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A concepção da práxis: uma discussão entre teoria e prática

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3 CONCEITOS E ANÁLISES DA PRÁXIS SOCIAL E MISSIONÁRIA DOS

3.1 A concepção da práxis: uma discussão entre teoria e prática

Logo, ao ler a palavra práxis o termo já traz a memória o substantivo prático. Isso é fato, pois com a etimologia parecida os conceitos também se confundem. Por isso Vasquez34 (1977) desde o início de sua obra, em “Filosofia da Práxis”, faz questão de conceituar a práxis enquanto “categoria central da filosofia que se concebe ela mesma não só como interpretação do mundo, mas também como guia de sua transformação” (VAZQUEZ, 1977, p.5).

Já no mundo prático ou para consciência comum, a atividade humana tem um caráter utilitário-pragmático, que diz respeito às necessidades imediatas. Nesse sentido, não há consciência crítica, apenas um modo de viver e agir praticamente, onde as coisas têm uma significação independente dos atos humanos. Deste modo, “a consciência comum pensa os atos práticos, mas não faz da práxis – como atividade social transformadora – seu objeto; não produz – nem pode produzir, como veremos – uma teoria da práxis” (VAZQUEZ, 1977, p.10)

Compreendida como atividade social transformadora, Vazquez afirma que “toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis” (VAZQUEZ, 1977, p. 185). Aqui o autor deixa claro que não há como classificar toda atividade como práxis, pois existe a necessidade

34 Vazquez é um pensador marxista que respalda suas análises sobre a práxis nas Teses de Feuerbach, em sua

de haver uma consciência orientada, onde a atividade transforma o mundo natural e também social. Para exemplificar isso é válido recorrer a síntese genial de Marx35:

uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade (MARX apud VERONEZE, 2018, p.105)

Ao ser utilizada a figura do tecelão e do arquiteto nesta citação fica evidente que a diferenciação está na habilidade de projetar e objetivar o processo de criação. É possível perceber aquilo que é específico do ser social do que é genérico entre os seres vivos através do trabalho e sua ação mediada pela consciência. Sobre o trabalho Lukács destaca:

[...] o trabalho dá lugar a uma dupla transformação. Por um lado, o próprio ser humano que trabalho é transformado por seu trabalho; ele atua sobre a natureza exterior e modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza, desenvolve “as potencias que nela se encontram latentes” sujeitas as forças da natureza “ao seu próprio domínio”. Por outro lado, os objetos e as forças da natureza são transformados em meios de trabalho, em objetos de trabalho, em matérias-primas etc. O homem que trabalha “usa as propriedades mecânicas, físicas e químicas das coisas para submeter outras a seu poder, atuando sobre elas de acordo com seu propósito”. Os objetos naturais, todavia, continuam a ser em si o que eram por natureza, na medida em que suas propriedades, relações, vínculos etc. existem objetiva e independentemente da consciência do homem, e tão somente através de um conhecimento correto, através do trabalho, é que podem ser postos em movimento, podem ser convertidos em coisas uteis. (LUKÁCS, 2012, p 286)

Conforme visto, é pelo trabalho que o homem se objetiva no mundo através de suas ideações e mediações, esse processo de transformação/transmutação é conhecido por teleológico36. Isso resulta na capacidade de formular objetivos, possibilidades e escolhas, o que leva do estado reflexivo para o real concreto. Como destaca Vásquez, o homem é um ser social, mas:

35 Marx se apropria e eleva o conceito de práxis através da perspectiva de transformação, social e econômica.

Após suas elaborações não houve modificações consideráveis sobre o conceito de práxis. (SILVA, 2009,p.65).

36 Para que não fique dúvida, esse processo teleológico é a capacidade humana de projetar na mente, criar

possibilidades e escolher uma dentre elas, para sua objetivação. Esse é reconhecido como processo de humanização. (VERONEZE, 2018, p.106).

Esse processo só se realiza em determinadas condições sociais, isto é, no âmbito de certas relações que os homens contraem como agentes da produção nesse processo e que Marx chama como propriedade de relação de produção (VAZQUEZ, 1977, p.195).

