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3 COMUNIDADE POLÍTICA E BEM COMUM NA CHRONICA CIVITATIS

4.3 Acerca da Temática Abordada

Em sua grande maioria, a abordagem do tema da comunidade política a partir da

Chronica teve que ser realizada por meios indiretos. Os vocábulos mais empregados para

tratar de comunidades políticas - civitas e commune - não possibilitaram nenhum aprofundamento quanto ao que se considerava como sendo as razões e objetivos dessas sociedades. O termo communitas permitiu apenas a acepção de organização política ou conjunto de cidadãos que se autogoverna. Diante da dificuldade de pensar esse tema a partir dele mesmo, o trabalho teve que ser realizado tomando por base os modos de governar e de

conduta civil. Isso, no entanto, não foi devido a uma inadequação da metodologia de pesquisa

empregada, mas às características da própria documentação. Como salientado há pouco, o centro da reflexão política realizada por Iacopo na Chronica não recai sobre as instituições de administração da vida pública, mas converge em três pontos precisos: o governante; os cidadãos (em sua relação como a comunidade como participante da administração pública e, em um sentido político mais extenso, em relação a deveres cívicos gerais); e os cidadãos no ambiente doméstico. Com exceção do primeiro significado de communitas identificado nos sermões (que apontava para a origem comum de todos os seus membros), todos os outros encontraram seus correspondentes na Chronica a partir da análise dos deveres do governante e dos cidadãos, ou seja, das considerações a respeito de virtudes a serem cultivadas e vícios a serem combatidos. Como informado no primeiro capítulo, o debate político realizado na segunda metade do século XIII dentro dos padrões da Tradição das Virtudes Políticas - parte fundamental da Filosofia Civil conforme atesta Maurizio Viroli – se dava justamente nesses parâmetros. Centrar-se sobre a conduta do governante e dos cidadãos, então, indica que a

Chronica confirma parcialmente a tese de Michel Senellart sobre a precedência do regimen

em relação às instituições governamentais. Parcialmente, pois o filósofo afirma que a partir do século XIII essas duas categorias teriam se confundido, o que a obra de Iacopo não confirma443: para o arcebispo o que importa não é o fortalecimento da estrutura

443É preciso declarar que é precisamente nesse ponto que a atenção de Senellart volta-se mais precisamente para

a questão monárquica (regnum). Sendo assim, talvez essa incongruência com sua tese tenha sua razão no regime comunal que Iacopo tinha em vista ao escrever sua obra.

159 governamental; o regere do governante não se volta para isso, mas para a manutenção da sociedade sobre diretrizes precisas que visam a justiça, a paz e a concórdia, enfim, um correto ordenamento social.

Posto isso, é preciso declarar que a concepção de comunidade política depreendida por meio desse modo indireto nos foi apresentada como muito próxima do entendimento ciceroniano de res publica como visto no primeiro capítulo. Além de ser perfeitamente concordante com a estrutura e funcionamento das comunas da época (como é notável pelo primeiro significado de communitas444) e de compartilhar com a teoria política ciceroniana e estoica a preocupação quanto a concórdia e a paz445, a questão do consentimento de direito e da comunhão de utilidade também formam a usa base. Ao mobilizar a questão da aequalitas, a terceira acepção de communitas mostrou a importância que o conjunto de leis adotado por uma sociedade desempenha na manutenção da comunidade política em conformidade com os padrões ideias concebidos.446 Assim como na formulação de Cícero, onde o direito e o

honesto/justo/justiça coincidem (fator esse que também foi transmitido pela mediação

agostiniana do De re publica), Iacopo também toma as leis como impecáveis, concentrando sua discussão na aplicação delas feita pelo homem. O prestígio que deve ser conferido à

justiça também foi expresso pelo quinto sentido de communitas447, enquanto a preferência que deve ser dada ao honesto também se fez presente na discussão acerca do bem comum entendido como utilitas communis (o segundo ponto fundamental da concepção ciceroniana de res publica).448 Tomar consciência disso, então, reforça a impressão atestada no final do terceiro capítulo de que Iacopo, por vezes, se manteve muito próximo aos entendimentos ciceronianos acerca dos conceitos-base ligados ao tema do bem comum – o que, agora, também pode ser estendido ao tópico da comunidade política.

