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CAPÍTULO 2 – TRABALHO E VALOR

2.3 Dever-ser

No interior da reflexão genética sobre as categorias fundamentais da práxis, Lukács volta-se a um momento que poderia parecer oposto aquele da liberdade, mas que se encontra necessariamente articulado a ele na Ontologia: referimo-nos aqui ao dever- ser [Sollen]. Tal articulação assenta-se no fato de que a decisão alternativa implica em um comportamento determinado daquele que realiza a posição teleológica, uma vez que

a satisfação do fim requere que cada passo realizado pelo sujeito se relacione com a verificação de como (e se) ele favorece a obtenção daquilo que foi previamente ideado.

Há aqui, comparado às esferas inferiores do ser, uma mudança com relação à temporalidade das interações ontológicas. No ser biológico, por exemplo, o passado determina o presente: “também a adaptação dos seres vivos a um ambiente transformado”, diz Lukács, “decorre da necessidade causal, na medida em que as propriedades produzidas no organismo por seu passado reagem a tal transformação, conservando-se ou destruindo-se”. Obviamente, essa relação tem continuidade no ser social. Todavia, ela se faz presente junto a uma mudança qualitativa introduzida pela emersão da teleologia que coloca um fim previamente ideado. O comportamento do sujeito é, então, determinado por esse pôr do fim, pelo futuro. O dever-ser, para Lukács, refere-se a esse agir conduzido pelo que foi previamente ideado.187

No caso do trabalho, o dever-ser dirige-se ao metabolismo entre o ser humano e a natureza e articula-se às demandas decisivas colocadas pela causalidade, junto à constituição dos fins, a busca dos meios, o reflexo, etc. próprios da posição teleológica. Nessa relação específica, Lukács sublinha o aspecto determinante da objetividade exterior ao sujeito:

quando o dever-ser, como é inevitável, apela a determinados aspectos da interioridade do sujeito, suas demandas são formuladas de tal maneira que as mudanças no interior do homem proporcionam um veículo para o melhor domínio do metabolismo com a natureza. O autodomínio do homem, que aparece pela primeira vez no trabalho como efeito necessário do dever-ser, o crescente domínio de sua compreensão sobre as suas inclinações e hábitos, etc. espontaneamente biológicos são regulados e orientados pela objetividade desse processo; esta, segundo sua essência, se funda na própria existência natural do objeto, dos meios, etc. do trabalho. Se quisermos conceber corretamente o lado do dever-ser que, no trabalho, age sobre o sujeito, modificando- o, é preciso partir dessa objetividade reguladora.188

A partir desse aspecto decisivo da causalidade diante do sujeito que realiza a posição teleológica, o dever-ser influencia tanto o comportamento humano no trabalho quanto o comportamento do sujeito para consigo mesmo. Também aqui, a relação dessa categoria com aquelas mais desenvolvidas é caracterizada pela relação de identidade de

187 Lukács, 2013, p. 98-99; Lukács, 1986, p. 60-61. 188 Lukács, 2013, p. 104; Lukács, 1986, p. 66.

identidade e não identidade. Por um lado, o dever-ser do trabalho “desperta e promove” predicados nos seres humanos que podem ser importantes também para as práxis mais desenvolvidas. Todavia, Lukács ressalta apenas a possibilidade, ainda que grande, de que isso aconteça e não qualquer certeza de que as mudanças do sujeito impulsionadas pelo dever-ser no trabalho afetarão imediata e necessariamente a totalidade do indivíduo.189

Por outro lado – ainda na relação de identidade de identidade e não identidade –, nas atividades mais desenvolvidas há os pores teleológicos que buscam influenciar outros seres humanos à realização de determinadas atividades – isto é, a realização de pores teleológicos outros. Assim, dentro do complexo do ser social, estão colocadas relações onde a autotransformação do sujeito também figura como um objeto de pores teleológicos, e tem um caráter de dever-ser. Nessas atividades – caracterizadas como pores teleológicos secundários – há uma mudança qualitativa frente à posição teleológica do trabalho que lida com a causalidade natural. Não obstante, o que permanece de fundamentalmente comum é que essas relações de dever-ser são ações onde “não é o passado, na sua espontânea causalidade, que determina o presente, mas, ao contrário, é a tarefa do futuro, teleologicamente posta o princípio determinante da práxis a tais atos”.190

A investigação genética dessa categoria contrasta tanto com as abordagens idealistas como com aquelas do “velho materialismo” anterior à Marx. O modo como Lukács analisa o dever-ser já no momento originário do trabalho procura não perder de vista suas manifestações mais simples que estão articuladas à totalidade do ser social e, ao mesmo tempo, demarcar a novidade qualitativa da categoria no âmbito do ser social.