Deste modo, o trabalho é reconhecido como a manifestação histórica e social mais imediata da liberdade da consciência ao permitir criar e transformar o mundo e a si mesmo. Assim, se todo trabalho humano realiza atividades teleológicas, de mediações objetiva e subjetiva, portanto reflexiva e teórica, logo ele se constitui uma forma de práxis. Esse é modo de práxis produtiva, e sobre ela Vázquez (1977) afirma ser fundamental:

Porque nela o homem não só produz um mundo humano ou humanizado, no sentindo de um mundo de objetos que satisfazem necessidades humanas e que só podem ser produzidos na medida em que se plasmam neles finalidades ou projetos humanos, como também no sentindo de que na práxis produtiva o homem se produz, forma ou transforma a si mesmo. (VÀZQUEZ, 1977, p.198)

Por essa razão, o ser social precisa se reconhecer no mundo através do trabalho. Mas aqui o trabalho não se restringe apenas no modo de suprir as necessidades ou carências, mas em seu sentido lato como toda ação humana, por isso, compreendido enquanto práxis. Assim, o trabalho contempla desde a ação na fabricação de instrumentos mais rudimentar como aos trabalhos mais sutis de um artista37.

Porém, o que merece cuidado em uma sociedade onde o trabalho se torna uma relação de assalariamento, onde o produto é separado daquele que o produz, o resultado é um estado de alienação, pois o que seria práxis dá lugar, muitas vezes, a praticas repetitivas e sem sentido. Deste modo, nessa relação capital/trabalho o humano se torna meio e não mais fim (VERONEZE, 2018, p.141).

Entretanto, vale lembrar, que essa ação isolada da práxis, ou dicotomia entre teoria e práxis, não é resultado apenas do modo de organização da sociedade atual, mas tem seus fundamentos históricos. Por exemplo, os filósofos na Antiguidade grega, ignoram e até repeliam o mundo prático por não conseguirem captar dele mais do que enxergavam. O trabalho, nesse momento, era enxergado como atividade indigna aos homens livres, algo próprio dos escravos, e ao mesmo tempo exaltava-se a atividade contemplativa e intelectual. O conceito aqui era inverso, o homem se aprimorava através da isenção da atividade prática

37 “Como toda verdadeira práxis humana, a arte se situa na esfera da ação, da transformação de uma matéria que

perderá sua forma original para adotar outra nova: a exigida pela necessidade humana que o objeto criado produzido há de satisfazer” (VÁZQUEZ, 1977, p.198).

material e assim a teoria ou contemplação era radicalmente separada da prática38 (VASQUEZ, 1977, p.17)

Esse entendimento tem sua maior expressão filosófica em Platão e Aristóteles. Vásquez traz algumas observações sobre a concepção destes filósofos:

Com Platão, a vida teórica, como contemplação das essências, isto é, a vida contemplativa (bios theoretikós) adquiri uma primazia e um estatuto metafísico que até então não tivera. Viver, propriamente, é contemplar [...] Os obstáculos provêm dos sentidos, do apego do homem com o ser corpóreo às coisas, à matéria, e sua sujeição aos afazeres práticos. Aristóteles não fica muito atrás de seu mestre nesse menosprezo pelo trabalho físico que implica no reconhecimento da superioridade do teórico sobre o prático. Para ele a atividade pratica material carece de um significado propriamente humano” (VÀZQUEZ, 1977, p.18).

Nesse sentindo, Marx em sua 11º Teses de Feuerbach observa que as atividades dos filósofos têm sido de interpretar o mundo de diferentes maneiras quando a questão é transformá-lo (MARX; ENGELS,2004). Deste modo fica evidente a crítica de Marx sobre a filosofia apenas como interpretação, onde a teoria apresenta desligada da prática.

Nesse sentido Vázquez também entendi que a atividade teórica sozinha não pode ser considerada enquanto práxis, por isso afirma:

Se chamamos de práxis a atividade prática material, adequada a finalidades, que transforma o mundo – natural e humano-, não cabe incluir a atividade teórica entre as formas de práxis, porquanto lhe falta a transformação objetiva de uma matéria através do sujeito, cujos resultados subsistam independente de sua atividade (VÀZQUEZ, 1977, p.204).

Deste modo, esse aspecto de transformar altera a concepção da filosofia da práxis. Logo, Marx contribuiu de forma significativa e precisa “para poder elaborar uma filosofia como guia ou instrumento teórico da transformação da realidade, e tornar possível a efetiva transformação desta” (VÀZQUEZ, 1977, p.208).

Mas, por outro lado, a práxis também não pode ser entendida como uma atividade puramente material, pois há a necessidade de construir finalidades e conhecimentos, o que caracterizam a atividade teórica. Isso significa que para compreender corretamente o que é práxis requer entender a unidade entre teoria e prática.