Todas essas considerações, então, mostram que Iacopo se inseria bem no debate político nos moldes em voga na época, ou seja, como Filosofia Civil. Conforme atenta Kempshall, os estudos de Quentin Skinner e de Maurizio Viroli apontam para o fato de que concepções ciceronianas e estoicas sobre paz e concórdia formavam o centro do conjunto de ideias que davam base aos regimes comunais do norte da Itália e o núcleo das discussões

444 Cf. seção 3.1.1.1, p. 102-110. 445Cf. seções 3.1.1.4 e 3.1.1.5, p. 126-130. 446Cf. seção 3.1.1.3, p. 120-126. 447 Cf. seção 3.1.1.5, p. 129-130. 448Cf. seção 3.2.3, p. 146-153.

160 empreendidas pelos homens de saber.449 Segundo Viroli, o De re publica de Cícero, pela mediação do Somnium Scipionis de Macróbio que possibilitava o acesso ao sexto livro da referida obra do filósofo romano, foi a principal fonte de autoridade para os teóricos do governo citadino.450 Por sua vez, Enrico Artifoni demonstrou em suas pesquisas que houve, no século XIII italiano, uma recuperação de uma civilis sapientia de tradição ciceroniana que formou a linguagem política empregada na época dos podestà.451 Por seu pensamento ligado às exigências de uma vida cívica ativa, Cícero foi tomado como um patrimônio de sabedoria moral herdado da civitas clássica para ser aplicado à cidade do século XIII.452 Além dessa incersão em uma linha de pensamento ciceroniana, assim como era recorrente na segunda metade do referido século nosso autor pensou a comunidade política a partir de um questionamento platônico que pergunta como as sociedades humanas devem ser, qual o seu melhor e/ou perfeito estado453: para fornecer uma resposta, o arcebispo conferiu maior ênfase à Tradição das Virtudes Políticas.

De modo geral, também, a análise da Chronica a partir dos sentidos atribuídos ao termo communitas permitiu o exame de passagens do texto que, em conjunto, aparentemente indicam que a preocupação do arcebispo se deu em primeira instância com questões relativas à vivência no século, de maneira que o transcendental e problemas relativos à salvação e beatitude eterna acabariam ocupando um horizonte mais distante. Todavia, é óbvio que os modelos de conduta propostos possibilitariam mais do que apenas a formação de uma

comunidade política que operasse em perfeição na Terra, isto é, permitiriam também a

superação dos pecados. Mas, isso não se fez presente de modo direto em momento algum de todos os trechos que foram analisados mediante o reconhecimento neles de determinada semântica da palavra communitas. Isso, então, é sintomático de quanto questões da vida cotidiana secular eram pensadas em concomitância com problemas de ordem espiritual, pois, como frade Pregador e Arcebispo, a principal preocupação de Iacopo de Varazze era com a salvação da alma: se foi dedicada tamanha consideração a esses assunto, certamente é porque eles eram concebidos como um meio para alcançar esse fim almejado.

Quanto ao tema do bem comum, a primeira observação conclusiva que deve ser traçada é a confirmação pelo texto da Chronica da diferenciação de significado assinalada

449KEMPSHALL, op. cit., p. 16-17, especialmente as referências às obras de Skinner e Viroli na nota 54. 450

VIROLI, op. cit., p. 5.

451ARTIFONI, op. cit., p. 157-158.

452Ibid., p. 162. BARON, Hans. Cicero and the Roman Civic Spirit in the Middle Ages and Early Renaissance.

In: Bulletin of the John Rylands Library. Vol. 22, n. 1, 1938. p. 72-97. p.72, 80, 83.

