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Ser inorgânico, ser orgânico e ser social

CAPÍTULO 1 – A ONTOLOGIA LUKÁCSIANA

1.2 Ser inorgânico, ser orgânico e ser social

A concepção de uma única ciência, a ciência da história, enquanto unidade de história da natureza e história humana, avançada por Marx e Engels n’A ideologia alemã, junto as demais características que mencionamos anteriormente, leva Lukács a uma concepção de desenvolvimento ontológico, marcado por continuidades e descontinuidades, ao qual é importante remeter-se para compreender corretamente o lugar

ocupado pelo ser social.128 Já nos referimos brevemente às dimensões ontológicas concebidas por Lukács, aqui é importante explicitar que elas são três: ser inorgânico, ser orgânico e ser social. Seu desdobramento ontológico é marcado por grandes saltos que dão lugar à emersão de cada uma dessas grandes esferas ontológicas. Nesse processo de diferenciação, os traços qualitativamente novos das grandes esferas trazem a simultânea conservação e superação das esferas anteriores, o que implica também em uma ineliminável interação e determinação entre elas.129 Nas palavras de Lukács

antes de tudo, [Marx] vê com clareza que há toda uma série de determinações categoriais, sem as quais nenhum ser pode ter seu caráter ontológico concretamente apreendido. Por essa razão, a ontologia do ser social pressupõe uma ontologia geral. [...] aquilo que é conhecido numa ontologia geral nada mais é que os fundamentos ontológicos gerais de todo ser. Se na realidade surgem formas de ser mais complexas, mais compostas (vida, sociedade), então as categorias da ontologia geral devem ser conservadas nelas como momentos superados; o superar teve em Hegel, corretamente, também o significado de conservação. Por conseguinte, a ontologia geral ou, em termos mais concretos, a ontologia da natureza inorgânica como fundamento de todo existente é geral pela seguinte razão: porque não pode haver qualquer existente que não esteja de algum modo ontologicamente fundado na natureza inorgânica. Na vida aparecem novas categorias, mas estas podem operar com eficácia ontológica somente sobre a base das categorias gerais, em interação com elas. E as novas categorias do ser social relacionam-se do mesmo modo com as categorias da natureza orgânica e inorgânica. A questão marxiana sobre a essência e a constituição do ser social só pode ser formulada racionalmente com base numa fundamentação assim estratificada. A indagação acerca da especificidade do ser social contém a confirmação da unidade geral de todo ser e simultaneamente o afloramento de suas próprias determinidades específicas.130

Assim, partindo-se do primado da objetividade do mundo inorgânico é de sua existência independente das outras duas esferas do ser e do interior de suas interações que emerge o ser orgânico. Esse último, portanto, ainda que seja qualitativamente novo assenta-se em interações com o ser inorgânico. O ser social, por sua vez, ao mesmo tempo surge do e depende das interações do mundo natural – do ser inorgânico e orgânico.131

Há, portanto, uma relação de estratificação e dependência nessas três grandes esferas do ser que, por mais que apresente certa continuidade entre as categorias, tem configurações

128 Lukács, 2010, p. 35-36; Lukács, 1984, p .8. Ver também Lessa (1995, p. 22). 129 Lukács, 2010, p. 36; Lukács, 2010, p. 41; Lukács, 1984, p. 8-9, p. 13. 130 Lukács, 2012, p. 27; Lukács, 1984, p. 326-327.

qualitativamente novas que não podem ser obliteradas ou confundidas para não se perder de vista a legalidade específica de cada esfera do ser.

Mesmo sendo, em certa medida, um truísmo essa percepção da especificidade de cada esfera ontológica, as confusões aqui acontecem e podem levar, por exemplo, a uma consideração do ser social como independente da natureza, como ocorre, segundo Lukács, em grande parte das filosofias burguesas voltadas aos “domínios do espírito”; ou, numa direção oposta, à transposição simplista de legalidades naturais para o ser social, como o fazia o velho materialismo a partir do mundo inorgânico ou o darwinismo social a partir do orgânico.132

