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A opacidade dos valores no âmbito econômico

CAPÍTULO 2 – TRABALHO E VALOR

2.5 O valor econômico

2.5.2 A opacidade dos valores no âmbito econômico

A questão da opacidade subjacente à caracterização que Lukács faz do valor econômico também contrasta com os posicionamentos de Marx. Logo acima nos referimos à síntese entre as diversas posições teleológicas dos indivíduos no âmbito econômico. Elas fundamentam a objetividade das valorações que aí ocorrem, mas dentro de uma totalidade processual que, segundo Lukács, “a partir de certo nível já não é mais apreensível pelos sujeitos econômicos singulares”; esses se orientam pelo valor não mais com a “segurança absoluta” e também “na maior parte dos casos” sem conseguir “compreender corretamente as consequências de suas próprias decisões”. Sob essas condições, as relações do valor econômico que orientam o dever-ser dos homens, produzem a “divisão ótima” do trabalho, ainda que isso não seja claro aos próprios sujeitos envolvidos no processo.

Mais uma vez, a representação abstrata do movimento do valor econômico feita por Lukács nos coloca diante de certas dificuldades de interpretação: o que significa

exatamente “a partir de certo nível”, referindo-se ao desenvolvimento da totalidade processual, não nos é inteiramente claro. Em todo caso, a redução do tempo de trabalho continua a se impor, a despeito da avaliação que os indivíduos fazem dela. No capítulo da Ontologia sobre Marx, ao comentar, por outra via, tal tendência, Lukács afirma: “a constatação da objetividade desse desenvolvimento, sua plena independência em relação à atitude avaliativa dos seres humanos, é uma importante marca da essência ontológica do valor econômico e das tendências de sua explicitação”.243

Para nós, também aqui manifestam-se as consequências do processo de abstração que Lukács realiza a partir das relações de troca capitalista das mercadorias e atribui à categoria do valor econômico, que ele pretende como trans-histórica. São sob tais condições que o encontro dos produtores privados no mercado desenvolve a divisão do trabalho. A realização do valor-trabalho, a confirmação da validade social do tempo de trabalho despendido privadamente, ocorre apenas post festum, e a divisão do trabalho que se desenvolve a partir dessa relação, junto à redução do tempo de trabalho, acontece “por trás das costas” dos produtores. No entanto, essa relação não pode ser generalizada para a categoria trans-histórica do valor econômico.

Na seção d’O Capital sobre o fetichismo da mercadoria, Marx se posiciona, do modo como o entendemos, de maneira distinta ao que é colocado na Ontologia. Nos exemplos de Robinson em sua ilha, do feudalismo, da família patriarcal camponesa e da associação de indivíduos livres, o caráter imediatamente social que fundamenta as relações de trabalho é distinto daquele fetichista que ocorre pela mediação do trabalho abstrato presente na troca de mercadorias. Nos primeiros casos, as relações dos seres humanos com a distribuição de seu trabalho e com os produtos deles são mais claras aos sujeitos envolvidos – “transparentemente simples, tanto na produção quanto na distribuição”, no caso da associação de humanos livres –, enquanto no segundo, no capitalismo, o caráter indiretamente social fundamenta o fetichismo atribuído às mercadorias, sobretudo ao dinheiro. A possibilidade de superação dessa última relação, afirmada por Marx, também deixa clara como ela se torna apreensível aos sujeitos envolvidos no processo produtivo:

o reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as relações cotidianas da vida prática se apresentam diariamente para os

próprios homens como relações transparentes e racionais que eles estabelecem entre si e com a natureza. A figura do processo social de vida, isto é, do processo material de produção, só se livra de seu místico véu de névoa quando, como produto de homens livremente socializados, encontra-se sob seu controle consciente e planejado.244

Do modo como entendemos, portanto, o decisivo para a opacidade das valorações econômicas, para a não compreensão adequada das avaliações que refletem a regulação do tempo de trabalho, é o caráter post festum do mercado capitalista, algo que não se verifica nas demais formações sociais. Mais ainda, não nos parece correta a afirmação de que haja aqui uma tendência que se imponha e que é marcada pela “plena independência em relação à atitude avaliativa dos seres humanos”.

Seguindo a própria argumentação de Lukács, mas levando em conta as considerações marxianas, parece-nos possível chegar a uma conclusão distinta. Como vimos, a intenção lukácsiana é demonstrar a continuidade da objetividade também no valor econômico. Enquanto categoria voltada à organização do tempo de trabalho, que realiza o metabolismo entre natureza e sociedade, o valor econômico depende da capacidade humana de produzir o necessário para a satisfação das múltiplas necessidades sociais. Todavia, depende também, pelo que já argumentamos, da forma em que o tempo de trabalho e os produtos do trabalho são distribuídos. Essas formas de fato se estabilizam em uma objetividade que ultrapassa a mera perspectiva individual. Entretanto, à parte sua manifestação nas relações de produção capitalistas, tal objetividade não é necessariamente opaca aos indivíduos, nem impermeável às valorações desses e não carrega uma necessidade de redução do tempo de trabalho. Enquanto objetividade social, ela é uma “segunda natureza” e, como Lukács em outro momento explica, essa depende principalmente das posições teleológicas voltadas não ao ser inorgânico ou orgânico, mas à consciência de outros seres humanos.245

A reprodução e a transformação das formas de organização do trabalho, assim, tanto pautam as atividades valorativas no âmbito econômico, quanto dependem da continuidade dessas no plano individual. Do modo como entendemos, portanto, qualquer asserção sobre uma necessária redução do tempo de trabalho é dependente de tais formas e das valorações que as acompanham. E, mais uma vez, dada a diversidade histórica dessas, não podem ser generalizadas como legalidade trans-histórica. Sobretudo, essa é

244 Marx, 2013, p. 154.

uma questão decisiva para a perspectiva da emancipação humana, uma vez que a organização do tempo e da distribuição dos produtos do trabalho dependem da abertura dessas para o “controle consciente e planejado” dos seres humanos livremente associados do qual fala Marx. Isso nos parece contrastar com a afirmação na Ontologia de uma legalidade opaca voltada à redução do tempo de trabalho a qual estariam subsumidos os indivíduos e que seria plenamente independente das valorações deles.