38 Essa ideia de que o homem, com o seu trabalho, faz a si mesmo e transforma o mundo material só surge na

A questão é que pelo ponto de vista do “senso comum” existe uma oposição entre teoria e prática, justamente por reduzir o prático ao utilitário e pela dissolução do teórico ao útil. Contudo, essa posição absoluta só é sustentada “quando as relações entre teoria e prática são formuladas em bases falsas, seja porque esta última tenta a desligar-se da teoria, seja porque a teoria se negue vincular-se conscientemente com a prática” (VÀZQUEZ, 1977, p.210).

Por isso Vázquez (1977) não se utiliza do termo oposição, mas sim das diferenças, pois compreende a unidade indissolúvel da teoria e da prática. Ele faz questão de assinalar que o problema das relações entre teoria e prática está na autonomia e dependência de uma com relação a outra, e isso pode ser formulado em dois planos:

a) Num plano histórico-social como formas peculiares de comportamento do homem enquanto ser histórico–social, com referência à natureza e à sociedade;

b) Em determinadas atividades práticas (produzir um objeto útil, criar uma obra de arte, transformar o Estado ou instaurar novas relações sociais) (VÀZQUEZ, 1977, p.215).

Ainda sobre as relações entre teoria e prática Vázquez (1977) recorre aos escritos de Engels (1961), na obra Dialética da Natureza:

Até agora, tanto as ciências sociais como a filosofia menosprezaram completamente a influência que a atividade do homem exerce sobre seu pensamento e conhecem apenas, de um lado, a natureza e, de outro, o pensamento. Mas o fundamento mais essencial e mais próximo do pensamento humano é, exatamente, a transformação da natureza pelo homem, e não a natureza por si só, a natureza enquanto tal, e a inteligência humana foi crescendo na mesma proporção em que o homem ia aprendendo a transformar a natureza (ENGELS apud VAZQUEZ, 1977, p.215).

Neste sentido a teoria depende da prática, pois, a prática é o fundamento da teoria, já que essa determina o rumo de desenvolvimento e progresso do conhecimento. Este é um princípio básico do conhecimento teórico que alcança os dias atuais e chega até as atividades cientificas mais altas, pois estão vinculadas com as necessidades práticas dos homens (VÀZQUEZ, 1977, p.216).

Porém, cabe esclarecer, que a teoria não corresponde exclusivamente às necessidades de uma prática já existente, mas também a uma prática que ainda não existe ou está em sua fase embrionária, já que o homem pode necessitar de atividades práticas transformadoras e para isso precisa de instrumental teórico. Assim será necessário ao homem criar finalidade ou

antecipação do ideal daquilo que possivelmente irá existir, ou seja, “a prática é aqui a finalidade que determina a teoria” (VAZQUEZ, 1977, P.232).

Nessa lógica, a teoria não se baseia de forma simplicista, direta e imediata na prática, o que demostra que as relações entre teoria e prática não podem ser encaradas de forma mecânica. É claro que existem teorias especificas que não possuem tal relação com a prática, mas este espaço é de reflexão da teoria e da práxis em seu processo histórico social, que tem seu lado teórico e prático.

Assim, embora exista a dependência da teoria em relação a prática, pois é a ela que oferece fundamento e finalidade para teoria, como visto anteriormente, é valido ainda ressaltar que isso não demonstra uma contraposição, mas pressupõe uma intima vinculação. Essa unidade, por sua vez, não nega a autonomia relativa da teoria.

Na tentativa de melhor esclarecer essa unidade entre teoria e pratica, Vázquez afirma que a prática tem que estar em uma perspectiva de atividade objetiva e transformadora da realidade natural e social. Contudo, pode-se pensar que a prática se esclarece e fala por si mesma, mas Marx já adverte ao se referir a Tese de Feuerbach:

[...] toda a vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que levam a teoria ao misticismo, encontram sua solução racional na práxis humana e no ato de compreender essa práxis (MARX; ENGELS, 2004, p120).

Em outras palavras, essa citação afirma que existe a prática e a compreensão dessa prática, e para exercer essa segunda atividade é necessário a racionalidade. Então o ato de pensar caracteriza uma atividade teórico-práxis e práxis-teórico. Assim, a práxis está relacionada diretamente com a ação marcada pela razão, isso é uma atividade específica do ser humano, portanto ontológica e teleológica.

