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BREVES CONTEXTUALIZAÇÕES DE NEGRITUDE, AFRICANIDADES E ANCESTRALIDADES

3 AS PISADAS NA AREIA E OS RUMOS TEÓRICOS DA PESQUISA: O SUL (S)

3.2 BREVES CONTEXTUALIZAÇÕES DE NEGRITUDE, AFRICANIDADES E ANCESTRALIDADES

No despertar de nossa cultura brasileira, cujas influências vem de origens dos mais diversos lugares do mundo, motivo esse que nos identifica como povo multiétnico39, carregamos em nossas veias a colonização dos europeus, a imigração

dos asiáticos, os ameríndios e, claro, a negritude dos africanos. Esta última, podemos associar ao Movimento Social Negro (MSN) que, segundo Py Dutra (2007), reforça a articulação política da cultura negra frente à sociedade.

Segundo a mesma autora, no Brasil, a expressão negritude identificada pela luta do povo negro tem como objetivo a reivindicação de direitos e promoção pela

cidadania do negro. Já Domingues (2005), nos reporta ao entendimento da expressão negritude pelos vieses ideológicos e culturais. Conforme Domingues (2005, não paginado) assinala da seguinte maneira:

No campo ideológico, negritude pode ser entendida como processo de aquisição de uma consciência racial. Já na esfera cultural, negritude é a tendência de valorização de toda manifestação cultural de matriz africana. Portanto, negritude é um conceito multifacetado, que precisa ser compreendido a luz dos diversos contextos históricos.

Parafraseando o citado autor, essa compreensão diante dos diversos contextos históricos pode estar correlacionada com o processo de descolonização à cultura eurocentrista presente no Brasil. Ao assumir a negritude, têm-se, muitas vezes, como consequência, os movimentos de intolerância racial no tocante às ações socioculturais de negros e negras. Estando à margem de processos culturais discriminatórios, ressalto as palavras de Antonacci (2014, p. 335) quando nos afirma o seguinte pensamento:

Se a razão capitalista racializa e normaliza conhecimentos, massifica comunicações, submete costumes a suas concepções de bem-estar, torna- se indispensável questionar seus pressupostos, decolonializando cotidianos a partir dos que têm em corpos, línguas e em expressões artísticas, âncoras de outras memórias e diferentes viveres.

Segundo o citado autor, ao adotar uma cultura excludente, como forma de rejeição dos corpos e saberes de outros povos e culturas diferentes das suas, assume-se uma postura racista de colonizar e, ao mesmo tempo, uma cultura impregnada de vidas e memórias, mitos e tradições.

Penso que seja necessária uma desconstrução de nossas formas de ver e pensar o mundo na tentativa de rompermos paradigmas ao retratarmos sobre a influência eurocêntrica em nossa sociedade. A cultura religiosa, sendo um dos legados de negritude e africanidades, herda desse eurocentrismo subjacente os pensamentos que limitam a expansão de um fazer-pensar próprios. Saliento, assim, as palavras de Zeca Ligiéro e Dandara (2013, p.21).

O eurocentrismo pode ser descrito como um arraigado hábito mental que leva os estudiosos a observar tudo através de padrões (de compreensão) ocidentais. O que não se encaixa nesse padrão e que, portanto, permanece (para eles) “inclassificável” tende a ser ignorado.

Ao identificar-me como pessoa de pele negra passo não apenas a assumir minha negritude, mas passo também a identificar e valorizar meus ancestrais que, em épocas remotas, trouxeram um importante e valioso legado ao Brasil tornando-o um país rico em multiculturalidades socioculturais. A gastronomia, as danças, a língua, as músicas, a religiosidade, são algumas das mais variadas influências desse legado.

Nossas matrizes formadoras, mestiçadas e impregnadas pela cultura indígena, são explicadas por Ribeiro (1995) através do termo ‘cunhadismo’40 e suas

repercussões diante da colonização dos europeus no território brasileiro. Se não fosse suficiente a escravidão dos índios, paralelos estavam os negros. Contudo, séculos se passaram e o estigma permaneceu. O legado escravocrata de índios e negros ainda é repercutido em meio à nossa sociedade desmerecendo e reduzindo suas culturas, retirando valores e classificando-os submissos à uma política de branqueamento.

Nesse viés, a negritude, bem como tudo que cerca as origens africanas são tratadas aqui nesta pesquisa como formas de resistência cultural, logo, tudo o que circunda em torno da tríade apresentada – negritude-africanidades-ancestralidade- torna-se mola propulsora para fortalecer a identidade e a representação da cultura religiosa afro-brasileira. Conforme Moraes (2016, p.69) nos diz que

Podemos afirmar que o povo de terreiro que pratica os cultos de matriz africana no Rio Grande do Sul é o guardião desta memória milenar que se mantém viva nas práticas culturais, nos códigos culturais, costumes e valores que compõem o acervo e o patrimônio imaterial de origem africana do Rio Grande do Sul.