Por outro lado, consoante com o que viemos tratando até aqui, é importante destacar que para Lukács é necessário indicar a estratificação ontológica sem recorrer a critérios heterogêneos a este plano. As concepções de mundo religiosas da Antiguidade tardia e da Idade Média operavam de forma distinta, hierarquizando as esferas do ser a partir de elementos não ontológicos.133 Hegel, por sua vez, também incorreu em procedimentos semelhantes, como vimos, ao erigir todo seu sistema a partir da imbricação entre ontologia e lógica:

o nascimento de uma formação natural, de um organismo, de uma formação social é ontologicamente um problema de gênese real. As legalidades do surgir (e do passar) são as que levam à caracterização real do respectivo ser específico. No plano lógico, ao contrário, um conceito é deduzido do outro, não importando se essa dedução vai de baixo para cima ou de cima para baixo. Enquanto a lógica for usada metodologicamente como algo que não determina a realidade, ou seja, como abstração dessa realidade, nada deriva necessariamente dessa diferença que leva a uma deformação do conhecimento da realidade [...] Mas se, como ocorre em Hegel, a lógica for entendida como fundamento teórico da ontologia, é inevitável que as deduções lógicas sejam vistas como as próprias formas da gênese ontológica. Com isso, a hierarquia lógico sistemática passa a constituir a base do método, mediante o qual se percorre obrigatoriamente o caminho – ontológico – para a autorrealização da identidade de sujeito e objeto, para a transformação da substância em sujeito.134

Pelo que vimos até aqui “o problema de gênese real”, portanto, deve ser entendido desde a perspectiva que entende as “categorias como determinações do ser” e que se esforça no sentido de caracterizá-lo sem recorrer a princípios exteriores ao plano

132 Lukács, 2010, p. 58-59; Lukács, 2012, p. 286-287; Lukács, 1984, p. 563-564, p. 26-27. 133 Lessa, 1995, p. 22.

ontológico. Esta investigação da gênese, ademais, possibilita indicar o caráter qualitativamente novo de um determinado complexo que emerge.135 Ela não implica, todavia, que a processualidade e a historicidade do ser encerram-se aí. Enquanto resultado, a própria gênese é ponto de partida para desenvolvimentos subsequentes.136

Entretanto, não são poucas as dificuldades trazidas por se remontar ao “problema da gênese real”. Desde o ponto de vista filosófico, a ontologia pode apenas auxiliar criticamente a ciência combatendo, ao mesmo tempo, os obstáculos que podem ser colocados por uma ontologia espontânea do cotidiano.137 Mas a tarefa de investigação

concreta desses problemas cabe à ciência. Nesse ponto, Lukács reconhece tanto suas próprias limitações quanto aquelas advindas do próprio conhecimento científico sobre a emersão das três esferas ontológicas.138

No caso da esfera inorgânica do ser, por exemplo, a questão da gênese pode ser colocada apenas às suas formas e dinâmicas específicas, mas não à totalidade dessa esfera.139 Aqui há uma proximidade com as afirmações de Lukács que mencionamos anteriormente sobre a ausência, em certo sentido, de gênese da objetividade. Tanto essa quanto o ser inorgânico, considerados em sua totalidade, não possuem uma gênese, segundo a Ontologia. Ainda que seus diversos momentos passem por transformações qualitativas, não há um desdobramento anterior do qual elas emergiram. No que tange a tais transformações qualitativas, todavia, é preciso ainda que os avanços da ciência revelem as diferentes etapas da constituição da matéria.140

Com relação ao ser orgânico, por conta da estrutura específica da reprodução biológica, a questão da gênese pode ser colocada com mais propriedade, mas também aqui é preciso seguir os avanços particulares da biologia sobre a questão.141

Sobre o ser social, os problemas de sua gênese também são indicados a partir da reprodução – em continuidade com o ser orgânico – mas essa efetiva-se de maneira qualitativamente distinta, a partir da emergência da práxis. Essas questões nos levam, como veremos no próximo capítulo, ao trabalho como forma originária do ser social. Não

135 Lukács, 2012, p. 155; Lukács, 1984, p. 445. 136 Lukács, 2012, p. 239-240; Lukács, 1984, p. 521. 137 Lukács, 2012, p. 156; Lukács, 1984, p. 445. 138 Lukács, 2012, p. 240–241; Lukács, 1984, p. 522-523. 139 Lukács, 2012, p. 158; Lukács, 1984, p.447. 140 Lukács, 2012, p. 156; Lukács, 1984, p. 445. 141 Lukács, 2012, p. 158; Lukács, 1984, p. 447.

obstante, antes de passarmos a esse elemento fundante do ser social gostaríamos de indicar mais algumas categorias gerais do ser que nos auxiliam a identificar a relação de unidade e distinção das esferas ontológicas.