O trabalho, por exemplo, é uma forma ontológica da práxis. É a atividade transformadora entre indivíduo e a natureza que possibilita uma realidade humanizadora, ou seja, práxis produtiva, como foi visto acima sobre a influência do pensamento marxista. Todavia, o ser social não se reduz ao trabalho, mas existem formas distintas da práxis como: política, ética, ciência, arte39.

Veroneze (2018), ao dedicar parte de seus estudos a ética enquanto práxis afirma que essa é uma ação teleológica, também orientada para um determinado fim, como a ação política, pois em ambas situações é o agir do ser social na vida social. Essa é a forma da

39 Embora Vázquez (1977) aborde essas outras formas de práxis, a atenção aqui está voltada apenas a prática

práxis social, onde o homem é sujeito e objeto da mesma práxis e isso será dirigido a um grupo ou classe social. Vázquez (1977) defini esse conceito de práxis social com clareza:

Na medida em que sua atividade toma por objeto não um indivíduo isolado, mas sim grupos ou classes sociais, e inclusive a sociedade inteira, ela pode ser denominada práxis social, ainda que num sentido amplo toda a prática (inclusive aquela que tem por objeto direto com a natureza) se revista de um caráter social, já que o homem só pode levá-la a cabo contraindo determinadas relações sociais (relações de produção na práxis produtiva) e, além disso, porque a modificação prática do objeto não humano se traduz, por sua vez, numa transformação do homem como ser social (VÁZQUEZ, 1977, p.200).

Em continuidade, Vázquez traz um sentido mais restrito:

A práxis social é a atividade de grupos ou classes sociais que leva a transformar a organização e direção da sociedade, ou a realizar certas mudanças mediante a atividade do Estado. Essa forma de práxis é justamente a atividade política (VÁZQUEZ, 1977, p.200).

Portanto, a práxis social é intencional na vida social, por isso capaz de trazer novas realidades política, econômica e social. Segundo Veroneze isso acontece através da “ação ética e politicamente consciente visa ao despertar do sujeito individual e coletivo revolucionário para erradicação e/ou superação das desumanidades” (VERONEZE, 2018, p.155-156).

Tudo isso acontece e se desenrola na vida cotidiana, por isso esse espaço deve ser encarado enquanto complexo e contraditório, aonde a história está sendo construída e os sujeitos sociais tem seu papel central. É neste âmbito que estão as possibilidades de construção individual e coletiva. Sobre isso Barroco expressa:

[...] várias atividades permitem a elevação ao humano genérico: a práxis política, a práxis artística e filosófica, a ação da ética. São atividades onde o indivíduo não perde sua singularidade, mas se eleva à sua universalidade, comportando-se como individualidade e individuo particular. Para a tradição marxista, a ética é uma forma de relação consciente e livre entre indivíduos e sociedade, que possibilita ao mesmo adquirir consciência de si mesmo como ser humano genérico. (BARROCO, 199, p. 126).

Em vista disso, a práxis ou a motivação da práxis revolucionária, não pode estar divorciada de valores e circunstâncias cotidianas, embora, muitas vezes esses elementos impeçam a elevação da subjetividade e suspensão da imediatividade do cotidiano para objetivação de valores éticos e políticos com caráter universais.

Enfim, como já citado aqui, nas referências marxianas às teses de Feuerbach, é perceptível que a concepção de práxis está fundamentada em uma práxis social- revolucionária. Para Heller (1989) essa práxis envolve ações conscientes individuais e grupais que tem por objetivo mudança em uma direção comum, por isso quem se envolve assume a responsabilidade das ações empreendidas.

Mas, vale destacar, que Heller (1989) não está individualizando e responsabilizando o sujeito social, mas propondo uma consciência daquilo que se faz individual e coletivamente, levando em consideração que não há ação eminentemente individual.

Logo, a práxis revolucionária implica em uma atividade humana consciente e objetiva que se efetiva através de mediações materiais e teleológicas que transformam os fatos dados em atividades empíricas reais e concretas. Por fim, não basta somente interpretar e refletir sobre a vida humana, mas sim ir além na busca de possibilidades concretas para transformação. Assim, a práxis é ativa. Por isso é valido encerrar com a mesma afirmação que abriu esta seção: “a práxis é a categoria central da filosofia que se concebe ela mesma não só como interpretação do mundo, mas também como guia de sua transformação” (VAZQUEZ, 1977, p.5).

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