloca o bem comum como a criação da possibilidade da procura e alcance de Deus. O bem comum, consequentemente, é também o meio pelo qual se busca o Criador.374

Além de apontar para uma finalidade transcendental, a atitude de conversão pode ser caracterizada com um bem comum na medida em que ela alargou a própria sociedade cristã e, como consequência, pelo menos em tese, instituiu mais um território onde a convivência pacífica deveria imperar, garantindo o bem-estar dessa comunidade. O episódio protagonizado por Galla já havia sido aludido pelo cronista no segundo capítulo da mesma parte, quando tratou dos eventos ocorridos durante o mandato do segundo bispo de Gênova, Félix. Na ocasião, Iacopo mobilizou a narração dos eventos de maneira a propô-los como exemplos para uma mais correta conduta por parte das mulheres. O arcebispo inicia o capítulo com um modelo a ser contrariado ao contar a história da morte do rei lombardo pagão Alboino por sua mulher. Em seguida, Iacopo nos informa que a conversão desse povo foi feita

quale convenit liberis”. [“Porém, acontece nas coisas que são ordenadas a um fim que se proceda de uma

maneira correta e uma não correta. Por essa razão, no regime das multidões há o certo e o não certo. Deduz-se que o certo é quando cada um é dirigido a um fim conveniente; não certo quando para um fim não

conveniente (...) Então, se homens livres são dirigidos pelo governante ao bem comum da multidão, será

um regime correto e justo, que convém aos livres”]. Grifo nosso.

373

De regno, p. 14. “(...) gubernare est, id quod gubernatur, convenienter ad debitum finem perducere. Sic etiam navis gubernari dicitur dum per nautae industriam recto itinere ad portum illaesa perducitur. Si igitur aliquid ad finem extra se ordinetur, ut navis ad portum, ad gubernatoris officium pertinebit non solum ut rem in se conservet illaesam, sed quod ulterius ad finem perducat. Si vero aliquid esset, cuius finis non esset extra ipsum, ad hoc solum intenderet gubernatoris intentio ut rem illam in sua perfectione conservaret illaesam. Et quamvis nihil tale inveniatur in rebus post ipsum Deum, qui est omnibus finis. Quod si homo non ordinaretur ad aliud exterius bonum, sufficerent homini curae praedictae. Sed est quoddam bonum extrinsecum homini quamdiu mortaliter vivit, scilicet ultima beatitudo, quae in fruitione Dei expectatur post mortem”. [“(...)

governar é conduzir ao devido fim aquele que se governa. Assim, é dito que um navio é governado quando, pela habilidade do navegador, ele é conduzido ao porto ileso e por um itinerário correto. Consequentemente, se algo é conduzido a um fim exterior a si, como o navio a um porto, cabe ao ofício do governador não só conservar a coisa ilesa em si, mas conduzi-la até o fim. Se, do contrário, existe algo cujo fim não é exterior a si mesmo, então o esforço do governador será apenas a intenção de manter a coisa ilesa em sua própria perfeição. E, sem dúvida, nada desse tipo é encontrado nas coisas criação, a não ser Deus, que é o fim de tudo. Se o homem não fosse ordenado a outro fim externo, os cuidados supracitados seriam suficientes para ele. Mas há um bem extrínseco ao homem desde ele tem uma vida mortal, ou seja, a beatitude última que é esperada na fruição de Deus no pós-morte”.]. Grifo nosso.

374No trecho supracitado, o arcebispo grafou que Galla “converteu um povo inteiro a Cristo”. Como visto, o bem

comum é o meio pelo qual pode se chegar ao Criador e é também Ele próprio, o que pode fazer alusão ao

célebre versículo do evangelho de João XIV 6: “Ego sum via, et veritas, et vita. Nemo venit ad Patrem, nisi