161 pelo emprego dos termos bonum e utilitas. O historiador Matthew Kempshall demonstrou em seus estudos que os homens letrados do século XIII e início do XIV “eram capazes de

distinguir entre o que é moralmente bom e o que é vantajoso (...) os teólogos escolásticos discutiram a noção de bem comum como teoria metafísica bem como ideia política”, de

modo que bonum seria a marca do primeiro, enquanto utilitas seria a do segundo.454 Conforme o estudioso, a diferença entre o que é bom (bonum), o que é vantajoso (utilitas) e o que é prazeroso (delectabile) se fez presente na Ética aristotélica e sobreviveu na tradução feita por Grosseteste na metade do século XIII. Essa, então, na época teria sido recepcionada como uma espécie de reforço às distinções entre o que é certo e moralmente virtuoso (ius,

honestum) e o que é vantajoso ou útil (utile, commodum) já de conhecimento dos homens de

saber por meio das obras de Cícero e suas considerações sobre a conduta do indivíduo virtuoso inserido na res publica.455 Como visto na Chronica de Iacopo456, a expressão bonum

commune foi empregada apenas uma única vez para designar a conversão do povo húngaro e

a consequente possibilidade de salvação eterna de todos os conversos - ou seja, significou, em última instância, o próprio Deus de modo que o bem comum nos foi apresentado como o

princípio de bondade no universo (ratio boni).457 Nessa passagem, portanto, a ideia de bem

comum foi tomada como sendo um todo universal, aquele que independe de suas partes para

existir e, consequentemente, requer a participação do indivíduo nele afim de que ele possa ser caracterizado como bom. Isso, então, implica na coincidência entre bem comum e bem

individual, de maneira que o último não pode existir sem o primeiro (sinal de que mesmo

assim o comum é simultaneamente diferente e superior ao individual) e que “indivíduos

podem desejar o que é bom para eles mesmos somente por meio do desejo do bem comum, e o bem da parte é dependente do bem do todo”.458

Nesse caso específico, a respublica

christionorum enquanto comunidade mística pode ser considerada como o todo, quanto o

reino húngaro entendido como respublica (entidade política terrena) constituiria a parte. Disso resulta que o bem da comunidade política terena só é possível ao coincidir com o da celestial: bens que se dão no século, portanto, podem (e devem) se encontrar em univocidade com o bem maior (o que explicita a permeabilidade mútua dos campos espirituais e materiais e seus respectivos poderes). Segundo Kempshall, ao ser definido no sentido de princípio de

454KEMPSHALL, op. cit., p. 339-340. 455

Ibid., p. 347.

456É interessante notar que o refinamento do emprego do léxico relativo ao bem comum não se dava somente por

parte de filósofos e teólogos, mas também em Iacopo como cronista.

457

Cf. seção 3.2.1, p. 132-137.

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bondade o bem comum se daria como a vida de virtude e a beatitude eterna, ou seja, tanto o

meio quanto o fim (como já havia sido aventado no terceiro capítulo).459

Todas as outras manifestações da ideia de bem comum presentes na Chronica estão atreladas a questão da utilidade, seja pelo emprego do próprio termo utilitas na expressão

utilitas communis ou pela associação feita entre bona comunia e magna utilitas. Como é

perceptível pelos fragmentos apresentados no último capítulo, a utilitas está em estreita relação com a manutenção do bem da ordem e da paz.460 Por exemplo, no trecho em que a locução bona comunia foi grafada, a magna utilitas significou o favorecimento da justiça e a promoção da república pela negligência dos bens próprios e a atenção aos comuns.461 Já na sua sequência, que trata do bom governante, a indevida conduta do homem político ao se ocupar apenas das utilitates proprii e não da utilitas communis levaria à destruição da república (que, como visto, em caráter ciceroniano tem sua ordem baseada na justiça/honesto).462 Nas narrações do episódio do ataque sarraceno à Gênova463, da discussão entre Cipião e Catão464, e da história de Marco Régulo465, a utilidade referiu-se à própria existência das comunidades políticas em bom estado de sua composição.