As aproximações ao problema pelo idealismo analisam de modo lógico ou gnosiológico essas relações a partir de suas manifestações “mais desenvolvidas, mais espiritualizadas”. Dessa maneira o dever-ser já presente nas atividades mais elementares do metabolismo entre sociedade e natureza não está apenas obliterado nas reflexões idealistas – junto com o complexo de mediações até as atividades mais espiritualizadas – , mas é também concebido, por vezes, de maneira antitética às suas manifestações mais desenvolvidas. O resultado é que se constrói “artificialmente, uma esfera desprovida de raízes do dever-ser (do valor), que em seguida é posta em confronto com um – presumido

189 Lukács, 2013, p. 104-105; Lukács, 1986, p. 66-67. 190 Lukács, 2013, p. 104-105; Lukács, 1986, p. 66-67.

– ser meramente natural do homem, embora este último, do ponto de vista ontológico objetivo, seja tão social como a primeira”.191

Na Fundamentação da metafísica dos costumes, por exemplo, Kant defende a construção de uma filosofia moral que se despoje de todo elemento empírico e se apoie apenas em uma razão prática pura capaz de estabelecer, de maneira apriorística, máximas universalmente válidas:

as leis morais com seus princípios, em todo conhecimento prático, distinguem-se portanto de tudo o mais em que exista qualquer coisa de empírico, e não só se distinguem essencialmente, como também toda a Filosofia moral assenta inteiramente na sua parte pura, e, aplicada ao homem, não recebe um mínimo que seja do conhecimento do homem (Antropologia), mas fornece-lhe como ser racional leis a priori.192

Há aqui, segundo Lukács, uma “fetichização hipostasiante da razão” que resulta em uma “fetichização do dever-ser”. Investiga-se a categoria não desde um ponto de vista genético, mas referindo-se “apenas às formas mais elevadas da moral”, construídas a partir de procedimentos que deveriam valer para todos os “seres racionais”. O imperativo que está presente no dever-ser apoia-se em uma necessidade pautada por essa fetichização da razão e não por sua dimensão ontológica – expressa, como vimos, na relação “se..., então”.193 Nesse sentido, diz Kant:

toda a gente tem de confessar que uma lei que tenha de valer moralmente, isto é como fundamento duma obrigação, tem de ter em si uma necessidade absoluta [...] o princípio da obrigação não se há-de buscar aqui na natureza do homem ou nas circunstâncias do mundo em que o homem está posto, mas sim a priori exclusivamente nos conceitos da razão pura, e que qualquer outro preceito baseado em princípios da simples experiência, e mesmo um preceito em certa medida universal, se ele se apoiar em princípios empíricos, num mínimo que seja, talvez apenas por um só móbil, poderá chamar-se na verdade uma regra prática, mas nunca uma lei moral.194

O dever-ser é aqui separado, portanto, objetiva e subjetivamente, das alternativas concretas dos seres humanos. Torna-se um “princípio transcendente-absoluto (criptoteológico [kryptotheologischen])”, cuja objetividade assenta-se no fato de valer

191 Lukács, 2013, p. 100; Lukács, 1986, p. 63. 192 Kant, 2007, p. 16.

193 Lukács, 2013, p. 101; Lukács, 1986, p. 63-64. 194 Kant, 2007, p. 15-16.

para todos os seres racionais e não por estar presente na práxis social dos homens. Daí Kant afirmar que “numa filosofia prática, [...] não temos de determinar os princípios do que acontece mas sim as leis do que deve acontecer, mesmo que nunca aconteça [...]”.195