134 por uma mulher e então são oferecidas outras ações feitas por figuras femininas que deveriam ser seguidas, dentre as quais o caso de Galla é citado.375 A conversão dos lombardos foi feita por Teodolinda, filha do duque da Bavária, ao se casar com o rei pagão Agilulfo. Até então, como grafou o cronista, “todos os italianos eram cristãos e estes lombardos eram pagãos, e

por isso matavam todos os cristãos”.376 Nota-se, portanto, que converter um povo ao cristianismo é um benefício não só para aqueles que foram convertidos como ressaltamos há pouco, mas igualmente para os que já eram cristãos uma vez que desde então poderiam, em tese, desfrutar uma convivência pacífica mais abrangente. Uma parte do outro, do que era estranho e exterior (potencialmente até inimigo), é agregada e torna-se familiar, de modo que o bem comum dos lombardos e húngaros a partir desse momento passa a coincidir com o da

res publica christianorum. Assim, o que também está em jogo são categorias políticas

terrenas, pois o bem comum dessa sociedade cristã obviamente entra em conflito com o dos não-cristãos, o que justifica ações de guerras e violências. Isso, por exemplo, fundamentou os ideários cruzadistas e o combate à heresia, que encontrou nos frades mendicantes um de seus principais sustentadores. Posto isso, percebe-se então que a única manifestação da expressão

bonum commune carrega uma abrangência que supera os limites da população componente de

uma única cidade, cobrindo toda a extensão da comunidade cristã na Terra; e aponta para a Salvação Eterna, de modo que ela mobiliza tanto um significado terreno (em segunda instância) quanto um transcendental (em primeira instância).

De acordo com a metodologia proposta, devido à baixa ocorrência da expressão

bonum commune na Chronica, voltamos nossa atenção para a sua busca nas obras

sermonárias de Iacopo de Varazze. No entanto, essa incursão também não foi bem sucedida, pois a expressão não foi encontrada em nenhuma das coleções de sermão.377 Sendo assim, se

375Chronica, p. 444-445. “Ecce quot bona sepe secuntur ex muliere bona (...)Alia mulier, scilicet Galla regina,

fuit causa conversionis totius gentis Ungarorum (...)”. [“Eis quantos grandes bens frequentemente se derivam

de uma boa mulher (...) Uma outra mulher, isto é, a rainha Galla, foi a causa da conversão de todo o povo dos Húngaros (...)”]. Tradução nossa.

376Chronica, p. 444. “Erant omnes Ytalici christiani et ipsi Longobardi erant pagani, et ideo omnes Christianos

occiderunt”. Tradução nossa.

377

Todavia, a carga semântica de bonum commune apenas como ação que beneficia toda uma coletividade foi encontrada na expressão beneficium commune no segundo sermão proposto para o vigésimo-quinto domingo posterior à Festa da Santíssima Trindade em seu Sermones Dominicalis. Segundo as palavras do frade, os evangelhos exortam os homens a darem graças a quem lhes prestar alguma benfeitoria, podendo o benefício ser de três naturezas: o que é feito para uma pessoa em particular (singulare), o que é voltado para a comunidade (commune) ou o que é realizado em prol do pobre. A característica comum a todos os três residiria no fato de que qualquer um deles é facilmente esquecido pelo homem. Especificamente quanto ao

beneficum commune, o frade ainda nos informa a respeito do que ele considerava ser a opinião geral da época

sobre as ações em prol de toda comunidade (ou seja, um bem comum): segundo ele, esse tipo de ação é facilmente esquecido porque habitualmente se diz que “quem serve à comunidade, serve a ninguém”. É

135

bonum commune apresenta apenas uma única expressão no texto da crônica e o recurso às

antologias não se mostrou de grande ajuda, cabe então o questionamento: a aparição única do vocábulo é semanticamente suprida por outro(s) termo(s)? Caso a resposta seja afirmativa, quais são esses termos?

Em uma forma mais próxima da grafia de bonum commune, é identificável na

Chronica a expressão bona comunia – que faz contraposição a propria bona – quando o

arcebispo afirma a excelência do regime promovido por um bom governante:

De fato, do governo de um bom governante deriva uma grande utilidade. Um governante assim favorece a justiça, promove a república, negligencia os bens

próprios, e sempre intende os bens comuns378

Ao compararmos os dois fragmentos, alguns pontos devem ser elencados. Primeiramente faz- se perceber a diferença sobre a matéria tratada. A história de Galla versa sobre uma conversão à fé cristã, enquanto a passagem agora apresentada discorre sobre a ação política de um bom governante (o que o cronista chama de regimen boni rectoris). Em segundo lugar, é preciso