As ideias de totalidade, processualidade e historicidade que indicamos acima referem-se a uma ontologia que assume um ininterrupto devir. Todavia, esse constante transformar não prescinde da categoria da continuidade, que constitui, desde a perspectiva lukácsiana, uma determinação universal do ser: todo ente tem uma dimensão de continuidade.142 Em consonância com a concepção dinâmica do ser, entretanto, essa

categoria é sempre entendida em unidade com a sua oposta: a descontinuidade. Assim, segundo Lukács “não há nenhum continuum sem momentos de descontinuidade e nenhum momento de descontinuidade que interrompe a continuidade de maneira absoluta”.143

Enquanto traço ontológico geral, a relação continuidade/descontinuidade manifesta-se de formas distintas nas distintas esferas do ser. A elas estão também associadas as categorias de identidade e não identidade.

No ser inorgânico é a permanência do mesmo que indica a continuidade.144 O elemento inorgânico mantém sua identidade enquanto as alterações pelas quais passa constantemente não transforme qualitativamente o seu em-si.

O ser orgânico, por sua vez, dentro da perspectiva de um ininterrupto devir, tem na reprodução e, mais especificamente, na reprodução do mesmo, seu traço de continuidade. Assim, o permanecer depende das interações desse ser com o ambiente natural para a continuidade de seus processos vitais e para a reprodução de seres orgânicos da mesma espécie, o que dá continuidade a seu gênero específico. Esse processo reprodutivo, todavia, “não consegue constituir complexos parciais que façam a mediação permanente entre ele próprio e a totalidade”.145 Não há aqui, o que Lukács chama de uma

interação autêntica entre ser vivo e meio ambiente, que é caracterizada pela atuação da consciência e da práxis no ser social e que dá lugar a diversos complexos como o trabalho, a linguagem, a socialidade, etc. Não obstante se faça presente germes de consciência nos animais superiores, ela é ainda epifenomênica, confinada às determinações biológicas.146 142 Lessa, 1995, p. 37.

143 Lukács, 2010, p. 177; Lukács, 1984, p. 132 144 Lessa, 1995, p. 37.

145 Lukács, 2013, p. 202; Lukács, 1986, p. 156. Ver também Lessa (1995, p. 38). 146 Lukács, 2012, p. 343; Lukács, 2010, p. 50–51; Lukács, 1984, p. 616, p. 20.

Isso resulta que a interação entre ser vivo e meio ambiente que marca a esfera orgânica é tal que esse último assume um papel de maior importância, por ser ele o elemento fundamental que inibe ou estimula os processos de reprodução orgânica. Por outro lado, resulta também em certa identidade entre exemplar singular e espécie dentro do ser orgânico, dado o que Lukács chama de “mudez” da reprodução biológica, ou esta incapacidade para a criação específica da práxis humana.147

No ser social, como já afirmamos brevemente, a reprodução é mediada pela práxis. Como veremos com mais detalhes nos próximos capítulos, a continuidade e a descontinuidade nessa esfera ontológica assentam-se nesse traço ontológico específico.

Em todo caso, enquanto traço ontológico universal a continuidade/descontinuidade está ligada à identidade/não-identidade e a unidade desses polos representa o constante devir do ser em geral. É no interior dessa totalidade dinâmica que os momentos de permanência se afirmam e se mantém, em uma incessante relação que estabelece com suas determinações internas e externas. Diz Lukács:

sendo a identidade uma propriedade objetiva (identidade de algo consigo mesmo) e encontrando-se esse objeto em ininterrupta interação processual com seu mundo ambiente, e sendo, ademais, sua própria existência, ao mesmo tempo e em cada oportunidade, o resultado de um processo interno provocado pela ação recíproca de seus componentes, então sucedem necessariamente contínuas transformações, em vista das quais reiteradamente aflora a seguinte pergunta: o objeto em constante transformação ainda é o “mesmo”? Essa pergunta é da maior importância no plano ontológico, em particular porque a resposta deverá ser receber respostas muito diversas nos diversos níveis do ser, a depender da estrutura e da dinâmica muito diversificada das inter- relações internas ou externas.148