Não obstante, como se depreende da ideia de “regra prática” na citação acima, há a possibilidade de um certo dever-ser estar presente em outros preceitos que não sejam aqueles delineados pela necessidade absoluta colocada pela razão prática pura. Todavia, eles não são “leis”, “porque lhes falta a necessidade que, se deve ser prática, tem que ser independente de condições patológicas, por conseguinte, casualmente vinculadas com a vontade”.196 Assim, uma vez que não se guia pelos imperativos construídos pela razão

pura, esse “dever-ser” é, em certa medida, “degradado”. Daí Lukács considerar que, para Kant, “todas as qualidades, todos os esforços etc. concretos dos homens se tornam ‘patológicos’, uma vez que pertencem apenas acidentalmente à – igualmente fetichizada – vontade abstrata”.197

Hegel se opôs a essa perspectiva demasiadamente transcendente do dever-ser. Todavia, segundo Lukács, onde polemizou diretamente com Kant, assumiu uma posição unilateral que também deixa de apreender a importância ineliminável do dever-ser na práxis mais elementar:

em sua Filosofia do direito, onde [Hegel] tenta contrapor à problematicidade e ambiguidade internas da moral kantiana da intenção, no plano da eticidade, uma moral dos conteúdos, Hegel trata o dever-ser unicamente como modo fenomênico da moralidade, como ponto de vista “do dever-ser ou da exigência”, como uma atividade “que não pode chegar àquilo que é”. Isso se alcança apenas na eticidade, na socialidade plena da existência humana, onde, no entanto, esse conceito kantiano de dever-ser perde seu sentido e sua validade. [...] Se de um lado é correto evidenciar a problematicidade interna da moral pura de Kant, de outro é errado contrapor-lhe, como forma de completa-la a eticidade, como socialidade plena, onde o caráter de dever-ser da práxis, na moralidade, seria superado pela eticidade.198

Não obstante, de acordo com Lukács, quando Hegel se dirige ao dever-ser de maneira independente da perspectiva kantiana reconhece o caráter elementar, originário, dessa categoria. Assim, na Enciclopédia, ao tratar do espírito subjetivo refere-se ao

195 Kant, 2007, p. 66; Lukács, 2013, p. 101; Lukács, 1986, p. 63-64. 196 Kant, 2003, p. 69-70.

197 Lukács, 2013, p. 102; Lukács, 1986, p. 63-64. 198 Lukács, 2013, p. 102-103; Lukács, 1986, p. 64-65.

sentimento prático e afirma que este “contém o dever-ser: sua autodeterminação enquanto existente em si, referida a uma singularidade existente, que só existiria como válida em conformidade com ela”. Importante também, para Lukács, é a delimitação hegeliana, por um lado, do dever-ser ao âmbito do ser social – não extrapolando, portanto, a categoria à natureza; por outro, o reconhecimento de sua presença em toda a existência humana e a heterogeneidade que advém de sua inserção nas diversas esferas da práxis social. Todavia, Hegel além de não indicar a relação entre trabalho e dever-ser, refere-se a este de maneira depreciativa por sua associação com o agradável ou o desagradável, caracterizando-o como um sentimento “subjetivo e superficial”.199

Já o “velho materialismo”, ou “materialismo vulgar” é responsável por interpretar essa esfera de problemas a partir do modelo da “pura necessidade natural”, ignorando o papel do dever-ser no ser social.200 Por sua vez, o “novo materialismo” de Marx, segundo Lukács, considera a “insuprimível base natural da existência humana, mas, para ele [Marx], isso é apenas mais um motivo para acentuar a socialidade específica das categorias que nascem do processo de separação ontológica entre a natureza e a sociedade, precisamente a sua socialidade”.201

O dever-ser na Ontologia, portanto, emerge já naquela práxis que Lukács considera originária no ser social, o trabalho. Refere-se à orientação para o futuro colocada pelo pôr do fim previamente ideado. Nesse caminho, pauta-se pela objetividade diante da qual deve atuar e que determina tanto o comportamento do sujeito na objetivação do fim, quanto o comportamento desse para consigo mesmo. Por outro lado, como outras categorias da ontologia lukácsiana, apresenta uma heterogeneidade tal que se relaciona e se transforma a partir dos complexos diversos em que se faz presente no interior do ser social, em uma relação de identidade de identidade e não identidade que conserva como sua essência justamente essa orientação para o futuro.