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A compulsoriedade da redução do tempo de trabalho

CAPÍTULO 2 – TRABALHO E VALOR

2.5 O valor econômico

2.5.1 A compulsoriedade da redução do tempo de trabalho

É certo que a citação dos Grundrisse mobilizada por Lukács deve ser interpretada como uma indicação de Marx sobre como as diversas formações sociais estariam voltadas para a redução do tempo de trabalho. Não obstante, ela também deve ser entendida, simultaneamente, como organização do tempo de trabalho.233 Enquanto o primeiro sentido deve ser tomado com cautela, o segundo é evidente – a despeito das diferentes formas com que as diversas formações sociais não apenas distribuíram seu tempo de trabalho, mas mediram o próprio tempo.234

Os Grundrisse representam um momento de transição na abordagem de Marx às formações sociais. A despeito da busca por uma perspectiva radicalmente histórica estar presente desde as produções marxianas juvenis – tendo como alvo, ademais, a crítica ao anacronismo da economia política –, a interpretação efetiva de Marx sobre o

232 Lukács, 2012, p. 411; Lukács, 1984, p. 679. 233 Ver, por exemplo, Stavros, 2014, p.13-14.

234 Utilizando-se do referencial teórico do marxismo político, Jonathan Martineau (2015) elabora sobre as

distinções e articulações entre tempo natural e tempo social. Dentro das formas distintas de tempo social, o autor mostra como o tempo mensurado através do relógio, a despeito de ter suas origens na Idade Média, torna-se hegemônico apenas com a transição ao capitalismo e com a emergência do trabalho assalariado.

desenvolvimento das diversas formações sociais, sobretudo ao longo dos anos 1840, é marcada por uma perspectiva que, segundo Brenner, toma as classes e as relações de produção a partir de uma interpretação tecno-funcionalista, influenciada pelas concepções de progresso da economia política, em especial pelo trabalho de Adam Smith. Particularmente na Ideologia Alemã a abordagem marxiana considera, de acordo com Brenner, que

a estrutura dos papéis no interior do processo de trabalho (cooperação no interior da unidade) é tecnicamente determinada pela natureza do processo produtivo; por sua vez, a estrutura dos papéis no interior do processo de trabalho (cooperação no interior da unidade), por determinar a divisão entre o trabalho mental e manual, constitui ela mesma a estrutura das relações de classe; como resultado, os indivíduos que constituem as classes, o fazem, em virtude de sua ocupação de papéis tecnicamente constituídos, no interior do processo de trabalho. A evolução das classes e das relações de propriedade é, assim, determinada pela evolução das forças produtivas, através da determinação que essa última exerce sobre a evolução do processo de trabalho (cooperação no interior da unidade). Consequentemente, a despeito das aparências, as relações de classe e a luta de classes ocupam uma posição passiva e determinada, mais do que um papel ativo e determinante, no interior da concepção juvenil de Marx da evolução histórica.235

A troca de mercadorias desempenha, dentro dessa perspectiva, o papel de catalisador do desenvolvimento das forças produtivas e da divisão do trabalho, refletindo o que a tradição do marxismo político chamou de “modelo de comercialização”, também influenciado pelas análises de Adam Smith. Nesse tipo de explicação do desdobramento histórico, imputa-se às trocas de mercadorias pré-capitalistas características capitalistas que seriam responsáveis por impulsionar a divisão do trabalho e o incremento das forças produtivas. Com isso, as trocas pré-capitalistas são apartadas das demais relações de produção, assumindo uma dinâmica própria que tem um fim pré-determinado: a própria expansão e generalização das mercadorias – e o concomitante desenvolvimento das forças produtivas – que desembocaria, necessariamente, no capitalismo. Trata-se, aqui, de uma visão teleológica, onde as relações de produção pré-capitalistas são consideradas como meros obstáculos a um desenvolvimento supostamente imanente e autônomo das forças produtivas e da divisão do trabalho, impulsionado pelo intercâmbio mercantil.236

