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CAPÍTULO 2 – TRABALHO E VALOR

2.4 Valor e valor de uso

Ligada de maneira indissolúvel ao dever-ser está a categoria que representa aqui o cerne de nossas preocupações: o valor [Wert]. Na práxis do ser social, aquilo que

199 Lukács, 2013, p. 103; Lukács, 1986, p. 64-65. 200 Lukács, 2013, p. 100; Lukács, 1986, p. 63. 201 Lukács, 2013, p. 105; Lukács, 1986, p. 67.

determina o comportamento futuro do sujeito só o faz porque o que se pretende objetivar é de alguma forma valioso. Por outro lado, o valor só pode se realizar se puder ativar naquele que irá trabalhar o dever-ser como “princípio orientador da práxis”.202

Não obstante a íntima imbricação dessas duas categorias, os momentos em que atuam em um mesmo complexo são, em certa medida, distintos: por um lado, o valor age predominantemente sobre o pôr do fim e também na avaliação daquilo que foi objetivado, já o dever-ser, por outro, desempenha o papel de regulador do próprio processo.203

Considerado o valor enquanto categoria que atua no pôr do fim e na avaliação do produto final do trabalho, a questão que se abre para Lukács é se a definição daquilo que é valioso, realizada pelo sujeito da práxis, é objetiva ou apenas subjetiva: “o valor” – pergunta ele – “é uma propriedade objetiva de algo que, no ato valorativo do sujeito, é simplesmente reconhecido – de maneira certa ou errada – ou ele surge como resultado de tais atos valorativos?”.204

Para responder e problematizar essa questão, Lukács volta sua atenção para o que entende ser a forma elementar do valor: o valor de uso. Mesmo nesse caso, onde a relação é mais próxima, e “ineliminável”, da existência natural, Lukács considera, por um lado, que o “valor não pode ser obtido diretamente a partir das propriedades naturalmente dadas de um objeto”.205 Por outro, não se trata simplesmente de “atos subjetivos”.206

É do encontro entre a teleologia e a causalidade natural que emergem as valorações relacionadas ao pôr do fim e à avaliação daquilo que foi objetivado, expressa no valor de uso. A despeito de existirem casos limite onde este não se refere imediatamente ao trabalho – como “o ar, a terra virgem, os campos naturais, a madeira bruta, etc.”, citados por Marx n’O Capital207 –, as valorações emergem no interior das

relações concretas do trabalho, pautadas pela conexão “se..., então” [wenn... dann]. Se, portanto, essa categoria não está presente na natureza – uma vez que aí não há teleologia

202 Lukács, 2013, p. 106; Lukács, 1986, p. 68.

203 Lukács, 2013, p. 106; Lukács, 1986, p. 68. Fortes (2001, p. 101) sintetiza a articulação entre valor e

dever-ser: “de uma forma resumida essa relação pode ser estabelecida do seguinte modo: o valor põe para o trabalhador o dever-ser de sua realização, e, desse modo, apresenta-se como “critério prático” que orienta todo o processo laborativo. Ao final do processo de trabalho o produto é a efetivação de um dado objeto útil que constitui um valor para o homem”. No mesmo sentido, diz Lessa (2012, p. 114): “Se a ideação age no sentido de regular as ações necessárias à realização de um fim, é antes dever-ser que valor. Se, por sua vez, atua na determinação da finalidade última e na valoração do produto, é antes valor que dever-ser”.

204 Lukács, 2013, p. 106; Lukács, 1986, p. 68. 205 Lukács, 2013, p. 106-107; Lukács, 1986, p. 68. 206 Lukács, 2013, p. 108; Lukács, 1986, p. 70. 207 Marx, 2013, p. 158.

alguma –, ainda assim, o mundo natural determina necessariamente os processos valorativos que se expressam no valor de uso. Esse possui, nas palavras de Lukács, uma “objetividade social” que

se distingue das outras categorias da economia somente porque, sendo a objetivação do metabolismo da sociedade com a natureza e constituindo um dado característico de todas as formações sociais, de todos os sistemas econômicos, não está sujeita – considerada na sua universalidade – a nenhuma mudança histórica; naturalmente que se modificam continuamente os modos fenomênicos, inclusive no interior da mesma formação. Em segundo lugar, o valor de uso, nesse quadro, é algo de objetivo [...] pode-se identificar com grande exatidão a utilidade que faz de um objeto um valor de uso também no período inicial do trabalho.208

É essa relação objetiva que é determinante pra Lukács na caracterização do valor de uso. Ele figura, sobretudo, como expressão da relação concreta de utilidade ou inutilidade na busca da satisfação de uma determinada necessidade através da posição teleológica. E essa, por sua vez, inevitavelmente tem de se referir à causalidade natural existente. Daí a resposta de Lukács à sua pergunta inicial ressaltando o valor de uso como expressão de uma relação objetiva:

o valor de uso não é um simples resultado de atos subjetivos, valorativos, mas, ao contrário, estes se limitam a tornar consciente a utilidade objetiva do valor de uso; é a constituição objetiva do valor de uso que demonstra a correção ou incorreção deles e não o inverso.209

Mais uma vez, essa objetividade do valor só é possível a partir da relação existente com o pôr teleológico. Por isso, para Lukács, do ponto de vista filosófico a correta interpretação das valorações depende de uma correta análise do trabalho e de seu papel no salto qualitativo que caracteriza o ser social. Não há na natureza qualquer referência à utilidade ou não das coisas, apenas o devir outro. A articulação do mundo natural com o pôr teleológico nas diversas imagens de mundo concebe a categoria do valor de distintas formas. Perspectivas ontológicas fundadas, por exemplo, em uma definição teleológica da realidade encontram o valor e a existência mesma dos objetos nessa relação com o criador transcendente.210

208 Lukács, 2013, p. 107-108; Lukács, 1986, p. 69-70. 209 Lukács, 2013, p. 108; Lukács, 1986, p. 70. 210 Lukács, 2013, p. 108; Lukács, 1986, p. 70.

