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Trabalho, teleologia e causalidade

CAPÍTULO 2 – TRABALHO E VALOR

2.1 Trabalho, teleologia e causalidade

A análise do ser social em Lukács, em consonância com o exposto no capítulo anterior, não prescinde da perspectiva da totalidade, expressa na ideia de um complexo de complexos como dimensão geral do ser. A emergência do ser social, todavia, é marcada pelo surgimento de dimensões qualitativas novas. Como vimos, em um processo de continuidade e descontinuidades, é apenas do ser inorgânico que pode emergir o ser orgânico e desse o ser social – cada esfera trazendo consigo as dimensões anteriores e, ao mesmo tempo, superando-as. Enquanto complexo de complexos, o ser social é composto, já em sua forma mais elementar, por exemplo, pelo trabalho, pela linguagem e pela cooperação; e apenas nessa dimensão complexiva é que é possível a compreensão de cada uma de suas partes específicas.159

Não obstante, para se aproximar dessa totalidade, Lukács inspira-se no método marxiano, presente na Introdução de 1857, realizando uma cisão analítica, para buscar o elemento fundamental do ser e, a partir daí, avançar para sua dimensão complexiva.160 No caso da reflexão ontológica sobre o ser social, em consonância com o desdobramento imanente do ser, o intuito é apoiar-se nesse momento fundamental e, a partir dele, “expor em termos ontológicos as categorias específicas do ser social, seu desenvolvimento a partir das formas precedentes, sua articulação com estas, sua fundamentação nelas, sua distinção em relação a elas”.161 Simultâneo ao procedimento abstrativo, portanto, está a

já mencionada investigação genética, que busca a manifestação mais simples, primordial, dessa nova esfera do ser, mas que já traz consigo o salto qualitativo para além do ser

159 Lukács, 2013, p. 41; Lukács, 1986, p. 7. 160 Marx, 2011.

orgânico. Obviamente, são muitas as dificuldades que se colocam na busca histórica específica desse momento do surgimento do ser social. Daí a afirmação de Lukács ressaltar que

o máximo que se pode alcançar é um conhecimento post festum, aplicando o método marxiano, segundo o qual a anatomia do homem fornece a chave para a anatomia do macaco e para o qual um estágio mais primitivo pode ser reconstruído – intelectualmente – a partir do estágio superior, de sua direção de desenvolvimento, das tendências de seu desenvolvimento. A maior aproximação possível nos é trazida, por exemplo, pelas escavações, que lançam luz sobre várias etapas intermediárias do ponto de vista anatômico-fisiológico e social (ferramentas etc.). O salto, no entanto, permanece sendo um salto e, em última análise, só pode ser esclarecido conceitualmente através do experimento ideal a que nos referimos.162

Nesse experimento ideal realizado por Lukács, o ser social emerge, como já afirmamos, trazendo consigo a continuidade com as esferas anteriores do ser. Sua reprodução biológica, assim, coloca-se como tarefa premente. Todavia, uma vez realizado o salto, tal reprodução efetiva-se de maneira distinta daquela do ser orgânico e é o trabalho [Arbeit] o complexo responsável pela sua realização. O método, ao mesmo tempo genético e analítico-abstrativo, empregado por Lukács chega então a essa atividade e a privilegia em sua reflexão, uma vez que

todas as outras categorias dessa forma de ser [o ser social] têm já, em essência, um caráter puramente social; suas propriedades e seus modos de operar se desdobram no ser social já constituído; quaisquer manifestações delas, ainda que sejam muito primitivas, pressupõem o salto como já acontecido. Somente o trabalho tem, como sua essência ontológica, um claro caráter de transição: ele é, essencialmente, uma inter-relação entre homem (sociedade) e natureza, tanto inorgânica (ferramenta, matéria-prima, objeto do trabalho etc.) como orgânica, inter-relação que pode figurar em pontos determinados da cadeia a que nos referimos, mas antes de tudo assinala a transição, no homem que trabalha, do ser meramente biológico ao ser social.163

Assim, o trabalho carrega, in nuce, as determinações essenciais da nova esfera do ser que emerge e, por isso, Lukács o toma ao mesmo tempo como fenômeno originário

162 Lukács, 2013, p. 42-43; Lukács, 1986, p. 8. 163 Lukács, 2013, p. 44; Lukács, 1986, p. 9.

[Urphänomen164] e como modelo do ser social [Modell des gesellschaftlichen Seins]. Seu caráter de “transição” a partir do ser orgânico coloca-o como uma categoria “metodologicamente vantajosa” uma vez que o “esclarecimento de suas determinações resultará num quadro bem claro dos traços essenciais do ser social”.165

