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A generalização da lei do valor-trabalho

CAPÍTULO 2 – TRABALHO E VALOR

2.5 O valor econômico

2.5.4 A generalização da lei do valor-trabalho

Subjacente à generalização que mencionamos dos aspectos das relações de produção capitalistas na Ontologia está uma extrapolação da lei do valor-trabalho de Marx para todas as formações sociais. Desde nosso ponto de vista, essa lei refere-se à especificidade da produção de mercadorias capitalista. Lukács, todavia, assim se posiciona na parte histórica da Ontologia:

a lei do valor, foi descrita por Marx, por exemplo, em sua gênese, no primeiro capítulo de sua obra principal. Trata-se de uma lei imanente ao próprio trabalho na medida em que, mediante o tempo de trabalho, liga-se ao trabalho enquanto explicitação das faculdades humanas; mas, implicitamente, já está presente quando o homem ainda realiza apenas trabalho útil, quando seus produtos ainda não se tornaram mercadorias; e permanece em vigor, de maneira implícita, após ter cessado a compra- venda de mercadorias.255

Um pouco mais à frente, insiste na permanência dessa lei para além do capitalismo: só numa fase mais elevada, da qual ele [Marx] indica os pressupostos econômicos e humanos que a economia tornou possíveis, é que se torna objetivamente realizável uma situação na qual ‘de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades’. Desse modo, desaparece a estrutura da troca de mercadorias, deixa de operar a lei do valor para os indivíduos enquanto consumidores. Todavia, é evidente que resta em vigor, na própria produção, inclusive no crescimento das forças produtivas, o tempo de trabalho socialmente necessário e, por

conseguinte, segue operando a lei do valor enquanto reguladora da produção.256

E em O Processo de democratização, escrito no final de 1968, na mesma época, portanto, da redação da Ontologia, Lukács também se posiciona de maneira assertiva sobre o caráter trans-histórico da lei do valor-trabalho, afirmando-a como válida para todos “os tipos de produção”:

já no início do livro 1 de O Capital [...] Marx fala das diversas formas fenomênicas da lei do valor, referindo-se a Robinson, à Idade Média, a uma família camponesa auto-suficiente de cultivadores diretos e, finalmente, ao próprio socialismo. O tempo de trabalho – ou seja, o tempo de trabalho socialmente necessário em cada momento concreto, a objetivação diretamente econômica do valor – tem uma dupla função.257

E, imediatamente, se apoia nas seguintes considerações de Marx, na seção d’O Capital sobre o fetichismo da mercadoria para descrever essa dupla função:

sua distribuição socialmente planejada regula a correta proporção das diversas funções de trabalho de acordo com as diferentes necessidades. Por outro lado, o tempo de trabalho serve simultaneamente de medida da cota individual dos produtores no trabalho comum e, desse modo, também na parte a ser individualmente consumida do produto coletivo.258

Essa generalização da teoria do valor trabalho marxiana para todas as formações sociais contrasta, a nosso ver, com os posicionamentos do próprio Marx. Após uma inicial rejeição do valor trabalho, avançado pelos economistas políticos burgueses, Marx o incorpora criticamente opondo-se, todavia, ao seu uso como fundamento de uma sociedade emancipada. Como mencionamos, já na Miséria da Filosofia – considerada pelo próprio Marx como a obra contendo as “sementes da teoria que seria desenvolvida n’O Capital, depois de vinte anos de trabalho” 259 – há a oposição à tentativa de Proudhon

de usar a teoria do valor trabalho como a base de uma sociedade emancipada. Marx afirma enfaticamente que “o valor relativo, medido pelo tempo de trabalho, é, fatalmente, a

256 Lukács, 2012, p.421; Lukács, 1984, p. 689. 257 Lukács, 2008, p. 138.

258 Marx, 2013, p. 153. 259 Marx, 1989a, p. 326.

fórmula da escravidão moderna do operário, e não, como o pretende o Sr. Proudhon, a ‘teoria revolucionaria’ da emancipação do proletariado”.260

Ademais, nos conhecidos Fragmento sobre as Máquinas261, nos Grundrisse, Marx também ressalta a validade histórica da teoria do valor trabalho. A despeito de aqui ele ainda não ter desenvolvido completamente as categorias que apareceriam mais tarde em O Capital, essa indicação da historicidade do valor-trabalho continua em suas considerações posteriores.262 Na carta à Kugelmann, mencionada acima, por exemplo, ele

se refere à lei do valor como aquela que governa a distribuição do trabalho social, que ocorre indiretamente através da “troca privada dos produtos individuais do trabalho”. Implícita nessa afirmação está a consideração de que a lei do valor-trabalho não se faria presente nas sociedades que organizam diretamente o trabalho, e sim apenas onde o trabalho social é mediado pelas trocas. Na Crítica ao Programa de Gotha, por sua vez, Marx refere-se novamente ao modo como a lei do valor-trabalho é característica do trabalho indiretamente social do capitalismo, o que muda em uma sociedade baseada na propriedade comum dos meios de produção.263 Finalmente, nas Glosas marginais ao Tratado de Economia Política de Adolf Wagner, Marx nega a afirmação de Wagner de que a teoria do valor trabalho seria o “pilar de seu sistema socialista”.264

Engels tem posições similares nesse sentido, às quais retornaremos mais abaixo. Em todo caso, as mais importantes interpretações da teoria do valor-trabalho marxiana divergem apenas sobre sua validade para a produção de mercadorias ou exclusivamente para o capitalismo.265 Em contraste a esses dois tipos de interpretação, Lukács a considera válida para todas as formações sociais, como vimos nas passagens acima da Ontologia e d’O processo de democratização.