A relação entre bem comum e o bem individual em cada um dos casos deve ser analisada individualmente. As duas primeiras passagens citadas há pouco (a que mobiliza o termo bona comunia e a sua sequência sobre o bom governante) devem ser tomadas juntas para que isso seja esclarecido. Inicialmente o bem comum no primeiro excerto parece ser alcançável em prejuízo do bem individual, pois a grande utilidade pressupõe a negligência do segundo e o cuidado para com o primeiro. No entanto, no segundo trecho apresentado o cronista afirma que um dos problemas do mau governante é dedicar-se apenas às utilidades

próprias. A partir disso, então, abre-se a possibilidade para que os dois bens possam se dar ao

mesmo tempo. Para que esse empasse seja resolvido, a melhor alternativa é a da leitura da frase que se encontra entre essas duas passagens e a parte suprimida na segunda citação. A frase afirma o seguinte: “Por isso, esse tipo de governante pode ser comparado por mérito ao

estômago. Pois o estômago não retém para si o alimento que recebeu e digeriu, mas

459Ibid., p. 348-349. Cf. seção 3.2.1.

460Isso vai de encontro com as observações de Kempshall quanto ao bem comum entendido como utilitas.

Segundo o autor, nesse sentido, “a participação de um indivíduo no bem da ordem é denotada simplesmente

pela definição de bem comum como paz”. Cf. KEMPSHALL, p. 348.

461 Cf. p. 135. 462Cf. p. 136. 463Cf. p. 138-142. 464 Cf. p. 142-143. 465Cf. p. 148-149.

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transmite-o para nutrir os membros”.466 Já o trecho anteriormente suprimido explica como o estômago em perfeito funcionamento atua, gerando o bem de cada membro, e como o estômago doente prejudica todo o corpo.467 Sendo assim, subentende-se que, em suma, o bem

das partes ou individual, nesse caso, coincide com o bem comum do todo. Aqui, no entanto,

ao contrário do que ocorreu com a expressão bonum comum, o bem comum não é um todo

universal, mas um integral, pois ele depende do bem de todas as partes para existir: se o

estômago não transmite os nutrientes ao braço, por exemplo, a saúde do corpo cessa; se o governante não cuida de uma parte do corpo social, o bem comum dessa comunidade política também deixa de existir.468 O mesmo também se deu na narração do ataque sarraceno à cidade de Gênova e na discussão entre Cipião e Catão. No primeiro caso o bem comum só foi alcançado ao reaver as pessoas que haviam sido tomadas como reféns e seus tesouros. Sendo assim, o bem comum do todo só foi alcançado quando os bens individuais foram garantidos. No segundo, Cipião aconselha a manutenção do inimigo externo para que por meio disso a

paz interna seja mantida. Logo, se como colocado há pouco o bem comum enquanto utilitas

significa o bem da ordem e a paz, a proposta de Cipião visava também o individual, pois todos teriam vantagem com a concórdia entre os cidadãos, bem como a república como um todo, de maneira que o bem comum e o individual se confundem. Porém, caso o bem

individual ruísse pela entrega do indivíduo à ganância, concupiscência e pela ambição de

dominação diante da ausência do inimigo externo, o bem comum se desfaria, o que comprova a sua dependência quanto ao bem das partes e seu fundamento como um todo integral.

Apresentado como o primeiro exemplo para ilustrar as quatro ações que o cidadão é compelido a fazer quando ama ardentemente a república, o caso de Marco Régulo, no entanto, claramente afirma que o bem comum pode se dar em prejuízo do bem individual. Isso é patente no próprio enunciado da primeira ação, a de “antepor a utilidade dela [a república] à

466

Chronica, p. 390. “Ideo talis rector potest stomaco mérito comparari. Stomacus enim cibum receptum et digestum sibi non retinet, sed ad membra vegetanda transmittit”.

467Chronica, p. 390-391. “Observa-se que se o estômago for bem ordenado, então digere bem os alimentos

recebidos e, digeridos, transmite a cada membro nutrindo-os e, assim, toda a massa corporal é nutrida e governada. Mas se o estômago for fraco, então não digere os alimentos recebidos, nem os transmite aos membros e, então todo o corpo é debilitado e morre” [“Sed notandum est quod, si stomacus bene fuerit

ordinatus, tunc cibos receptos bene digerit et digestos ad singula menbra vegetanda transmittit et sic tota massa corporis vegetatur et regitur. Si vero stomacus fuerit languidus, tunc nec cibos receptos digerit, nec ad menbra transmittit, et corpus totum debilitatur et cadit”].