interessante chamar atenção para isso porque esse posicionamento revela uma percepção apurada por parte do frade de como esse tipo de atividade era costumeiramente interpretada pela sociedade da época. Iacopo não entrou em maiores detalhes, mas se conjecturarmos que as instituições de administração da vida pública teoricamente existiam em favor da comunidade na qual tomavam existência, talvez poderíamos pensar que, segundo esse senso comum, os homens que ocupavam esses cargos acabavam concebendo que na verdade não serviam a ninguém. Isso, pois, aponta para uma assimilação daquilo que é público/comum não como pertencente a todos, mas a nenhuma pessoa, o que poderia embasar apropriações de bens públicos ou ações no âmbito da política visando benefícios próprios. Sermones Dominicales, Dominica XXV post Festum Trinitatis, Sermo II. “Em verdade, no evangelho é informado sobre muitos gêneros de homens (...) Em oitavo lugar, é informado sobre os receptores de benefícios, isto é, para quem as graças dos beneficiadores é movida, notado pelo que foi dito: ‘Mas esse homens quando viram o sinal daquilo que foi feito, disseram: Pois aqui está o verdadeiro profeta, que veio ao mundo. Que é contra aquele que não reconhecem os benefícios, nem dão graças, mas imediatamente esquecidos. O benefício, no entanto, pode ser singular, comum ou dado aos pobres. O benefício singular é facilmente esquecido pelo homem. Interrogado sobre o que definhava mais facilmente entre os homens, o filósofo Simónides respondeu que era o benefício. Segundo Sêneca, a memória dos benefícios esvai-se, mas a das injúrias é tenaz. O verdadeiro benefício comum é facilmente esquecido pelo homem, porque habitualmente é dito: quem serve à comunidade, serve a ninguém. O benefício feito ao pobre é facilmente esquecido pelo homem. Sobre isso se diz do pobre que por sua sabedoria salvou a cidade que ocupava, porque nenhum homem jamais se recordaria daquele pobre” [“In hoc quidem evangelio multa

genera hominum informantur (...) Octavo informantur beneficiorum recerptores, ut scilicet suis benefactoribus gratias agant, quoddam notatur per hoc quod dicitur: Illi autem homines cum vidissent quod fecerat signum dicebant: Quia hic est vere propheta qui venturus est in mundum. Quod est contra illos qui beneficia non recognoscunt, nec gratias agunt, sed statim obliviscuntur. Beneficium enim aut postest esse singulare, aut commune, aut datum ad paupere. Beneficium singulare, obliviscitur homo de facili. Simonides philosophus interrogatus quid inter homines facile consenesceret, respondit benefium. Seneca. Memoria beneficiorum labilis, iniuriarum vero tenax est. Beneficium vero commune obliviscitur homo facilius, quia scilicet dici consuevit. Qui servit communitati, servit nulli. Beneficium autem ad paupere impensum obliviscitur homo facillime. Unde dicitur de illo paupere qui civitatem obsessam per suam sapientiam liberavit, quod nullus deinceps recordatus est hominis illius pauperis”]. Tradução nossa e grifo nossos.

378

Chronica, p. 390. “Ex regimine vero boni rectoris magna utilitas provenit. Talis enim rector iustitiam fovet, rem publicam promovet, propria bona negligit, bona comunia semper intendit (...)”. Tradução e grifo nossos.

136 reforçar a percepção de que embora as grafias das expressões sejam similares, no último trecho exposto trata-se de bens comuns (no plural) e não de um único bem comum como ocorreu com bonum commune. Em terceiro, nota-se que Iacopo realizou uma contraposição ao tratar do bom governante e dos bens comuns, o que não foi feito anteriormente em relação ao

bonum commune. A partir dessas colocações, então, aventamos a possibilidade de que bonum commune esteja unicamente para o bem comum no sentido de salvação eterna da alma e/ou

Deus e, portanto, com um principal significado transcendental (além do terreno como exposto há pouco); e que bona comunia - bem como outras expressões que tomem um sentido

genérico de bem comum - esteja voltada mais para aquilo que é da vivência político-social

sem aparentemente fazer menção ao sobrenatural em primeira instância.379 Dessa forma, os

bens seriam algo de posse comum de todos, de modo que se uma pessoa se apropria deles,

consequentemente o seu uso/acesso por parte de outros se mostra automaticamente impedido; e que o bem seria algo relativo a todos os membros de uma comunidade sem que, contudo, o apoderar-se dele por parte de um impeça que outros também se beneficiem do mesmo.

