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Segundo a professora Ana, escrita é o “uso da palavra escrita numa situação de comunicação” (Questionário auto-aplicado). Portanto é possível se depreender a partir do que foi dito pela professora que ela entende a escrita, ou modalidade escrita da língua, como uso e não como forma. Contudo se tem visto que até aqui a professora vem trabalhando a forma em detrimento do uso.

Forma e uso são as perspectivas pelas quais Widdowson (op. cit.) avalia o ensino de línguas, ou seja, o ensino da forma ou do uso da língua. Ao ensino do uso da língua ele chama comunicativo e ao ensino da forma ele chama gramatical. Widdowson (Ibid. p. 90) faz a seguinte distinção entre composição e escrita:

(...) o ato de criar frases corretas e transmiti-las através do meio visual com marcas no papel (...) podemos denominar simplesmente composição (...) escrever (...) é desenvolver uma discussão e estabelecer pontos distintos de tal forma a persuadi-lo, [o] leitor, de que possuo algo que valha a pena ser dito. O que está incluído nessa atividade? Há por certo nela muito mais do que simplesmente juntar orações numa seqüência como a de vagões de trem. (WIDDOWSON, 2005, p. 90)

Levando-se em consideração o excerto (14), no qual a professora não trabalha com o conhecimento de mundo dos alunos para a elaboração da paráfrase, apresentado na seção (3.7), e o excerto (21), no qual a professora conduz a elaboração do resumo a partir das idéias do autor, apresentado na seção (3.7.1), é razoável se concluir que Ana tem desenvolvido atividades que contemplam a forma e não o uso da escrita. Agora é possível, também, que ela esteja tomando essas atividades como exercícios de uso da escrita no sentido de prática de organização da estrutura da língua escrita e essa parece ser a sua concepção de

uso. Essa sua concepção de uso da forma é, notoriamente, diversa daquela que Widdowson concebe como verdadeiramente uso comunicativo da modalidade escrita.

Logo, sendo essa realmente a concepção de escrita da professora então ela está exercitando a composição nos termos apresentado por Widdowson (Ibid. Id.), ou seja, ela está promovendo a criação de frases corretas e transmitindo-as através do meio visual com marcas no papel. Ela está promovendo o exercício da escrita enquanto forma, enquanto uso da forma.

Pode-se concluir que o texto efetivamente construído pelos alunos por meio da orientação dada pela professora é uma atividade de composição textual e não de produção textual, pois essa última exigiria que os alunos argumentassem e estabelecessem pontos de persuasão a serem discutidos através do texto para o convencimento de um possível leitor, é por isso que a produção de textos é uma atividade também ativa e não mecânica.

3.9.1 Acerca da concepção e crença do objeto escrita.

Kleiman84 (2003, p. 66) aponta quatro concepções, que segundo ela são valorizadas institucionalmente, sobre o objeto escrita, são elas:

(a) aquela que o caracteriza como um artefato (Tεκνη)85 contraposto à “naturalidade” da fala;

(b) aquela que o caracteriza como uma transposição (transcodificação, transcrição) da língua oral, posterior e segunda em relação a esta última, i.e., que o caracteriza como re(a)presentação;

(c) aquela que o caracteriza como transparente, acessível por si mesmo – sem interpretação mediadora – ao (re)conhecimento, portanto, como reificado86; e (d) aquela que o caracteriza como uma forma simplificada e arbitraria de “desenho”, que teria evoluído do pictograma ao ideograma e, por fim, ao silabário/alfabetário. A autora amplia e aprofunda as idéias levantadas por ela ao declarar (Ibid. pp. 66- 67), que para cada concepção apresentada (a, b, c e d) aqui, corresponde, simetricamente, o que ela chama de crença corrente sobre a construção do objeto escrita no processo de letramento, pelo ponto de vista da autora ter-se-ia:

84

KLEIMAN, Ângela B. (org.) Os significados do letramento, uma perspectiva sobre a prática social da escrita. São Paulo: Mercado das Letras, 2003.

85 Do grego (Tékni), aquilo que é produzido artificialmente, um produto, no caso da escrita, que depende de

técnicas para o ensino e aprendizagem.