Mais ainda, o caráter em última instância unitário desse devir imanente é tal que à Lukács é cara a ideia hegeliana da identidade de identidade e não identidade. A dimensão de totalidade e de totalidades relativas do ser, como indicamos anteriormente, não é, para Lukács, uma justaposição de complexos, daquilo que não é idêntico e sim uma totalidade que se transforma e conserva. Assim, o não idêntico surge a partir dos movimentos de um complexo específico – de uma identidade determinada – mas não está absolutamente apartado deste momento específico: está em relação com ele e contrapõe- se a ele. Como o salto ontológico no desdobramento do ser demonstra, a despeito de ser

147 Lukács, 2013, p. 202; Lukács, 1986, p. 157. 148 Lukács, 2012, p. 256; Lukács, 1984, p. 536.

um salto, ele não ocorre de maneira repentina, mas a partir de mudanças “capilares gradativas” que dão lugar a esse processo de diferenciação que, não obstante, é unitário.149

Avancemos um pouco mais nessas breves considerações mais gerais sobre o ser tratando ainda das categorias modais [modalen Kategorien]. Essas, na perspectiva lukácsiana, referem-se aos problemas da necessidade [Notwendigkeit], da casualidade [Zufälligkeit] e da possibilidade [Möglichkeit]. Na mesma direção das considerações anteriores, essas categorias são pensadas a partir da especificidade de cada uma das três grandes esferas ontológicas delineadas na Ontologia.150

A categoria da necessidade não pode ser considerada de maneira absoluta, segundo Lukács, mas sempre dentro de situações ontológicas determinadas. A realidade é configurada por processos causais que respondem a um imperativo “se..., então” determinado.151 A eles ligam-se a categoria da necessidade. Mas o caráter de complexo de complexos do ser mostra que, a rigor, a necessidade só pode manifestar-se de maneira tendencial:

a causa que desencadeia concretamente um processo, o respectivo “se” concreto, é ele mesmo um processo que sintetiza diversos componentes de efeitos diferentes, no qual, por isso, naturalmente, aquele caráter tendencial que conhecemos como base ontológica da legalidade estatística se torna determinação dominante.152

Nessa relação, nesse caráter tendencial da necessidade, já se revela como ela se articula com a casualidade. Ainda que seja possível discernir no complexo de complexos uma direção determinada, passível de ser apreendida através da probabilidade estatística, a heterogeneidade que compõe o movimento da totalidade está sempre presente na resultante de um determinado processo.153

Se já no interior de um complexo é possível visualizar a relação entre necessidade e casualidade, Lukács também a indica no encontro entre totalidades que possuem uma direção tendencial bem consolidada. E para o fazer ele recorre ao exemplo de uma pedra que cai na cabeça de um pedestre. A queda da pedra é, obviamente, necessária do ponto de vista físico e também pode o ser a passagem do pedestre naquele local e naquele

149 Lukács, 2012, p. 257-258; Lukács, 1984, p. 537-538.

150 Lukács, 2010, p. 191; Lukács, 1984, p. 145-146. Para uma contraposição da análise lukácsiana das

categorias modais às posições de Nicolai Hartmann e Ernst Bloch, ver Vellay, 2013.

151 Lukács, 2010, p. 198; Lukács, 1984, p. 152. 152 Lukács, 2010, p. 146; Lukács, 1984, p. 103. 153 Lukács, 2010, p. 200; Lukács, 1984, p. 152-153.

horário, assumindo-se por exemplo que ele estaria em direção ao seu trabalho na hora usual. O encontro dessas duas necessidades, todavia, é algo meramente casual.154

Para Lukács, as interações entre causalidade e casualidade intensificam-se com a diferenciação ontológica. Ademais, como ocorre com as categorias que mencionamos anteriormente, também essas se manifestam de maneiras diferentes nas distintas esferas do ser. As casualidades podem, por exemplo, nas relações entre ser inorgânico e orgânico, ser responsáveis pelo desenvolvimento ou pela aniquilação de um exemplar singular ou de uma espécie inteira. Os acasos favoráveis ou desfavoráveis são entendidos aí de um ponto de vista puramente objetivo. No caso do ser social, a práxis que o caracteriza traz consigo o momento subjetivo e a possibilidade de reconhecimento desses acasos favoráveis ou desfavoráveis que podem ser então refletidos pelos seres humanos e aproveitados na reprodução social.155

A possibilidade também é considerada simultaneamente com a necessidade e a casualidade. Sobre essa articulação, diz Lukács: “uma concepção não distorcida por nenhum fetichismo precisa constatar [...] que cada casualidade tem de ser possível; mas com isso não se afirma de forma alguma que toda possibilidade seja casual”.156

