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O Oralismo e o seu legado duvidoso face ao “paciente deficiente auditivo”.

2.3 Filosofias para a educação de surdos: terapia versus ensino, a clínica e a escola se confrontam na pessoa do surdo.

2.3.1 O Oralismo e o seu legado duvidoso face ao “paciente deficiente auditivo”.

O Oralismo não é uma proposta educacional e sim uma proposta terapêutica calcada na suposição, errônea, de que o surdo pode adquirir a língua falada sem levar em consideração, ou considerando remotamente, o grau de surdez de uma pessoa.

Para o Oralismo o surdo não é mais que um deficiente auditivo (DA) que deve ser tratado por médicos e terapeutas com uso de cirurgias, implantes, sessões de fonoaudiologia e uso de próteses. Essa abordagem não permite que o surdo faça uso de uma língua de sinais em contexto algum, seja familiar, educacional, religioso ou profissional, pois considera as línguas de sinais nocivas ao aprendizado da língua oral. Essa abordagem só permite, e assim mesmo nos tempos atuais, o uso das linguagens de sinais em última instância quando todos os recursos terapêuticos se mostraram ineficientes ou de pouco proveito para o ensino da fala, ou seja, as linguagens de sinais são vistas como expediente para ensinar surdo a falar.

Essa abordagem ensina o surdo ler lábios e, hoje em dia, a fazer leitura orofacial, que é a leitura dos lábios e das expressões faciais e corporais, como expediente para aquisição da língua oral, ou seja, a observação da articulação de sons e o reconhecimento desses sons articulados pelos ouvintes que são chamados de normais. Para o INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos) no Rio de Janeiro:

(...) é provável que até o melhor leitor labial adulto só consiga entender 50% das palavras articuladas (talvez menos). O resto é pura adivinhação. Muitos sons são invisíveis nos lábios. Por exemplo, a diferença entre as palavras “gola” e “cola” dependem unicamente dos sons guturais. Outros sons, como “p” e “m”, “d” e “n” e “s” e “z”, podem ser facilmente confundidos. O portador de deficiência, não sabendo bem qual o assunto da conversa, tem mais dificuldade de fazer a leitura labial.38

Ainda a respeito da captação do oral tão alardeada pelo Oralismo como meio de oralização do surdo, dessa feita capitação realizada pela criança surda, Duffy39 (1987 apud QUADROS 1997, p. 23) levantou nos EUA, no ano de 1987, um percentual significativo de fatos que depõem contra o Oralismo. Sobre esse percentual ela comenta que:

(...) apesar do investimento de anos da vida de uma criança surda na sua oralização, ela somente é capaz de captar, através da leitura labial, cerca de 20% da mensagem e, além disso, sua produção oral, normalmente, não é compreendida por pessoas que não convivem com ela (pessoas que não estão habituadas a escutar a pessoa surda). Esse é um dado que complementa o dado apresentado pelo Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) no que concerne à capacidade de leitura labial de um surdo adulto ao mesmo tempo que põe em cheque, tanto aqui quanto lá fora, a eficiência da abordagem Oralista no que diz respeito à reabilitação do surdo que é a proposta terapêutica do Oralismo. É possível se perceber que o Oralismo não possui uma proposta educacional, não tão somente uma proposta terapêutica cujo objetivo é ensinar surdos a falar e a ouvir.

A abordagem oralista tem deixado um saldo negativo na educação de surdos no que tange à aprendizagem da leitura. Saldo esse que despontou pela primeira vez aos olhos dos primeiros estudiosos do assunto em levantamentos feitos nas décadas de 1970 e 1980. Conrad40 (1979 apud SACKS, 2005, p. 41) aponta alguns resultados obtidos pelo Oralismo na Inglaterra e esses resultados não são tão diferentes dos apontados por Sacks (loc. cit.) nos Estados Unidos:

Muitos dos surdos atualmente são analfabetos funcionais. Um estudo realizado pela Gallaudet College em 1972 mostrou que o nível médio de leitura dos surdos de dezoito anos que concluíram o curso secundário nos Estados Unidos atingia apenas o nível de um aluno de quarto ano primário, e em estudo do psicólogo britânico R. Conrad indica situação semelhante na Inglaterra, onde os alunos surdos, formando- se no secundário, lêem no mesmo nível de crianças de nove anos.

