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Onde, quando e como começou: da condição de língua usada por surdos nos subúrbios de Paris do século XVII ao status de língua de instrução na educação formal

do século XXI.

A educação formal de surdos se iniciou na França do século XVII, com o abade Charles-Michel de L’Épée também conhecido como “pai dos surdos”. À época de L’Épée a noção de que a compreensão das idéias independia de se ouvir palavras32 ainda era bastante discutida. L’Épée acreditava nessa possibilidade, portanto os surdos possuíam linguagem e seus gestos eram mais que gestos, constituíam uma língua. Mesmo assim L’Épée, até a sua morte, também viu a língua de sinais como primitiva, entenda-se agramatical, logo, incompleta.

Em decorrência desse seu ponto de vista, L’Épée desenvolve seus sinais metódicos33 para o ensino da leitura e escrita a surdos que se expressavam através de sinais em Paris. Esses sinais metódicos eram formados a partir de alguns sinais da língua de Sinais Francesa (LSF) combinados com sinais criados para representar as terminações verbais, artigos e verbos auxiliares da língua francesa, pois as línguas de sinais não dispõem desses mecanismos e por isso L’Épée, dentre tantos outros naquela época e ainda hoje, as considerava incompletas. Em termos modernos, L’Épée estava criando o francês sinalizado e inaugurando uma moda que se espalharia por todo o mundo e que ainda hoje detém muita popularidade dentre os que trabalham na educação de surdos principalmente nos EUA.

Embora L’Épée acreditasse na agramaticalidade da LSF a ponto de suplementá-la com seus sinais metódicos ele acreditava, também, que as línguas de sinais eram a língua perfeita mencionada por Russeau, contemporâneo de L’Épée, em Discurso sobre a origem da desigualdade, e no Ensaio sobre a origem das línguas. Tal língua, segundo Russeau, seria:

31 Para maiores detalhes: BARCELOS, Ana Maria Ferreira e ABRAHÃO, Maria Helena Vieira. Crenças e

ensino de línguas: foco no professor, no aluno e na formação de professores. São Paulo: Pontes, 2006.

32

Houve na China antiga uma língua erudita, da elite burocrática, que nunca se destinou à fala.

33 Uma primeira forma de interferência na estrutura de uma língua de sinais com o intuito de torná-la mais

“não mediata, uma expressão simbólica do pensamento e dos sentimentos, mas, quase magicamente, uma língua imediata” (SACKS, 2005, p. 30). Ou seja, desprovida de lógica, gramática, metáforas e abstrações.

Sacks (loc. cit.) cita uma declaração do próprio L’Épée que revela não apenas a sua reverência à língua de sinais que ele conheceu como também a sua convicção de que o speceium34 com que sonhava Leibniz estava ali mesmo entre os surdos pobres de Paris:

A língua universal que nossos eruditos buscaram em vão e da qual perderam a esperança está aqui; está bem diante de nossos olhos, é a mímica dos surdos pobres. Porque não a conheceis, vós a desprezais, e, contudo somente ela vos dará a chave para todas as línguas.

Contudo, não existe uma língua de sinais universal. A Língua de Sinais da França é diferente da Língua de Sinais do Brasil, assim como essas são diferentes das demais línguas de sinais espalhadas pelo resto do mundo, assim como também não existe uma língua oral- auditiva igual à outra língua oral-auditiva, embora possa haver parentesco em ambas as modalidades.

L’Épée não possuía essa noção da diversidade lingüística e ao desenvolver os seus sinais metódicos ele estava também abrindo espaço para o que se chama hoje em Lingüística Aplicada (LA) de transferência negativa ou interferência que é segundo Barbieri Durão (2007, p. 36):

(...) [é] o fenômeno psicológico que leva o aprendiz de LE a transladar estruturas da LM (língua materna) para a LE (língua estrangeira) (...), teoricamente, qualquer característica da LM pode ser transferida para a língua que se aprende, podendo haver interferência dessa língua com a LO (língua objeto) na fonética, na morfologia, na sintaxe, na semântica, na cultura, no discurso, (sic) etc. (...) Quando (...) é negativa, pode haver problemas de entendimento, de comunicação e/ou de aprendizagem35.

Em se tratando de interferência se entende, hoje em dia, que os aprendizes escolhem os dados que serão transferidos (op. cit. p. 37), mas o que o abade L’Épée fez foi combinar sinais da LSF com sinais criados para representar as terminações verbais, artigos e

34 Língua universal na qual a relação mundo, pensamento e linguagem não se dão apenas logicamente, mas

logico-matematicamente, a grosso modo, um signo motivado, precisa e único para cada coisa. (Cf. LEIBNIZ, G.W. 1988. Novos ensaios sobre o entendimento humano. São Paulo, Nova Cultural. [Coleção Os Pensadores].

