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1 INTRODUÇÃO: SUSPENDE A BANDEIRA E VAMOS TRABALHAR

2 DOS CAMINHOS CRUZADOS, ENTRE SAGRADOS E PROFANOS: O NORTE (N)

2.1 EM BUSCA DE UM PASSADO: PRIMEIRO GRÃO DE AREIA

2.1.2 A revelação do sagrado na infância

Em meio ao enorme pátio da casa, um galinheiro e muitas hortas, pedaços de tábuas e tijolos sempre estavam a vista. O primeiro prenúncio de uma brincadeira imitativa de se fazer o sagrado aconteceu de forma muito natural e simbólica.

Escondido da mãe10, lembro-me que busquei um pedaço de uma dessas tábua

espalhadas, uma tampa de cera de metal e algumas flores brancas miúdas. Tinha o trabalho de empilhar os tijolos, colocar sobre eles a tábua, e fazia da parede do galinheiro os fundos dessa minha arquitetura. Construída a casinha, no fundo dela, centralizada, colocava a tampa metalizada de um pote de cera descartada pela minha mãe. Ao seu lado, as flores brancas para dar o requinte daquela brincadeira.

Terminado de organizar minha casinha, acocorado na sua frente lá estava eu, e, na tentativa de estalar os dedos, começava a brincadeira imitativa, estimulado por uma visita em um terreiro de umbanda. Naquela tampa da lata de cera, de formato arredondado, cor prateada, imaginava a representação de Jesus. As flores simbolizavam o cuidado em manter um espaço bonito. Olhando fixamente na “lata”, inventava palavras, mexia os dedos, balbuciava coisas e mirando naquele “Jesus”, fazia a brincadeira. Eis que a partir desse rememorado episódio cuja construção improvisada, de certa forma, constituía o meu espaço-sagrado brincante. Conforme nos diz Gil (1991, p. 22):

Nos seus jogos, as crianças não se limitam a recordar experiências vividas, mas reelaboram criativamente, combinando fatos entre si e construindo novas realidades de acordo com seus gostos e necessidades.

A partir desse pensamento do citado autor, compreendo o ato de brincar com o jogo dramático11, cujo envolvimento com os elementos da brincadeira e o ato

imitativo denotam uma expressividade natural e espontânea da criança, no caso em questão, na brincadeira de construir e imitar gestualidades de um espaço sagrado, tendo como referência a situação de um terreiro12 de umbanda na cidade de Cruz

Alta/RS.

Não recordo muito bem de como se constituía esse terreiro de umbanda, mas lembro que era um lugar simples, uma casa de madeira, cor branca, aberturas da cor marrom e poucos degraus possibilitavam o acesso para adentrar no salão em que eram feitos os atendimentos.

10 Conforme Lopes (1989, p.68) o ato de esconder-se dos adultos faz parte da primeira fase da brincadeira dramatizada “de 4 a 6 anos as crianças buscam uma “ilha” afim de ficar longe dos olhos dos adultos para jogarem com mais liberdade”.

11 Segundo Nunes (2003), o jogo dramático e/ou teatral está diretamente ligado à infância, assim como para outras faixas etárias despertando na criança a possibilidade de manifestar-se de forma espontânea, criativa e imaginativa. Todo o ser humano possui capacidade de criar e expressar-se mesmo não sendo artistas ou não possuindo talentos. (NUNES, p. 30, 2003).

12 O terreiro de umbanda chamava-se Reino de Xangô localizado no bairro ferroviário da cidade de Cruz Alta. Hoje não está mais em atividades.

Lembro-me de uma senhora, de cabelos brancos, brincos vermelhos em suas orelhas. Aos que trabalhavam naquele terreiro, roupas brancas eram utilizadas por eles. E foi em uma dessas visitas no terreiro que rememoro a experiência citada. Ao adentrar no recinto, mantinha-me ao lado de meus pais, pois sentia medo se não estava perto deles, ainda mais quando o lugar visitado não me soava familiar.

De repente escutava algumas rezas cantadas e, depois de alguns minutos, via aqueles corpos em movimentos. Muitos deles giravam de forma rápida e isso tinha como reação o ato de esconder-me atrás das pernas de minha mãe. O medo chegava próximo de mim porque eu não sabia o que estava acontecendo com aquelas pessoas, que de uma hora para outra, modificavam seus corpos e suas vozes. Aos meus olhos, tudo era uma novidade. Notava que algumas pessoas enrijeciam os traços do rosto e ficavam com os olhos semiabertos. Foram a partir desses momentos que despertaram estranhamentos e curiosidades acerca do que estava acontecendo frente aos meus olhos.

Era chegado o momento em que a Cacique daquele terreiro chamava pelos meus pais, eu segurando a mão de minha mãe com força a acompanhava e, timidamente, olhava para aquela senhora já transformada. Meus olhos arregalados, temerosos, mas ao mesmo tempo curiosos fixados naquele acontecimento, faziam- me desvendar o que eram todos aqueles artifícios e toda aquela seriedade. “Como o “gafanhoto” 13 está?” Perguntava aquela senhora incorporada, e eu agarrado nas

pernas da minha mãe, como se estivesse ‘engolido a língua’, não respondia. Eu nem sabia o que ela estava me perguntando, na ocasião, não associava o inseto com a minha pessoa.

Ao mesmo tempo em que a insegurança de visitar aquele lugar tomava conta de minha mente, a curiosidade em descobrir o que acontecia de fato com aquelas pessoas também eram pertinentes, visto minhas brincadeiras de fundo de pátio reproduzir as imagens vistas e, de forma lúdica, as imitando. Conforme as palavras de Slade (1978, p. 19):

Alguns observadores de crianças gostam de distinguir entre o jogo realista e o jogo imaginativo. Mas, na realidade, o jogo (e certamente nos estágios mais precoces) é tão fluído, contendo a qualquer momento experiências da vida cotidiana exterior e da vida imaginativa interior, que se torna discutível se um deveria ser encarado como uma atividade distinta do outro. (...) A

13 A palavra gafanhoto é empregada por entidades em Umbanda para se referir à criança. Geralmente entidades das falanges de caboclos, pretos e pretas velhas, exus e pombo-giras se utilizam deste termo durante as sessões de caridade.

criança sadia se desenvolve para a realidade à medida em que vai ganhando experiência de vida.

A relação constituída entre a criança e o ato de brincar denominado aqui por jogo estabelece, segundo as palavras do citado autor, uma potencialidade de vivenciar e enfatizar o senso crível e imagético da criança. Essa capacidade de transformar o cotidiano em brincadeira lúdica estimula as capacidades intelectuais e contribui para o desenvolvimento cognitivo mais aflorado.