86 Reificação com o sentido aqui empregado significa que a escrita possui vida própria, cuja compreensão

(A) sendo dependente da constituição da fala – processo “natural e primitivo” – a construção da escrita na ontogênese87 só poderia iniciar-se tardiamente, escolarmente, como aprendizado, a partir de técnicas (métodos, quaisquer que estes sejam), planejadas artificialmente;

(B) sendo, portanto, segundo em ralação à fala, o processo de construção da escrita teria relações (uni)lineares (da fala para a escrita) e regulares, não discursivas, mas representacionais, com esta primeira modalidade;

(C) dado um “estágio” bem-sucedido de desenvolvimento da fala (em seus aspectos audioarticulatórios) e da motricidade, a escrita – como efeito da “mão que fala” (AJURIAGUERRA & AUZIAS, 1968) – seria em si transparente e acessível imediatamente à criança, desde que apresentada por “boas técnicas” (métodos) (vide (a)) e, por último,

(D) sendo um aparato gráfico arbitrário, seria mais “natural” que a “etapa” de grafização da fala como signo - a escrita – sucedesse à “etapa” de grafização do mundo como símbolo – o desenho. Especialmente esta última concepção é onipresente nos estudos sobre desenvolvimento da escrita (...)

A partir da concepção de escrita da professora Ana, apontada na seção (3.9), e da análise de sua abordagem de ensinar realizada até esse ponto, pode-se deduzir que a concepção de escrita dela é a que está indicada na letra (c), já que segundo Kleiman a cada concepção do objeto escrita cabe uma crença correlativa, pode-se dizer que a da professora Ana está indicada na letra (C).

Noutras palavras, Ana entende que a escrita está disponível para toda e qualquer pessoa desde que os aspectos audioarticulatórios e a motricidade não estejam comprometidos. Embora haja algum fundamento na concepção de escrita da professora não se pode dizer o mesmo sobre a sua crença a respeito da mesma, uma vez que a escrita, tal como a língua oral, são aparatos arbitrários da língua. Sobre o processo de ensinar e adquirir língua, Ana declara:

Excerto 31 (Questionário auto-aplicado)

Cada um de nós começa a aprender sua língua em casa, em contato com a família, imitando o que ouve e apropriando-se, aos poucos, do vocabulário e das leis combinatórias da língua. Com isso vamos treinando o nosso aparelho fonador para produzir sons que transformam em palavras, em frases e em textos inteiros. Isso é adquirir uma língua, a língua pátria, por exemplo. Podemos, no entanto, ensinar uma língua na escola. Uma língua estrangeira, a língua de sinais, por exemplo, é adquirida na escola. Com o treinamento desse aparelho fonador. Nesse caso, a escola ensina a falar, a ler e a escrever simultaneamente.

Ana demonstra compreender perfeitamente a diferença existente entre ensinar e adquirir língua, contudo ela não demonstra fazer alguma distinção entre ensino para aprendizagem e para aquisição de língua por alunos surdos já que ela trata com toda ênfase apenas da modalidade falada da língua a ponto de se confundir e dizer que a língua de sinais é

87

Conjunto de processos que ocorrem durante o desenvolvimento do indivíduo, desde a fecundação até os últimos momentos de sua existência, incluindo assim as transformações que se sucedem ao longo de toda a sua vida.

adquirida na escola com o treinamento do aparelho fonador – se voltará a esse ponto na subseção (3.10.1). Há de se destacar aqui que apenas crianças surdas filhas de pais ouvintes costumam aprender a língua de sinais na escola ou mesmo na igreja, pois os surdos filhos de pais surdos geralmente a adquirem de maneira mais natural, no convívio familiar.

Bom, é compreensível que a professora Ana, mesmo depois de quatro anos de experiência em classes de inclusão do ensino médio, ainda ensine produção de textos para seus alunos surdos da mesma maneira que para seus alunos ouvintes, pois as universidades ainda não estão preparando professores para esse campo de atuação. As universidades ainda estão se organizando para tanto uma vez que só a partir de 2002, com o advento da Lei Libras, que a Língua de Sinais Brasileira foi reconhecida oficialmente.

O que se constatou nessa sessão foi que a concepção e a crença de escrita da professora Ana a faz ensinar produção de textos para seus alunos surdos da mesma forma que ela ensina para seus alunos ouvintes. Ela não faz nenhuma diferenciação na sua metodologia entre ensinar para alunos surdos e para alunos ouvintes. A modalidade escrita da língua ensinada também não é tratada metodologicamente como L2. A seguir, apresentar-se-ão algumas crenças levantadas a partir dos materiais empíricos coletados durante a observação participativa em campo e da análise dos dados desenvolvida nas seções e subseções anteriores.

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