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Reflexo, possibilidade e alternativa

CAPÍTULO 2 – TRABALHO E VALOR

2.2 Reflexo, possibilidade e alternativa

Lukács cinde em dois momentos a teleologia presente no trabalho: a investigação dos meios [Erforschung der Mittel] e a posição do fim [Zielsetzung].177

Para a satisfação das necessidades humanas é preciso que o pensamento e a vontade dos sujeitos atuem sobre a causalidade do mundo material – sobre o “automovimento que repousa sobre si próprio” – no sentido de colocar as propriedades dadas em uma determinada articulação para que a “nova objetividade” que assim venha a surgir lhes seja útil. Nesse processo, a busca dos meios figura como a tentativa de apreender, em maior ou menor medida, as determinações de um objeto particular e as novas conexões que podem tornar concreta a posição teleológica.178 Obviamente, a

questão aqui não é uma cognição absoluta de tal objeto mas sim apreender, ao menos, as

176 Lukács, 2013, p. 55; Lukács, 1986, p. 19-20. 177 Lukács, 2013, p. 53-54; Lukács, 1986, p. 18. 178 Lukács, 2013, p. 54; Lukács, 1986, p. 18.

articulações decisivas para o sucesso da posição teleológica – para tanto, não é necessário, ademais, uma correta representação geral da natureza, dos objetos, das relações, etc.179

A relação entre posição do fim e busca dos meios é caracterizada por Lukács como possuindo uma heterogeneidade tal que não obstante as necessidades sociais serem responsáveis pelo surgimento da posição do fim, esta será apenas uma utopia caso não se tenha alcançado um conhecimento dos meios necessários para sua efetivação. Por outro lado, a importância da busca dos meios para o desenvolvimento do ser social ressalta uma maior relevância desse, desde um ponto de vista histórico, ainda que no processo imediato do trabalho seja o fim almejado que regula e domina os meios. Diz Lukács:

uma vez que a investigação da natureza, indispensável ao trabalho, está, antes de tudo, concentrada na preparação dos meios, são estes o principal veículo de garantia social da fixação dos resultados dos processos de trabalho, da continuidade na experiência de trabalho e especialmente de seu desenvolvimento ulterior. É por isso que o conhecimento mais adequado que fundamenta os meios (ferramentas etc.) é, muitas vezes, para o ser social, mais importante do que a satisfação daquela necessidade (pôr do fim).180

A demanda cognitiva trazida pela busca dos meios volta-se para um fim bem determinado – a satisfação de uma necessidade concreta ressaltada pelo pôr do fim. Não obstante, os resultados de tal processo têm a possibilidade de serem generalizados para outras situações diferentes daquelas em que foi inicialmente empregado. Caso a aplicação dos resultados obtidos seja bem-sucedida em uma situação distinta daquela de onde se originou há aí, segundo Lukács, uma abstração correta. Mais ainda, são esses os procedimentos que estariam na gênese da ciência e que, mais tarde, com a sua autonomização, dariam lugar ao surgimento das ciências naturais.181

Aqui também encontramos a teoria do espelhamento [Widerspiegelung] desenvolvida por Lukács, que mencionamos brevemente em nossas considerações metodológicas. No processo de trabalho há uma separação entre sujeito e objeto, mas que, na articulação entre teleologia e causalidade, é mediada pela reprodução no pensamento das determinações que se colocam no mundo exterior à consciência. Esta é uma relação imprescindível, segundo Lukács, porque “se o sujeito, enquanto separado na consciência

179 Lukács, 2013, p. 56; Lukács, 1986, p. 21. 180 Lukács, 2013, p. 57; Lukács, 1986, p. 22. 181 Lukács, 2013, p. 59-60; Lukács, 1986, p. 24-25.

do mundo objetivo, não fosse capaz de observar e reproduzir no seu ser-em-si este último, jamais aquele pôr do fim, que é o fundamento do trabalho, mesmo do mais primitivo, poderia realizar-se”.182