260 Ibid., p. 56.

261 Acerca dos Fragmentos sobre as Máquinas, no contexto do desenvolvimento das pesquisas de Marx,

ver Heinrich (2013).

262 Marx, 1987, p. 90. 263 Marx, 2012.

264 Marx, 1989b, p. 533.

265 Para ficar em apenas algumas dessas interpretações, Isaak Rubin (1990, p.256) comentou brevemente

sobre a possibilidade do valor-trabalho existir, em forma embrionária, na produção de mercadorias nas sociedades pré-capitalistas; Octavio Colombo (2015) oferece uma excelente análise dessa possibilidade. Roman Rosdolsky (1977, p.428-436), Ronald Meek (1973, p.257-284) e Ernst Mandel (1968, p.49-51), por outro lado, ressaltaram como a teoria do valor trabalho não teria validade em uma sociedade emancipada.

Contra a leitura de Lukács da seção sobre o fetichismo n’O Capital, tanto Mészáros266 quanto Hudis267 afirmaram que ele oblitera a intenção de Marx de apenas “traçar um paralelo com a produção de mercadorias” e, para tal fim, supor “que a cota de cada produtor seja determinada pelo seu tempo de trabalho”. Ademais, Hudis comenta:

Marx menciona esse paralelo apenas para enfatizar o papel que o tempo de trabalho desempenharia no futuro. Mas o que ele quer dizer com tempo de trabalho? O tempo de trabalho que opera depois do capitalismo não é de forma alguma idêntico à média-social do tempo de trabalho necessário que opera no capitalismo. Na leitura de Lukács os dois são confundidos [conflated], a despeito do último implicar a produção de valor, enquanto o primeiro sua transcendência. Marx nunca menciona valor ou valor de troca ao discutir a nova sociedade no Capítulo 1, e por uma boa razão: ele considera que as relações sociais da nova sociedade são “transparentemente simples”. Lukács não menciona a discussão de Marx sobre a natureza “transparente” das relações sociais no futuro, a despeito de Marx repeti-la em diversas ocasiões. Se ele tivesse se atido mais demoradamente a esse problema, teria reconhecido que Marx não está se referindo ao tempo de trabalho socialmente necessário ao discutir os princípios operativos de uma sociedade pós-capitalista.268

Concordamos com a crítica de Hudis, apenas acrescentamos que, como viemos argumentando, a generalização da lei do valor-trabalho em Lukács imputa o tempo de trabalho socialmente necessário para toda a sociabilidade humana. Mais ainda, Lukács não apenas deixa de mencionar a natureza das relações “transparentes” em uma sociedade emancipada, mas afirma na Ontologia o contrário ao generalizar a opacidade dos valores econômicos para diferentes formações sociais.

Na contramão da interpretação de Hudis, Antonino Infranca defendeu a leitura da lei do valor-trabalho realizada por Lukács e o fez referindo-se breve e diretamente à crítica de Mészáros. Assim, afirmou:

no que tange à crítica de Mészáros à teoria lukacsiana da permanência do valor em uma sociedade socialista, lembro que, exatamente [n’O

processo de democratização], Lukács abordou o problema. No ensaio,

ele sustenta que Stalin não levou sequer minimamente em conta as claras orientações de Marx, constantes do princípio do Livro I de O

capital, segundo as quais o tempo de trabalho indica o valor de uma

mercadoria e, sendo o trabalho o fator que cria riqueza, é impossível eliminá-lo; assim, em um sistema socialista de produção da riqueza, o valor é um fator imprescindível à produção. Desse modo, o valor

266 Mészáros, 2006, p. 867. 267 Hudis, 2012, p. 158. 268 Ibid., p. 158.

depende não do mercado, mas do tempo de trabalho. Lukács explica também por que Stalin relacionava o desaparecimento do valor à sua eliminação do mercado: “para Marx, a lei do valor não está vinculada à produção de mercadorias. Stalin afirma isso, e não se trata em absoluto de conversa vazia. Na verdade, ele deseja apresentar propagandisticamente a via de construção do socialismo que, em aspectos decisivos, se distancia do marxismo simulando traduzir na prática a teoria de Marx corretamente interpretada. Esse é o objetivo [...] de seu estratagema de apresentar categorias que, de acordo com Marx, são válidas para qualquer produção, como se tratasse apenas de fenômenos históricos não mais vigentes no socialismo”.269

Infranca não se refere aqui aos problemas da interpretação lukácsiana que mencionamos acima. Não indica a intenção de Marx, na seção sobre o fetichismo n’O Capital, de apenas traçar um paralelo com a produção de mercadorias; aceita as considerações de Lukács sobre a permanência da lei do valor trabalho sem contrastá-las com os posicionamentos contrários do próprio Marx; e não menciona como Lukács identifica tempo de trabalho e tempo de trabalho socialmente necessário – sendo esse último específico da produção capitalista. Ademais, não há indicação sobre a generalização da opacidade dos valores econômicos e da compulsoriedade da redução do tempo de trabalho. Apesar dessas aparecerem de forma mais explícita na Ontologia – que não é o foco das considerações de Infranca acima – elas permanecem implícitas em O processo de democratização e não podem servir de base para uma sociedade emancipada. Não obstante, pensamos que uma categoria trans-histórica de valor econômico relacionada ao tempo de trabalho é, de fato, possível, como Infranca parece indicar. Ela não pode ser confundida, entretanto, com a teoria do valor-trabalho e não pode generalizar os aspectos do capitalismo que mencionamos até aqui.