É o caso, para Lukács, de Santo Agostinho, que ao assumir a criação divina como responsável por toda a realidade, apoia a objetividade mesma das coisas na figura de Deus. Por essa via, o que existe de valioso no mundo relaciona-se com tal criação divina e a corrupção das coisas com o próprio não-ser.211 Nas Confissões, está presente essa fundamentação da realidade em Deus:

examinei todas as outras coisas que estão abaixo de Vós e vi que nem existem absolutamente, nem totalmente deixam de existir. Por um lado existem, pois provêm de Vós; por outro não existem, pois não são aquilo que Vós sois. Ora só existe verdadeiramente o que permanece imutável.212

Assumida a existência das coisas a partir da criação de Deus e, ademais, a perfeição e infalibilidade desse, a valoração que a partir daí emerge toma o “bem” como relacionado ao pôr teleológico divino e o “mal” ou a “corrupção” como o processo em que algo deixa mesmo de existir. Nesse sentido, lemos em Santo Agostinho que

se [as coisas] são privadas de todo o bem, deixarão totalmente de existir. Logo, enquanto existem são boas. Portanto, todas as coisas que existem são boas e aquele mal que eu procurava não é uma substância, pois se fosse substância seria um bem. Na verdade, ou seria substância incorruptível e então era certamente um grande bem, ou seria substância corruptível e nesse caso, se não fosse boa, não se poderia corromper.213

São diversas as perspectivas teológicas, mas essa extrapolação transcendente do trabalho, segundo Lukács, ao fundar a objetividade na criação divina e, por essa via, também as valorações, acaba por hierarquizar os valores, contrapondo aqueles mais “complexos, mais espiritualizados”, aos “materiais, terrenos”, de maneira que esses últimos ou são subordinados aos primeiros ou são “asceticamente” eliminados. Em todo caso, há nessas imagens de mundo uma resposta objetivista à questão do valor e das valorações.214 Uma objetividade, todavia, colocada por esse ato transcendental do criador.

Por outro lado, a oposição que emergiu desde o Renascimento a essa concepção teológica das valorações colocou peso, segundo Lukács, na dimensão subjetiva do processo valorativo. Hobbes, por exemplo, afirma que

211 Lukács, 2013, p. 108-9; Lukács, 1986, p. 70-71. 212 Agostinho, 1987, p. 154.

213 Agostinho, 1987, p. 154.

seja qual for o objeto do apetite ou desejo de qualquer homem, esse objeto é aquele a que cada um chama bom; ao objeto do seu ódio e aversão chama mau, e ao do seu desprezo chama vil e insignificante. Pois as palavras “bom”, “mau” e “desprezível” são sempre usadas em relação à pessoa que as usa. Não há nada que o seja simples e absolutamente, nem há nenhuma regra comum do bem e do mal que possa ser extraída da natureza dos próprios objetos.215

Spinoza, por sua vez, posicionou-se de maneira semelhante:

quanto ao bem e ao mal, também não designam nada de positivo a respeito das coisas, consideradas em si mesmas, e nada mais são do que modos de pensar ou de noções, que formamos por compararmos as coisas entre si. Com efeito, uma única e mesma coisa pode ser boa e má ao mesmo tempo e ainda indiferente.216

Para Lukács, esses são movimentos de oposição à caracterização do valor a partir da transcendência teológica que irão alcançar seu “ápice filosófico” nas tentativas de fundamentação econômica da questão do valor, realizada pelos fisiocratas e economistas ingleses do século XVIII e, sobretudo, por Bentham.217

Nesse sentido, para Lukács tanto as posições que atribuem uma relevância autônoma apenas aos valores “sutilmente espirituais”, como a de Santo Agostinho e de vertentes do idealismo, como aquelas que dão preponderância em demasia às questões “imediatamente materiais”, como em certa medida o faz o utilitarismo, perdem de vista uma concepção unitária do valor e, com isso, acabam desconsiderando sistemas de valor que são socialmente reais.218 O tertium datur alternativo à estas duas posições, segundo Lukács,

só pode ser oferecido pelo método dialético. Somente por meio desse método se pode evidenciar que a gênese ontológica de uma nova espécie de ser já traz em si as suas categorias decisivas – e por isso o seu nascimento significa um salto no desenvolvimento –, mas que essas categorias, de início, apenas estão presentes em si, e o desdobramento do em-si ao para-si deve ser sempre um longo, desigual e contraditório processo histórico. Essa superação do em-si através da sua transformação em para-si contém as consistentes determinações do anular, conservar e elevar a um nível superior, que parecem excluir-se mutuamente no plano da lógica formal. Por isso é necessário também,

215 Hobbes, 2008, p. 48. 216 Spinoza, 2008, p. 267.

217 Lukács, 2013, p. 109-110; Lukács, 1986, p. 71. 218 Lukács, 2013, p. 110; Lukács, 1986, p. 71.

ao comparar as formas primitivas com as superiores do valor, ater-se a esse caráter complexo da superação.219

A gênese do valor, portanto, para Lukács, está conectada à relação “se..., então” concreta que se apoia na satisfação de uma determinada necessidade. É dentro dessa relação que o valor de uso pode ser demonstrado como “objetivamente existente”.220

Todavia, essa constatação é apenas o ponto de partida para análise dialética do valor na Ontologia: nem aqueles mais complexos podem ser reduzidos às relações do valor de uso, nem essas últimas podem ser completamente apagadas da análise das valorações mais elaboradas.