Concomitante à citação do autor, o ato de conservar vivas as práticas de cultos de matriz africana remetem também a legitimidade de manter outros cultos afro-brasileiros que, para este estudo, enfoca-se na cultura religiosa umbandista. O terreiro de umbanda também é um espaço de resistência e de imanência de africanidades, visto a valorização e manifestação simbólica pelos santos religiosos, cânticos e tudo o que circunda dentro desse ambiente ligado à cultura dos negros.

40 Segundo Ribeiro (1995, p.82) o termo ‘cunhadismo’ era utilizado para designar a expansão civilizatória no Brasil, possibilitando a inserção de estranhos – os colonizadores- a entrar nas famílias indígenas, tendo como recompensa a mão de uma índia, tornando-se assim sua esposa. Uma vez recebido o seu temericó, podia ter acesso à sua esposa como a todos os seus parentes da geração dos pais, classificando como pessoas transáveis.

Além disso, é também um espaço de produção educacional dado seu legado histórico que é instigado nas instituições de ensino de nosso país.

O ensino da cultura e história afro-brasileira nas escolas ganhou um grande avanço, a partir da criação e aplicabilidade da lei 10.639/200341. Entretanto, algumas

escolas e professores sofrem pelo despreparo ao abordar tal assunto em meio aos conteúdos dados em aula. Devido a importância de se estudar a África, legitimamos o respeito às nossas ancestralidades, visto que o Brasil compõe, em seu vasto território, de riquezas de ordem imaterial. Heranças essas carregadas de conhecimentos, linguagem e espiritualidade. Carregamos uma África dentro de si. Segundo Lima (2018, p.166) podemos afirmar que:

Dentre muitos desses povos presentes, se encontra o culto aos ancestrais, que se caracteriza pela fé em um ente familiar fundador, que teria assumido poderes divinos desde o nascimento ou a partir de determinado momento. O ancestral adquire uma importância basilar, pois ser parte de uma descendência define o pertencimento ao grupo que o cultua e define a identidade da pessoa. Outro elemento fundamental nas expressões religiosas africanas nativas é o culto a elementos da natureza.

Tendo em vista a citação acima, vale lembrar que a chegada dos negros ao Brasil, na condição de escravos, trouxera nas bagagens, apenas memórias de suas vidas. As dificuldades encontradas ao chegar aqui no território brasileiro, eram superadas pela força das crenças. A fé tornava-se um dos elementos culturais primordiais para os manterem vivos. As subjetividades encontradas pelo sagrado da natureza eram condições manifestadas em seus destinos, muitas vezes, mascaradas e omitidas diante da religiosidade de seus donos.

Na figura 10, para fins de ilustração de meus pensares sobre o tema discutido neste subcapítulo, direciono o entendimento sobre negritude-africanidades- ancestralidades a partir da forma simbólica representada pela árvore.

41 Ver MEDEIROS, Angela C. e ALMEIDA, Eduardo R. História e cultura afro-brasileiras: possibilidades e impossibilidades na aplicação da lei 10.639/2003. Revista Ágora, Vitória, n.5, 2007, p 1-12.

Figura 10 - Ilustração simbólica sobre as relações interseccionais entre ancestralidades, africanidades e negritude

Fonte: SANTOS, Mateus Machado, 2019.

O esquema ilustrado na figura 10 representa de forma simbólica a relação estabelecida entre o entendimento das três expressões trazidas para este subcapítulo. Diante disso, busquei, nas raízes da árvore, representar a ancestralidade, obtendo em seu significado a origem, o nascimento, o início. Por conseguinte, ao mencionar nossos antepassados, cujos ensinamentos, muitas vezes, transmitidos de forma oralizada perpetuam até os dias de hoje, consagrando a miscelânea cultural brasileira.

Já a corpo da árvore, represento as africanidades, uma mistura da materialidade e imaterialidade da cultura africana. Trata-se da disposição de todos os signos, símbolos e ritos despertados e praticados diante das heranças de nossos ancestrais. E todo esse contexto que a árvore é envolvida, o somatório de todas as partes constituintes, em meus pensares, crio uma simbologia das essências entre a tríade negritude, africanidades e ancestralidades.

Tratando-se do Reino de Jurema, considero que a relação da tríade exposta acima, manifesta-se frente às materialidades e imaterialidades do próprio espaço. O que gira em torno do terreiro e suas práticas sagradas é o somatório da concretude de africanidades e negritudes, despertando, assim, o valor advindo pelas ancestralidades.

A presença de imagens de santos africanos, bem como a produção de oferendas realizadas com ervas, frutas, bebidas e velas é fruto dessa cultura trazida pelos negros. E quando nos deparamos com os cânticos (pontos cantados, rezas) também estamos invocando nos antepassados esse sentimento, essas subjetividades que envolvem, de forma simultânea, o que expus acima. O terreiro não deixa de ser a própria árvore.