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2 D A FINANCEIRIZAÇÃO DA ECONOMIA A RECONFIGURAÇÃO DO MERCADO IMOBILIÁRIO

2.2 O capital imobiliário financeirizado no Brasil

2.2.1 A confluência entre capital financeiro e setor imobiliário

Segundo Fernandez e Aalbers (2016) a absorção de capital financeiro pelo setor imobiliário é uma das características definidoras da atual era de financeirização, que amplia de maneira significativa o balanço patrimonial das famílias e dos bancos. Em seus estudos, enfatizam o papel fundamental do ambiente construído na fase de expansão das finanças desde o reconhecimento de Harvey (2013) há três décadas e, sobretudo, a crescente participação do financiamento da habitação em ativos financeiros.

Ainda de acordo com Fernandez e Aalbers (2016, p. 3-4) nesse contexto a habitação não é “apenas um objeto de financeirização – portadora de suas práticas, lógica e fundamentos ideológicos – a habitação é a principal garantia para o processo de financeirização impulsionado pela dívida”. E aqui, novamente, fica clara a contradição dessa relação entre capital financeiro e setor imobiliário, as possibilidades de lucro contínuo com o aumento do retorno do investimento, a partir do acúmulo de dívida privada por conta de imóveis residenciais não é nem infinito nem friccional, os preços das casas e os custos do serviço da dívida não podem se desvincular dos níveis de renda, caso contrário, segue-se a inadimplência dos que adquirem com vistas ao uso como moradia, culminando em crise como a oriunda do já citado subprime.

Essa absorção pelo setor imobiliário, incluindo imóveis residenciais e não residenciais, e também infraestruturas urbanas e grandes projetos urbanos, como já mencionado, só foi possível em virtude do excesso de liquidez. De acordo com Fernandez e Aalbers (2016) um desequilíbrio crescente entre a taxa de crescimento do estoque de capital (fração do PIB não consumida internamente) e do PIB resultou em um grande volume de dinheiro à procura de investimento rentável, o qual gradualmente foi percebendo a potencialidade desse setor.

Neste ponto, é importante salientar que embora o setor imobiliário tenha a capacidade de absorver esse excesso de liquidez, o impacto nos mercados imobiliários varia, significativamente, conforme os contextos institucionais – organização do sistema financeiro (FERNANDEZ; AALBERS, 2016), de modo que alguns países experimentaram o afluxo de capital para a habitação, por exemplo, na década de 1990 e outros somente nos anos 2000, levando à necessidade de compreender as adequações e particularidades para o caso brasileiro. Conforme observa Tone (2016) a internacionalização do setor imobiliário não acompanhou a internacionalização do sistema econômico brasileiro em geral, permanecendo sob o comando do capital nacional nos anos 1950, mesmo com a entrada das multinacionais. Essa aproximação entre o setor imobiliário e o capital financeiro no Brasil só vai se iniciar, de maneira bem incipiente na década de 1990, em face das reformas no sistema financeiro nacional já citadas, e também em virtude da necessidade de encontrar novas estratégias para suprir a carência de crédito para produção, principalmente pós Banco Nacional de Habitação (BNH).

O BNH, extinto em 1986, concentrava praticamente todas as atribuições na área habitacional do governo, tendo sido as mesmas pulverizadas em vários órgãos federais, a saber: 1) a Caixa Econômica Federal – que passou a gerir o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e se tornou o agente financeiro do Sistema Financeiro da Habitação (SFH); 2) Banco Central – que passou a ser o órgão normativo e fiscalizador do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE); 3) o Ministério do Desenvolvimento Urbano (criado em 1985 para discutir a política urbana, em geral, e a política habitacional, em particular) e a então chamada Secretaria Especial de Ação Comunitária (responsável pela gestão dos programas habitacionais alternativos) (SANTOS, 1999).