Bem entendido, a reflexão genética e analítica-abstrativa de Lukács, que encontra no trabalho o fenômeno originário, não significa que todos os demais complexos surjam em uma sucessão cronológica a ele, mas que por ser o momento que realiza a tarefa premente de reprodução biológica do ser social o trabalho assume um caráter prioritário. Diz Lukács: “é claro que a socialidade [Gesellschaftlichkeit], a primeira divisão do trabalho, a linguagem etc. surgem do trabalho, mas não numa sucessão temporal claramente identificável, e sim, quanto à sua essência, simultaneamente”.166

Por outro lado, se a reflexão lukácsiana isola esse fenômeno originário, ela procura manter em seu horizonte a dimensão de totalidade do ser social. As categorias elementares da práxis que são encontradas no trabalho devem passar então por uma “dissolução” [Auflösung] com o avançar da exposição na Ontologia.167 Veremos no

próximo capítulo como essa dissolução apresenta-se, a nosso ver, de maneira problemática, permanecendo em uma dimensão muito abstrata que não integra efetivamente o trabalho ao conjunto das relações sociais de produção. Antes, todavia, é preciso seguir a apresentação de Lukács do complexo do trabalho.

O caráter qualitativo do salto do ser social e o papel do trabalho no processo de humanização do homem já haviam sido identificados por Engels, como reconhece Lukács.168 Ainda que determinadas características, como a mão do macaco, pudessem ser muito similares às do homem, “não houve, até hoje, mão de macaco”, diz Engels, “por mais hábil, que tivesse feito a mais simples faca de pedra”.169 Como afirmamos

164 Infranca (2014, p.26) adverte para as maneiras distintas em que o trabalho é descrito na Ontologia. Além

de Urphänomen e Modell des gesellschaftlichen Seins, nos Prolegômenos há também a caracterização como “fundamento (Fundament)” e “caso-modelo (Modellfall)” (ver Lukács, 2010, p. 212; Lukács, 1984, p.165). Sobre uma aparente contradição entre fenômeno e fundamento, Infranca ressalta que “Lukács retoma a acepção goethiana de ‘fenômeno originário’, termo proveniente das ciências naturais – mais especificamente, das biológicas – que assinala a existência de um ser a partir do qual são gerados outros seres”.

165 Lukács, 2013, p. 44; Lukács, 1986, p. 10; Lukács, 1978, p. 5-6. Sobre a gênese do ser social ver também

Fortes, 2001, p. 20-39; Lessa, 2012, p. 219-220.

166 Lukács, 2013, p. 44; Lukács, 1986, p. 10. 167 Lukács, 2013, p. 44-45; Lukács, 1986, p. 10. 168 Lukács, 2013, p. 46; Lukács, 1986, p. 11. 169 Engels, 1979, p. 216.

anteriormente, a dimensão qualitativa que separa o ser orgânico do ser social implica que a reprodução no mundo humano, uma vez o salto realizado, efetiva-se de forma diferenciada daquela do ser orgânico. Se nesse último a questão fundamental são os modos particulares com que os diversos organismos se adaptam ao ambiente, o ser social cria, mais propriamente, as condições de sua própria existência – sempre em conexão ineliminável com as esferas ontológicas anteriores.

Marx, por sua vez, reconheceu “formas animalescas” de trabalho e, ademais, “em germe em certas espécies” o uso e a criação de meios de trabalho. Ainda assim, a limitação do ser orgânico e sua distinção qualitativa frente ao ser social demarcam, para ele, o trabalho como uma atividade criativa especificamente humana.170 Se o procedimento genético e analítico-abstrativo levou Lukács ao trabalho, é a partir da famosa passagem do capítulo 5 d’O Capital que ele encontrará a descrição de sua essência e a partir dela indicará as categorias elementares da práxis. Nessa passagem Marx diz que pressupõe

o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente. Isso não significa que ele se limite a uma alteração da forma do elemento natural; ele realiza neste último, ao mesmo tempo, seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, o tipo e o modo de sua atividade e ao qual ele tem de subordinar sua vontade.171