A situação do Brasil dos anos de 1980 não era tão diferente da situação da Inglaterra e dos EUA dos anos de 1970. Aqui, como lá, o Oralismo deixou defasagens educacionais em se tratando de leitura e escrita também. Quadros (1997, p. 23) ao comentar as defasagens, em termos de conteúdos escolares, oriundas do Oralismo cita um dado retirado de um levantamento feito em parceria entre a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Centro Nacional de Educação Especial (CENESP) no ano de 1986, em Curitiba- PR, no qual se constatou que:

39

DUFFY, J. T. Ten reasons for allowing deaf children exposure to American Sign Language. s.e. s.l. 1978.

40 CONRAD, R. The Deaf schoolchild: language and cognitive function. Londres; Nova York, Harper and

(...) o surdo apresenta muitas dificuldades em ralação aos pré-requisitos quanto à escolaridade, e 74% não chega a concluir o 1º grau. Segundo a FENEIS, o Brasil tem aproximadamente 5% da população surda total estudando em universidades e a maioria é incapaz de lidar com o português escrito.

Tais conseqüências se estendem até o século XXI, pois segundo o depoimento da professora surda de Estrutura da Língua Brasileira de Sinais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Myrna Salerno:

(...) somente 1% dos surdos conseguem entrar nas universidades públicas, porque o que falta fundamentalmente ao surdo é “entender” as questões da Língua Portuguesa41.

Perceba que de acordo com a professora Myrna o que falta ao surdo, lá no fundo, é compreender o que está escrito numa língua que não é a dele. E a percepção dela, como professora surda que é, parece ser a mesma de Duffy, Conrad e Sacks que são ouvintes e que foram citados acima. Essa compreensão da língua escrita o Oralismo também não pode dar, porque não se trata de uma questão clínica e sim pedagógica e cognitiva.

A técnica do Oralismo que é vista como panacéia, não para a surdez, mas para a mudez é a leitura labial, que integra a terapêutica clínica de tratamento do surdo como as citadas anteriormente: cirurgias, implantes, próteses e sessões de fonoaudiologia.

Em se tratando de Fonoaudiologia, ao contrário do que o senso comum pensa, quando um fonoaudiólogo ensina leitura labial a um surdo ele está, na verdade, ensinando ao surdo reconhecer formatos de lábios para determinados sons produzidos por ouvintes. Logo após, ele inicia o treinamento de reprodução e repetição desses formatos pelo paciente surdo. Uma vez que o surdo nunca ouviu, ou deixou de ouvir em tenra infância, ele conseguirá imitar o formato dos lábios, mas não articular os sons no aparelho fonador e quando conseguem são sons muito baixos e deficitários que muitos desses surdos preferem não proferir porque temem ser ridicularizados pelos ouvintes.

Portanto isso não é aquisição da modalidade oral da língua, e sim, é apenas uma aprendizagem limitada à imitação de configurações de lábios. Os sons da fala viva, ele, o

41 Disponível em: <http://www.feneis.org.br/page/materias_universidadepublica.asp>. Acesso em 14 junho

surdo pós-lingüístico42, nunca os aprenderá ou adquirirá por não ser possível sua imersão em contextos de fala verdadeiros. Veja-se o comentário que o INES fez a respeito desse ponto:

O portador de deficiência é capaz de “ler” a posição dos lábios e captar os sons que alguém está fazendo. Essa técnica se chama leitura labial e é útil quando o interlocutor formula as palavras com clareza. (...) Para quem já nasceu surdo, a leitura labial é muito mais difícil do que para alguém que tinha audição, pois o portador de deficiência auditiva tem de imaginar os sons que nunca foram ouvidos.

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Essa situação não poderá ser remediada por nenhuma técnica terapêutica e fica ainda mais complicada quando o Oralismo não permite, e ainda por cima não incentiva, às famílias de surdos a aprenderem a língua de sinais da comunidade de surdos juntamente com seus filhos sob a alegação de que atrapalha o desenvolvimento da fala. A única maneira de se adquirir uma outra língua é através da língua que já se adquiriu, e no caso dos surdos essa língua é a de sinais, uma língua natural, completa e complexa como qualquer língua oral- auditiva também é.

Paralelo ao Oralismo se desenvolve uma outra abordagem com foco na educação de surdos, contudo sem se emancipar do Oralismo que permanece vivo até os dias atuais. Essa outra abordagem, muito marcante nas escolas ditas inclusivas, é chamada de Comunicação Total ou CT.

2.3.2 Comunicação Total - CT - e sua relação de submissão e perpetuação do Oralismo,

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