De modo a fortificar essa hipótese, faz-se notar que, no segundo fragmento apresentado, a grande utilidade (o que propicia a ideia de funcionalidade prática380), além de estar em estreita relação com a diligência quanto aos bens comuns e em oposição aos bens

próprios, se dá também para com o favorecimento da república. A partir disso, então, também

se infere que as bona comunia, ao contrário da semântica portada pela expressão bonum

commune, refeririam-se à communitas enquanto congregação de cidadãos na Terra ou, mais

genericamente, a um conjunto de homens estabelecidos juntos em justiça (res publica). Outro fator que reforça essa ideia se encontra na continuação dessa passagem da Chronica, que se desenvolve da seguinte maneira:

Assim, o bom governante, uma vez que for preciso cuidar de alguns bens, não os atribuirá a si, mas convertê-los-á à utilidade comum dos subordinados (...) Se, no entanto, esse governantes forem fracos, controlados por vícios e inclinados apenas às utilidades próprias, então não discutem sobre a condução de alguns bens comuns nem se dispõem a discutir, mas negligenciam e prestam pouca atenção aos [bens]

379Afirmar que a referência ao sobrenatural não se dá em um primeiro plano é crucial para não descartarmos a

possibilidade de que esses bens comuns poderiam ser empregados tendo em vista a alcance de Deus. Como visto, a as comunas italianas centro-setentrional do século XIII eram, ao mesmo tempo, instituições civis de caráter religioso e político. Cf. nota 278.

380Essa grande utilidade, como se depreende do texto de Iacopo, era, nesse caso, precisamente o favorecimento

da justiça, a promoção da república e a preocupação com os bens comuns – todas ações funcionais para a manutenção de uma communitas de acordo com os preceitos expostos e discutidos na primeira parte desse capítulo.

137

comuns. E assim toda a república é destruída quanto não é amada ardentemente por

esses mesmos governantes381

Além de fazer referência a governante(s) e à república, termos já aludidos, o trecho trata também de subordinados, de cidadãos que estão sob o comando do(s) primeiro(s) e que tomam parte na configuração da res publica. Nele também é reforçada a conexão entre utilitas e o bens comuns, de maneira que o primeiro termo pode, a partir de então, talvez ser utilizado com indicador de que a atenção do autor volta-se para problemas sócio-políticos em determinada passagem da Chronica. Isso, pois, oferece maior alento à ideia que levantamos: que bonum commune está para Deus e as outras expressões para preocupação relativas ao ordenamento civil.382

Diante da única ocorrência da expressão bonum commune e das reflexões apresentadas, resta agora verificar se as outras que de alguma forma carregam uma semântica de bem comum irão confirmar ou colocar em descrédito essa hipótese. Por hora, antes de continuarmos, gostaríamos de antecipar que, caso essa teoria se mostre corroborada pelo restante da análise documental, a tradução do fragmento sobre a conversão do povo húngaro teria que sofrer uma pequena, mas importantíssima, alteração: no lugar de ‘um bem comum maior’ teríamos que registrar ‘o bem comum maior’ (maius bonum commune) – pois a conversão, que pode levar à Salvação/Deus, seria o maior bem comum dentre todos.

381Chronica, p. 390-391. “Sic etiam bonus rector, si aliquando aliqua bona procuranda emergunt, ea sibi non

attribuit, sed ad comunem utilitatem subditorum ea convertit. (...) Si autem ipsi rectores fuerint languidi et vitijs resoluti et proprijs utilitatibus tantum intenti, tunc nec aliqua bona comunia agenda discutiunt nec discussa statuunt, sed omnia communia negligunt et parvipendunt. Et sic tota res publica destruitur, dum ab ipsis rectoribus non çelatur”. Tradução e grifo nossos.

382Além de termos chegado a essa formulação a partir da Chronica, Kempshall também aponta para essa

especificação ocorrida quanto aos termos bonum e utilitas. Segundo esse historiador, “na ausência do artigo

definido, ‘bonum commune’ ou ‘communis utilitas’ poderiam carregar tanto um sentido teórico quanto concreto, o bem comum ou um bem comum entre muitos. Até certo ponto, isso era implícito pela diferença entre ‘bem’ (bonum) e ‘benefício’ ou ‘utilidade’ (utilitas), desde que a definição de benefício acomodava o