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3 AS PISADAS NA AREIA E OS RUMOS TEÓRICOS DA PESQUISA: O SUL (S)

3.1 A COMPREENSÃO TEÓRICA SOBRE A GEOGRAFIA DA RELIGIÃO

A rosa dos ventos é assoprada agora para o sul, onde me aproximo das origens históricas e epistemológicas dos assuntos discutidos que sustentarão esta pesquisa. É o momento que suscito nossos ancestrais manifestados nas práticas religiosas, em específico, da cultura umbandista. A canção citada acima é um recorte dessas manifestações de nossas africanidades, tornando-se pilar fundamental para dialogar o espaço sagrado, bem como as performances de corpo por ele produzidas.

“Mar, misterioso mar, que vem do horizonte” esse mesmo mar que constitui minha praia é também o caminho de partidas e chegadas daqueles que, com muito sofrimento, trouxeram a herança cultural para o nosso Brasil: os escravos.

Por meio deles, construímos histórias, identidades e representações e, além disso, carregamos o fardo de suas mais remotas memórias. Somos herdeiros de suas lutas, batalhas e conquistas. É desse misterioso mar que se carrega o segredo de um povo que faz de seus atabaques e cânticos o chamamento para suas expressividades religiosas. E o mar, na sua intensa maresia, chama as sereias, revira as lendas, e traz sacralidades imbuídas em nossos corpos. “Os madrigais vão

34Lenda das sereias - Rainha do mar é um samba-enredo composto por Vicente Mattos, Dinoel e

Arlindo Velloso para a escola de samba Império Serrano no ano de 1976. Interpretado por Clara

Nunes e posteriormente por Marisa Monte. Fonte/site:

despertar”, assim como despertarão meus pensamentos sobre o que trago para esta

pesquisa.

Segundo Almeida (2008), a discussão da cultura na Geografia era pouco divulgada aqui no Brasil até os anos de 2000. Isso se deve a poucos pesquisadores brasileiros trazerem em suas pesquisas a abordagem humanista como, por exemplo, a neopositivista.

A despeito do reducionismo, ser marxista ou adotar a geografia crítica prevaleceu e afastou os geógrafos do risco de serem considerados positivistas se adotassem outra abordagem. (ALMEIDA, 2008, p. 34)

Em certa medida, esse risco ocorreu também em estudos referentes a religiosidade no campo da Geografia (CORRÊA E ROSENDAHL, 2005). Embora a temática de cunho religiosa ser discutida há décadas, a insegurança evidenciou-se comum diante das abordagens sobre este assunto.

Pela perspectiva geográfica, a relação que se estabelece entre o homem e a terra também se aproxima do ser-religioso, ou seja, nas sacralidades. Em Claval (2011), o novo olhar de geógrafo atinge a experiência do sagrado, dando atenção para uma cotidianidade laica. Segundo Matthewsonn e Seemann (2008), foi a partir da década de 1960, por influência da Geografia cultural da Escola de Berkeley35,

que a inspiração em estudar geografia no âmbito da cultura religiosa tornou-se possível.

Diante dessa possibilidade e com o intuito de pesquisar a experiência religiosa de sujeitos e grupos sociais, sob a perspectiva do meio em que vive, tornou-se possível a expansão e entendimentos dos fenômenos místicos, através do equilíbrio entre areligião, a estrutura social e econômica. Ao nos reportar sobre esse assunto, Bezzi (2005, p. 94) nos afirma que:

Os geógrafos devem se tornar cientes da religião e seus efeitos através do aprendizado em outros ramos de estudos religiosos; só então, podem fornecer contribuições valiosas. Eles também devem se interessar pelos aspectos da vida, tais como imagem e simbolismo, valor e significado, uma vez que a religião é um aspecto da vida que permite a investigação desses temas. A dialética da relação entre religião e ambiente. O geógrafo argumenta que é necessário, por um lado, mostrar que influência a religião tem sobre as pessoas, sua civilização, seus costumes; por outro lado,

35 Carl Sauer foi um dos geógrafos precursores a relacionar aspectos culturais com a Geografia. Matthewsonn e Seemann (2008, 78), nos afirmam que “baseando-se na abordagem histórico-cultural de Sauer, os geógrafos de Berkeley enfatizaram as paisagens da América tropical e mantiveram laços estreitos com as disciplinas de história e antropologia e as ciências naturais”.

devem ser mencionadas as circunstâncias externas que levam a modificação da religião considerada.

Diante dessa perspectiva, novas tendências e discussões avançaram acerca da religião no âmbito geográfico. Elas contribuíram para os diferentes sentidos e aspectos destas complexas e instigadoras relações.

A religiosidade, a devoção e o misticismo sempre fizeram parte da história da humanidade e prova dessa existência são os registros encontrados em forma de desenhos nas cavernas provenientes da era paleolítica36 que, de certa forma,

reafirma a existência do sagrado entre os homens como parte integrante para compreender sua própria existência. A relação estabelecida entre sujeito e o meio ao qual o geógrafo vive é relatada pelas palavras de Claval (2011, p. 227)

Interessar-se aos homens e a sua experiência do mundo é interrogar-se sobre os seus sentidos. O homo geographicus dos dois primeiros terços do século XX era feito essencialmente de um cérebro (é por isso que o seu sexo importava pouco), braços para trabalhar e pernas para se deslocar. Ignorava-se as suas orelhas, as suas mãos, a sua boca, o seu nariz, tudo o que entra em contato com a experiência do mundo.