35 Tradução livre do excerto: (...) [es] el fenómeno psicológico que lleva a trasladar estructuras de la LM a la LE, (...), teóricamente, cualquier rasgo de la LM puede transferirse a la lengua c ola LO en la fonética, en la morfología, em la sintaxis, en la semántica, en la cultura, en el discurso, etc. (...) Cuando (...) es negativa, puede haber problemas de entendimiento, de comunicación y/o de aprendizaje.

verbos auxiliares da língua francesa o que resultou no que se pode chamar de Francês sinalizado.

O abade agia dessa forma com o intuito de suplementar a LSF, que ele via como língua sim, mas como língua incompleta, portanto os mecanismos criados por ele não eram provisórios, mas sim duradouros. Esses mecanismos não serviam para superar os problemas que os surdos encontravam para aprender a língua francesa. Contudo para superar a pseudo- agramaticalidade da LSF, para torná-la uma língua completa, uma língua gramaticalmente mais parecida com a língua francesa.

O tipo de interferência criada por L’Épée merece atenção especial porque não se trata da interferência de um aprendiz de língua, mas de um outro tipo de interferência que ainda não foi estudada, a interferência de uma pessoa que deliberadamente tenciona suplementar uma língua que não é sua língua materna e que tampouco ele ensina. Ele ensina, sim, o produto dessa interferência que no caso em questão é o Francês sinalizado.

Ao se fazer uso da transferência como estratégia de comunicação um aprendiz, segundo Barbieri Durão (op. cit. p. 38), estaria pedindo ou uma informação, ou uma confirmação ao seu interlocutor a respeito de um uso da L2, ou seja, a transferência como estratégia de comunicação do aprendiz se daria de uma dessas duas formas apontadas, ou mesmo, ora por uma, ora por outra, num ciclo de alternâncias que varia de acordo com a necessidade, habilidades e o contexto onde o aprendiz está inserido:

Como pedido de informação: se dá quando se percebe que não se possui recursos lingüísticos suficientes para construir uma determinada mensagem e se pede, explicitamente, ao interlocutor que traga a informação que se precisa, usando para isso de algum item da LM que demonstre sua necessidade.

Como pedido de confirmação: aparece quando, imediatamente depois de se utilizar um determinado elemento, se suspeita que o elemento dito provém da LM e se solicita que o interlocutor (o co-construtor do discurso) o confirme, e, se for o caso, que o indique para que se possa retificá-lo36.

Pode-se ver que a transferência realizada por L’Épée não se deu por nenhuma dessas duas formas. L’Épée realizou uma interferência, ou transferência negativa, na LSF e

36

Tradução livre do excerto: Como petición de información: se da cuando se infiere que no se poseen recursos

lingüísticos suficientes para construir um determinado mensaje y se pide, explicitamente, al interlocutor que aporte la información que se necessita, usando para ello algún item de la LM que demuestre su carencia. Como

petición de confirmación: aparece cuando, imediatamente depois de se utilizarse un determinado elemento, se

sospecha que dicho elemento proviene de la LM y se solicita que el interlocutor (o co-constructor del discurso) lo confirme, y, de ser el caso, que lo indique para que se pueda proceder a rectificarlo.

essa interferência criou mecanismos desconhecidos pelas línguas de sinais, a saber: as terminações verbais, artigos e verbos auxiliares.

Como produto dessa interferência resultou algo que não é uma língua natural, mas uma superposição de línguas que será discutido mais adiante. Esse híbrido também gerou argumento para aqueles que não reconhecem nas línguas de sinais as características imanentes a uma língua natural, e com razão, pois, no caso do francês à época de L’Épée, uma língua francesa sinalizada não era realmente uma língua natural, uma vez que nem era francês e nem era mais a LSF.

Vale reforçar: as línguas de sinais são línguas plenas, originais e legítimas que não necessitam de suplementação, ou mesmo, complementação. As línguas de sinais são de modalidade viso-espacial enquanto as línguas faladas são de modalidade oral-auditiva, ambas possuem canais de realização diferentes, e que por essas razões, ainda causam estranhamento na maioria das pessoas, em alguns lingüistas e lingüistas aplicados inclusive.

2.3 Filosofias para a educação de surdos: terapia versus ensino, a clínica e a escola se

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