No ser inorgânico, marcado pela mera continuidade, é completamente indiferente as possibilidades que se apresentam. Não há aqui, propriamente, acasos favoráveis ou desfavoráveis. Diferentemente, o ser orgânico tem de interagir, mesmo que da perspectiva passiva da reprodução meramente biológica, com o conjunto de possibilidades que se apresentam a sua reprodução.157 Já no ser social, por sua vez, junto a sua reprodução biológica, pautada desde o primeiro momento a partir da práxis, emerge a relação sujeito/objeto que é determinada pela capacidade de avaliar as possibilidades concretas e realizar escolhas entre elas, fazendo surgir, ademais, objetos completamente inéditos em sua interação com o mundo natural. O contexto social que assim emerge é, ademais, determinante no âmbito das possibilidades. Diz Lukács:

[...] na práxis social em geral, especialmente no âmbito do trabalho, podem-se realizar possibilidades até então desconhecidas ou até negadas, de forma aparentemente justificada. [...] isso depende da descoberta de tipos do ser-para-outro, até então desconhecidos ou não

154 Lukács, 2010, p. 201; Lukács, 1984, p. 153. 155 Lukács, 2010, p. 202; Lukács, 1984, p. 153-154. 156 Lukács, 2010, p. 209; Lukács, 1984, p. 162.

dados na natureza, de todo ser-para-si. Um pôr teleológico pode, pois, com plena razão, em determinada fase do desenvolvimento social, passar por impossível (isto é, totalmente inexequível), sem estar por isso excluído, pois, em circunstâncias histórico-sociais alteradas, poderá ser realizado, em geral de maneira totalmente diferente. [...] Esse complexo de problemas torna-se ainda mais complicado porque a impossibilidade não é de modo algum sempre tecnológica, ela pode relacionar-se à rentabilidade, ou até mesmo à sua difusão; nesses casos, vê-se com particular clareza como a questão da possibilidade ou impossibilidade de um determinado tipo de pores teleológicos depende de condições histórico-sociais muito concretas.158

Essas considerações já nos permitem aproximar da questão do valor na Ontologia. Pelo que vimos até aqui, a perspectiva lukácsiana, utilizando-se de uma leitura ontológica de Marx, oferece-nos uma abordagem realista do ser, indicando a capacidade – e mesmo a necessidade – da reprodução no pensamento das determinações do real já nas atividades mais elementares do cotidiano. A despeito dessa possibilidade, o imediatismo dessa apreensão primeira do real, seu “realismo ingênuo”, requer um aprofundamento através da investigação filosófica e científica capaz de decompor a realidade em seus elementos mais abstratos e sintetizá-los, reproduzindo no pensamento as articulações de uma totalidade radicalmente histórica e dinâmica. Para tanto, Lukács indica a utilização de processos genéticos e abstrativos-sistematizantes para apreender o movimento e a estrutura do real.

Nesse sentido, no plano ontológico, um primeiro momento dessa totalidade indicada por Lukács remete-se ao primado da objetividade. A constituição de qualquer ente tem um enraizamento ontológico, ao qual a investigação deve se ater não permitindo que critérios lógicos, gnosiológicos, axiológicos, etc. se sobreponham à apreensão concreta do real. Os contatos entre as objetividades dentro do ser inorgânico – que, enquanto esfera do ser, assim como a própria objetividade, não possui uma gênese – dão lugar às interações a partir das quais emerge o ser orgânico e, do desenvolvimento e evolução desse último, surge o ser social.

A concepção ontológica de Lukács, assim, apresenta-nos uma perspectiva do ser, a partir de seu desenvolvimento processual e histórico, constituindo-se enquanto um complexo de complexos, em última instância unitário e estruturado em camadas ontológicas articuladas, formadas através de processos que envolvem continuidade e

descontinuidade – pensando-se aqui a partir da concepção de identidade da identidade e da não identidade hegeliana. Essa perspectiva, a nosso ver fecunda, remete a uma concepção coevolutiva de natureza e sociedade: desde o ponto de vista da ontologia lukácsiana não se pode pensar o ser social de maneira apartada das determinações do mundo natural. Ambos são necessariamente articulados. Esse desenvolvimento coevolutivo, ademais, efetiva-se através de um desdobramento imanente do ser, através das próprias contradições internas das esferas ontológicas, que dão lugar aos processos de diferenciação e emergência de novos complexos. A despeito de ser possível traçar,