235 Brenner, 1999, p. 284-285. 236 Wood, 2008a, p. 85.

Como um momento de transição na busca de uma perspectiva histórica e imanente das formações sociais, os Grundrisse carregam ainda elementos da perspectiva de progresso advindos da economia política, pautados pelo modelo de comercialização.237 É nesse sentido que dizemos que é preciso tomar com cautela a afirmação marxiana de que toda economia se reduz a uma economia de tempo, quando por economia de tempo se entende redução do tempo de trabalho. Sobretudo, porque, nesse sentido, trata-se de uma afirmação supostamente trans-histórica – mas, de fato, a-histórica – que não é explicada. Isto é, não se sustenta em uma demonstração das relações sociais que pautam as economias das distintas épocas históricas para a dita redução do tempo de trabalho. Ademais, a nosso ver, é possível argumentar que a afirmação marxiana é marcada pelo anacronismo. A despeito de certo desenvolvimento das forças produtivas, obviamente, ser verificável nas diversas formações sociais, a economia que, de fato, se reduz à economia de tempo é a economia capitalista – considerada, claro, em aspectos muito gerais.

Não obstante tais problemas, nos Grundrisse encontramos também uma perspectiva mais fecunda para a reflexão sobre as distintas formações sociais. Nele, ao analisar as Formas que precederam a produção capitalista, Marx define as relações de produção como relações dos produtores diretos uns com os outros e com os meios de produção, que permitem que reproduzam a própria vida e a posição que ocupam em uma determinada formação social. Em termos gerais, o traço crucial de distinção das sociedades pré-capitalistas é que nelas há o acesso dos produtores diretos aos meios para sua subsistência. Para garantir tal acesso, tais produtores diretos, sobretudo na figura dos camponeses, constituem-se em comunidades que buscam garantir a posse dos meios necessários à sua subsistência.238 Nas palavras de Marx,

a finalidade de todas essas comunidades é a conservação; i.e., a reprodução dos indivíduos que a constituem como proprietários, i.e., no mesmo modo de existência objetivo que constitui ao mesmo tempo o comportamento dos membros uns em relação aos outros e, por isso, a própria comunidade.239

237 Wood, 2008a, p. 85. 238 Brenner, 1999, p. 286. 239 Marx, 2011, p. 405.

As classes dominantes das sociedades pré-capitalistas, por sua vez, também se constituem em comunidades que têm de organizar meios coercivos de extração do trabalho excedente, dada a posse dos produtores diretos dos meios necessários para a subsistência. Isso é, como não se fazem presentes, aqui, relações típicas do capitalismo, onde a dependência do mercado capitalista – tanto por parte dos produtores diretos quanto dos apropriadores – garante que o excedente produzido seja apropriado por meios predominantemente econômicos; como essa relação não se verifica nas sociedades pré- capitalistas, a organização da coerção é o elemento central para extração do sobretrabalho.240

Em contraste com a perspectiva tecno-funcionalista do jovem Marx, essa abordagem às formações sociais nos Grundrisse tem a vantagem de não remeter às afirmações a-históricas de um desenvolvimento das forças produtivas que determina a estrutura das sociedades e das relações de produção. Pelo contrário, em sentido inverso, ela apoia-se na consideração de que são as relações de produção que determinam – ou que são o momento predominante, para usar, um termo marxiano/lukácsiano – a dinâmica do trabalho e das forças produtivas.241

Nos Grundrisse, portanto, encontramos tanto as indicações problemáticas de que as economias das diversas formações sociais estão voltadas para a redução do tempo de trabalho, quanto a perspectiva, mais fecunda, a nosso ver, que indica que as relações de produção, sustentadas pelos conflitos de classes entre as comunidades de produtores diretos e as dos apropriadores do excedente, pautam a dinâmica do trabalho e do desenvolvimento das forças produtivas. Lukács não apenas toma o sentido mais problemático das considerações marxianas sobre a redução do tempo de trabalho – deixando de mencionar, como vimos, as ressalvas de Marx sobre as diferenças entre a produção organizada em torno do valor de troca e a produção comunal –, como a transforma em uma relação coerciva: os indivíduos tem de se adequar a essa “lei da produção social” que aponta necessariamente para a redução do tempo de trabalho, sob pena de ruína. Com isso, a Ontologia não apenas reproduz uma perspectiva anacrônica e teleológica – que imputa um fim determinado às mais diversas formações sociais –, como coloca em xeque sua própria perspectiva de emancipação social.