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Sendo um todo integral ele se encontra presente em essência em todas as partes, mas em integridade apenas em uma/algumas preeminente(s). No caso do corpo humano, uma dessas partes especiais seria a cabeça, pois o todo vive sem uma perna, por exemplo, mas não sem a cabeça. Iacopo não entra nesse mérito, mas, pensando na analogia corporal empregada, o estômago também seria uma parte prevalecente, pois sem ele o corpo morre; em paralelo, o corpo sócio-político se destruiria sem os governantes.

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própria”.469

Na história, o cônsul sacrificou a própria vida para salvar a República Romana. A partir disso, conclui-se que, à semelhança do que ocorreu quando do emprego de bonum

commune, nessa passagem o bem comum foi tomado como universal, pois não tem

necessidade de que todas as suas partes se realizem para existir. Mas, de modo diverso, nesse caso o bem individual não se encontra sob o gênero do bem comum, pois se assim fosse, o segundo estaria presente no primeiro em integridade e essência, o que não é o caso: bem

comum e bem individual nessa passagem não compartilham absolutamente nada. As mesmas

conclusões podem ser inferidas das historietas apresentadas para ilustrar as outras duas ações requeridas, respectivamente a de se expor à morte para a salvação da república e a de pegar em armas contra o pai ou filho.

Posto isso, cabe então declarar que Iacopo de Varazze se inseriu bem no debate conceitual a respeito do bem comum, visto que soube empregar em sua crônica o uso largamente consensual dos termos bonum commune e utilitas communis. Por outro lado, o arcebispo não tomou o bem comum apenas em uma única acepção, pois ora expressou sua concepção como sendo de caráter universal, ora como integral. O mesmo ocorreu acerca da relação dele com o bem individual, que por vezes foram tomados em univocidade (com a ressalva de que mesmo assim o bem comum ainda era diferente e superior ao individual) e por outra em completa estranheza, não pertencendo nem ao mesmo gênero. Em resumo, a

Chronica apresentou três tipos de entendimento da relação entre bem comum e individual: o

universal onde o bem comum e o individual coincidem; o integral onde o bem comum e o

individual coincidem; e o universal onde o bem comum e o individual não coincidem e são

provenientes de gêneros diferentes.

Por fim, é preciso notar que dentre esses concepções de bem comum, a mais recorrente na Chronica foi a segunda. Além disso, essa ideia foi apresentada quase que exclusivamente como utilidade. Sendo assim, se o termo utilitas marca a preocupação com o bem da ordem e da paz e a utilidade comum só pode ser alcançada com a realização da individual, parece lógico que a atenção da reflexão sócio-política de Iacopo tenha se voltado para a proposição de modelos normativos da conduta pessoal, tanto do homem na lida política ordinária quanto no ambiente político mais amplo e no doméstico. A percepção disso, portanto, parece contribuir para uma compreensão mais clara da aparente confusão existente entre as esferas pública e privada que atravessa a obra do arcebispo. O bem comum da comunidade política

165 enquanto utilidade depende do bem individual que é alcançado por meio das virtudes políticas. Ora, como exposto, se o bem comum entendido como princípio de bondade no

universo se dá pela vida de virtude e significa concomitantemente a beatitude eterna, torna-se

evidente a estreita ligação entre uma correta vivência cívica e o horizonte salvífico- escatológico. O bem da ordem e a paz da comunidade política na Terra, assim, formariam a

conditio sine qua non para a ascensão a Deus uma vez que o homem vive em sociedade:

aquele que adentra à república ingressa no caminho em direção à Cidade Celeste. O fato de Iacopo de Varazze ter se ocupado mais da utilitas que do bonum não exclui de forma alguma a finalidade espiritual de sua Chronica, mas explicita o vínculo existente entre terreno e transcendental. Ao atrelarmos essas conclusões à recordação do momento de escrita da obra, é notável que o cunho político de sua escrita possuía dois precisos escopos, cujo segundo é também o fim do primeiro: intendia-se reformular a sociedade terrena genovesa sobre os parâmetros de uma conduta pessoal que sincronicamente garantiriam, por um lado, o bem individual e correto ordenamento civil no século e, por outro, o bem comum daquela

comunidade política ao assegurar a salvação individual de todos os cidadãos. No interior