O primeiro passo realizado por Lukács no desdobramento filosófico dessa passagem – importante para o delineamento de seu chamado tertium datur – é a indicação da relação aí existente entre teleologia [Teleologie] e causalidade [Kausalität]. São duas categorias que se encontram articuladas no trabalho, mas que mantém sua radical distinção. De um lado, temos a objetividade diante dos seres humanos: a causalidade, entendida como “princípio de automovimento que repousa sobre si próprio172”; de outro,

um ato impulsionado por uma prévia ideação da consciência humana e que intenta colocar

170 Marx, 2013, p. 255-257. 171 Marx, 2013, p. 255-256.

um fim sobre a realidade: a teleologia. A unidade entre ambas funda uma nova objetividade, uma causalidade posta que, não obstante o seu caráter detonado por um ato originado na consciência, permanece como “automovimento que repousa sobre si próprio”. Da ineliminável separação e articulação entre essas duas dimensões, e nunca sua identidade, resulta que o mundo objetivo nunca é ou será teleológico, mas que o ser social não se encontra absolutamente confinado a esse mundo, enquanto mero refém de suas determinações.173

O único local indicado por Lukács para a teleologia é a consciência singular dos indivíduos, que coloca finalidade ao agir. A relação dessa com a causalidade, todavia, marcou os diversos posicionamentos ontológicos. Aqueles que estenderam a teleologia para algum ente aquém do trabalho acabaram imputando-a para a natureza ou para a história e tiveram então de recorrer a alguma espécie de sujeito transcendente. Sobre a necessidade de assim se proceder, diz Lukács:

o que faz nascer tais concepções de mundo, não só nos filisteus criadores de teodiceias do século XVIII, mas também em pensadores profundos e lúcidos como Aristóteles e Hegel, é uma necessidade humana elementar e primordial: a necessidade de que a existência, o curso do mundo e até os acontecimentos da vida individual – e estes em primeiro lugar – tenham um sentido. Mesmo depois de o desenvolvimento das ciências demolir aquela ontologia religiosa que permitia ao princípio teleológico tomar conta, livremente, de todo o universo, essa necessidade primordial e elementar continuou a viver no pensamento e nos sentimentos da vida cotidiana.174

Num movimento contrário, hipertrofiar o momento da causalidade – como faz o materialismo pré-marxista, segundo Lukács – oblitera toda teleologia, e assim apaga o papel ativo do ser social na criação de seu mundo.175

A localização, portanto, do momento fundante do trabalho e da teleologia que o acompanha tem, para Lukács, consequências filosóficas amplas. Por isso, vale notar, enquanto a causalidade precede a teleologia, essa última emerge apenas sobre sua base e é necessariamente articulada a ela. Nas palavras de Lukács:

por um lado, o pôr teleológico “simplesmente” faz uso da atividade que é própria da natureza; por outro, a transformação dessa atividade torna- o o contrário de si mesmo. Isso significa que essa atividade natural se

173 Lukács, 2013, p. 48; Lukács, 1986, p. 13. 174 Lukács, 2013, p. 48; Lukács, 1986, p. 13-14. 175 Lukács, 2013, p. 52; Lukács, 1986, p. 17.

transforma numa atividade posta, sem que mudem, em termos ontológico-naturais, os seus fundamentos. [...] algo inteiramente novo surge dos objetos, das forças da natureza, sem que haja nenhuma transformação interna; o homem que trabalha pode inserir as propriedades da natureza, as leis do seu movimento, em combinações completamente novas e atribuir-lhes funções e modos de operar completamente novos. Considerando, porém, que isso só pode acontecer no interior do caráter ontológico insuprimível das leis da natureza, a única mudança das categorias naturais só pode consistir no fato de que estas – em sentido ontológico – tornam-se postas; esse seu caráter de terem sido postas é a mediação da sua subordinação ao pôr teleológico determinante, mediante o qual, ao mesmo tempo que se realiza um entrelaçamento posto de causalidade e teleologia, tem-se um objeto, um processo etc. unitariamente homogêneo.176

É a causalidade posta que figura nesse transformar da natureza que não altera seus fundamentos. A despeito de constituir a essência do ser social – uma vez que esse só pode se reproduzir dessa forma –, a causalidade posta não se confunde com ele. O que resulta do processo de trabalho é algo distinto do sujeito responsável por sua criação e tem uma história e uma legalidade próprias que atuam sobre seu próprio criador. Por essa via de articulação entre teleologia e causalidade surge uma “nova objetividade” dotada de autonomia frente à consciência que a fez surgir.