240 Brenner, 1999, p. 286. 241 Ibid., p. 286.

Veremos nos próximos capítulos como a argumentação de Lukács se move nesse sentido, designando a própria essência da reprodução do ser social como determinada por essa redução do tempo de trabalho, o que se choca, no entanto, com as próprias indicações lukácsianas, em sentido inverso, sobre uma suposta estagnação das sociedades orientais, por exemplo.

Importa-nos, agora, adiantar que, por um lado, as indicações de Marx sobre as sociedades pré-capitalistas também acentuaram não um necessário desenvolvimento progressivo das formações sociais, mas um processo de estabilização reprodutiva, como vimos na passagem acima, e de cristalização da divisão do trabalho, como indicaremos no próximo capítulo. Por outro lado, como também trataremos mais abaixo, em contraste com a indicação de Lukács da necessidade dos indivíduos se adequarem, sob pena de ruína, a uma suposta lei de redução do tempo de trabalho, a concepção marxiana de emancipação humana, desde muito cedo, opôs-se à subsunção dos trabalhadores a imposição de um tempo de produção.

Nesse sentido, em consonância com as preocupações radicalmente históricas tanto de Marx, quanto de Lukács, parece-nos mais fecundo, apreender as indicações marxianas sobre as diversas formações sociais fiando-nos não nas afirmações trans-históricas de uma suposta redução do tempo de trabalho – e que terminam por se revelar a-históricas, anacrônicas e teleológicas –, mas sim em considerações mais “abertas” às determinações constitutivas das diferentes formações. Na conhecida carta de 11 de julho de 1868 à Ludwig Kugelmann, por exemplo, Marx se posicionou indicando a necessidade, em todas as sociedades, da organização do trabalho – e, por essa via, do tempo de trabalho –, descrevendo-a como “natural”, sem mencionar, todavia, uma tendência à redução do tempo de trabalho e ressaltando a importância decisiva de se ater às formas com que a produção social se organiza:

qualquer criança sabe que uma nação morreria se parasse de trabalhar não direi por um ano mas por algumas semanas. Sabe igualmente que as massas de produtos correspondentes a diferentes massas de necessidades requerem massas diferentes e quantitativamente determinadas do trabalho social total. É self-evident que esta necessidade de repartição do trabalho social em proporções determinadas não pode de modo nenhum ser suprimida por uma forma determinada da produção social [gesellschaftlichen Produktion] mas apenas pode alterar o seu modo de aparecimento. Leis da natureza [Naturgesetze] não podem de modo nenhum ser suprimidas. Aquilo que em situações historicamente diversas se pode alterar é apenas

a forma pela qual essas leis se impõem. E a forma pela qual essa repartição proporcional do trabalho se impõe numa situação social em que a conexão do trabalho social se faz valer como troca privada de produtos do trabalho individual é precisamente o valor de troca desses produtos. A ciência consiste precisamente em desenvolver como a lei do valor se impõe.242

Aqui, ainda que se mencione tais momentos mais gerais das economias nas diversas formações sociais, não há uma indicação sobre uma tendência trans-histórica de redução do tempo de trabalho. Todavia, mesmo que insistíssemos nessa lei, ela não significaria, a nosso ver, uma configuração tal onde a redução do tempo de trabalho se impõe aos indivíduos de maneira que esses devem se adequar a ela “sob pena de ruína”. Essa compulsoriedade é uma determinação do capitalismo, mas não pode ser estendida, por exemplo, a uma sociedade emancipada, aquela à qual Marx refere-se no próprio trecho dos Grundrisse mobilizado por Lukács. Veremos no capítulo 4 como a argumentação na Ontologia, consequente com essa generalização, estende tal compulsoriedade também para o comunismo.