Diante das palavras do citado autor, a experiência requer uma sensibilidade dos sentidos do homem, pois agora nos importa os seus sentidos e tudo o que o cerca, já que se tornaram meios de análise para reflexão e formação de conhecimentos.

No Brasil, os estudos da Geografia na Religião começaram tardiamente, na década de 1970. Segundo Frangelli (2012), dentre os pioneiros nesse estudo, destacam-se a professora Maria Cecília França e os geógrafos Gualberto Luiz Nunes Gouveia, Sylvio Fausto Gil Filho e Zeny Rosendahl.

Diante dessa perspectiva, aponto dois núcleos de pesquisa que contribuíram para que as pesquisas relacionadas a este tema ganhassem espaço no panorama da Geografia e da religião. No Rio de Janeiro, o NEPEC37, pela UERJ, com os

estudos de Rosendahl tendo como expoente seu livro Espaço e Religião – uma

abordagem geográfica (2002), nesta obra a pesquisadora discorre sobre a presença

do sagrado na organização espacial. Dentre os desafios encontrados pelos geógrafos entre as décadas de 1970 e 1990 está a dificuldade de trazer outras

36 Ver fonte MÉTIS: história & cultura – v. 2, n. 2, p. 229-259, jul./dez. 2002 37 Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e Cultura.

perspectivas com relação à Geografia tradicional. Conforme Abreu (1994, p.21), essas dificuldades também estariam relacionadas com a seguinte afirmação:

[...]uma precária interdisciplinaridade entre a geografia e as demais ciências sociais que tratam da temática; (2) a geografia se circunscreve a ela mesma, no sentido de ser fechada em si mesma; (3) a temática da religião enfrentou uma barreira no seu processo de difusão no interior da própria disciplina, consequentemente buscou se afirmar internamente antes de abrir-se para os debates interdisciplinares.

Nesse aspecto, os esforços para que os debates interdisciplinares fossem enaltecidos movimentaram geógrafos para novas buscas e novas percepções sobre o fenômeno religioso. Gil filho (2008), contemporâneo em assuntos relacionados ao sagrado na Geografia, desempenha um importante papel como pesquisador junto ao NEER38. O geógrafo revela a essência de se estudar a religião na Geografia, a partir

da consideração pelo conceito do sagrado, conforme Gil Filho (2001, p. 70).

O exame da experiência do sagrado nos remete a um atributo imanente do sentimento religioso. Através do sentimento religioso qualificamos e reconhecemos o sagrado em sua exteriorização.

É neste âmbito da citação deste autor que merece destaque as contradições inerentes ao pensamento sobre o que é sagrado e o que é profano e como isso reflete a composição do espaço. Se analisarmos o trabalho de Eliade (1992), as categorias de sagrado e profano estão adjetivadas ao espaço no sentido de separação daquilo que é e não é mundano. Para isso, ocorre, presumidamente, uma perspectiva de uma Geografia da religião que se concentra na análise das constituições de materialidades relativas, como formas separadas, ora ao sagrado e ora ao profano.

Na obra de Gil Filho (2001), que é expresso, sobretudo, no fragmento da citação acima, o sagrado está contido no sentimento religioso que é mobilizado pelos sujeitos e grupos a algo externo ao corpo que sente, ou seja, que significa alguma forma (simbólica, material, ideal, etc.) como sagrada, não implicando a constituição físico-material de um espaço já sacralizado. A sacralização remete à percepção e representação do sagrado em qualquer exterioridade experienciada pelo corpo em estado de fé e de sensações que remetem ao transcendental.

Este estado de produção da sacralidade, além do que é fixo como sagrado, coloca em suspenso a separação física e a dicotomia ideal entre o que é sagrado e o que é profano, em específico das religiões de matriz africana. Paralelamente, ao nos reportar ao pensamento de Massey (2009) e suas concepções sobre o espaço como caracterizado por atributos de fluidez e instabilidade, podemos perceber que muitas das ritualísticas não ocorrem somente em terreiros fixos e no espaço público, a princípio, profano é objeto de sacralidade. Por outro lado, na constituição do que é sagrado e do que é profano, na própria história de significações cristãs, muitos dos terreiros (como espaço sagrado materialmente visível das religiões afros) são tidos como profanos e, mais ainda, em alguns momentos desta história, manifestações não sagradas ou demonizadas. E é nessa experiência pelo sagrado que também estamos diretamente ligados ao fator da intolerância religiosa que, segundo Souza e Ficagna (2016), pode ser expressada pela não aceitação pela crença do outro.

Dessa forma, muitos terreiros podem ser “profanizados” ou violados por pessoas de outras religiões porque, na constituição de suas crenças, tal espaço nunca será sagrado e, até mesmo, demonstra um afronta ao que seria respeito ao sagrado. Deste modo, essa é uma prática infeliz muito comum como práticas de intolerância em cidades brasileiras, como observa o trabalho de (SILVA, 2013) no conflito entre pessoas neopentecostais e de religiões de matriz africana na cidade do Rio de Janeiro-RJ.

3.2 BREVES CONTEXTUALIZAÇÕES DE NEGRITUDE, AFRICANIDADES E