O espelhamento que é resultado do processo de trabalho dá lugar a uma “realidade” própria da consciência. Não se trata, assim, de uma cópia fotográfica do mundo exterior ao sujeito, mas sim de um ato cognitivo ligado às finalidades da reprodução da vida social. Com o trabalho, segundo Lukács, emerge uma dualidade entre ser e consciência que não é transposta. Enquanto mediação destes dois pólos, o espelhamento sempre articula essas duas dimensões, mas nunca elimina essa dualidade.183

Ademais, por intermédio desse processo cognitivo emerge a categoria da possibilidade no ser social, mencionada no capítulo anterior. O surgimento de novas objetividades, teleologicamente postas, depende do espelhamento realizado pela consciência humana. Não obstante, ainda se trata apenas de um processo cognitivo que se realiza na consciência, enquanto o projetar de uma possível articulação de conexões causais. É preciso, assim, que aquilo que foi elaborado na consciência do sujeito seja objetivado no mundo material e atualize, portanto, o que se encontra em estado latente na causalidade.184

A alternativa [Alternative] é a categoria que está presente em todo processo de objetivação do trabalho e que realiza a efetivação daquilo que é possível. A partir das possibilidades que emergem através do espelhamento, é preciso que escolhas sejam realizadas para a articulação da causalidade que dá lugar a algo novo no mundo material. Emerge, então, segundo Lukács, um período de consequências, resultante da escolha das decisões alternativas e seu contato com a causalidade dada. As escolhas entre as possibilidades latentes permanecem, mesmo depois de finalizada a objetivação do pôr teleológico, pela necessidade de supervisão, controle, reparo, etc. daquilo que foi objetivado e mesmo que se transformem em hábito por sua repetição ao longo do tempo, não se pode obliterar sua importância desde o ponto de vista ontológico.185

A partir do processo inaugurado com o trabalho e o salto do ser social para além do mundo orgânico, a complexidade do mundo humano manifesta-se pelo crescimento

182 Lukács, 2013, p. 65; Lukács, 1986, p. 29. 183 Lukács, 2013, p. 66-67; Lukács, 1986, p. 30. 184 Lukács, 2013, p. 67-69; Lukács, 1986, p. 30-35. 185 Lukács, 2013, p. 70-75; Lukács, 1986, p. 36-38.

intensivo das decisões alternativas. Nelas, Lukács localiza, ademais, a gênese ontológica da liberdade [Freiheit]:

o processo social real, do qual emergem tanto o pôr do fim quanto a descoberta e a aplicação dos meios, é o que determina – delimitando-o concretamente – o campo das perguntas e respostas possíveis, das alternativas que podem ser realmente realizadas. Dentro da totalidade respectiva, os componentes determinantes aparecem delineados com força e concretude ainda maior do que nos atos de pôr considerados isoladamente. No entanto, com isso expusemos apenas um lado da alternativa. Por mais precisa que seja a definição de um campo respectivo, não se elimina a circunstância de que no ato da alternativa está presente o momento da decisão, da escolha, e que o “lugar” e o órgão de tal decisão sejam a consciência humana; e é exatamente essa função ontologicamente real que retira, do caráter de epifenômeno em que se encontravam, as formas da consciência animal totalmente condicionadas pela biologia.186

Por um lado, portanto, a liberdade é entendida por Lukács como um momento sempre determinado pela causalidade, inescapável àquele que realiza as posições de um fim. Não obstante, tal causalidade traz latente em si as possibilidades que são desveladas pelo espelhamento. E por mais estreitas que essas sejam, elas dependem da escolha, da alternativa, realizada pela consciência humana. Esse é um momento, ademais, que Lukács caracteriza como exclusivamente humano. Ainda que os germes de consciência dos animais superiores deem a eles possibilidades maiores de adaptação, permanecem ainda dentro das determinações e do imediatismo da esfera biológica. Importante ressaltar, todavia, que a manifestação da liberdade é múltipla e, como já aparece no momento do trabalho, está sempre determinada pela totalidade e pelo complexo especifico onde se faz presente.