Apesar das atribuições do BNH terem sido repassadas, havia uma desarticulação institucional, bem como, econômica, conforme salienta Arretche (1990), que dificultou a continuidade da oferta de créditos habitacionais. Passou-se, então, a buscar linhas de financiamento e programas que se adequassem ao novo contexto de mercado, visando à construção de um novo marco regulatório para o setor de crédito imobiliário como um todo e não, exclusivamente, habitacional (ROYER, 2009).

Em 1993, foram constituídos, através da Lei nº 8.668, os Fundos de Investimentos Imobiliários (FII), caracterizados no art. 1 pela comunhão de recursos captados, por meio do Sistema de Distribuição de Valores Mobiliários destinados à aplicação em empreendimentos imobiliários. Trata-se de uma modalidade semelhante a bolsa de valores, o investidor adquire cotas de determinado FII, ao preço/cotação do dia, podendo se desfazer de suas posições a qualquer tempo, também ao preço do dia, ou seja, é uma aplicação que tem a segurança de um imóvel aliada à liquidez de um título mobiliário. De acordo com Fix (2007, p.65), os FIIs, ou ao menos alguns deles, “significaram uma forma de os investimentos driblarem os limites impostos pela legislação que trata de investimentos em imóveis, vendendo os ativos que estavam em sua carteira para os fundos imobiliários”.

As vantagens para os investidores no FII sobre o investidor direto em um imóvel seriam, segundo Fix (2007): maior liquidez do capital, uma vez que seria mais fácil vender uma cota do que todo o imóvel; a terceirização da gestão por uma empresa especializada, o que diminui a preocupação, por parte do investidor, com problemas de administração, como inadimplência; a eliminação do problema de fracionamento da propriedade; minimização do risco, já que ela será diluído com a socialização de ganhos e perdas; e garantia de rentabilidade mínima ainda no período inicial.

No entanto, a nova modalidade ainda não dava conta do problema de crédito que se acentuava naquele período. O novo marco regulatório foi então alcançado por meio da Lei nº. 9.514/1997 que instituiu o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), tendo por objetivo a promoção do financiamento imobiliário em geral, segundo condições compatíveis com as da formação dos fundos respectivos. Além da criação do SFI, a lei trouxe também a criação do Certificado de Recebíveis Imobiliários (CRI), um título de crédito nominativo, de livre negociação, lastreado em créditos, com a possibilidade do pagamento parcelado incidindo juros, que ao longo dos anos demonstra possuir maior vocação para o setor residencial (BOTELHO, 2007a; NUNES, 2012). Enquanto que o FII revela vocação maior para shopping centers, hotéis, etc. (MOREIRA, 2013).

Juntos, FII e CRI formariam veículos de captação de recursos que possibilitariam a transformação de bens imóveis em títulos mobiliários, passíveis de serem comercializados na Bolsa de Valores, desse modo investidores poderiam investir indiretamente nos mercados reais de construção urbana, trazendo mais mobilidade aos capitais investidos no setor imobiliário, ampliando assim a capacidade de acumulação financeira (SHIMBO, 2011; CARDOSO; ARAGÃO, 2011; MATTOS, 2016). Significando também a desabsolutização da propriedade,

a qual só é possível mediante a garantia de que continuará oferecendo ganhos (TONE, 2010), ou seja, é preciso se concretizar para se manter valorizada.

É importante ressaltar, que nesse processo de reformulação do sistema financeiro, ainda a mesma legislação que criava o SFI em 1997, instituiu também a alienação fiduciária23, que

veio, conforme aborda Leal (1999), facilitar a retomada dos imóveis pelos credores em caso de inadimplência dos mutuários, bem como outros mecanismos de financeirização das dívidas hipotecárias, conferindo as bases legais para o desenvolvimento do mercado secundário de títulos hipotecários, adotando o modelo norte-americano.

Esse era o novo sistema financeiro, contextualizado com os interesses do capitalismo no âmbito mundial, entretanto, mesmo com essas mudanças e tais medidas que vieram proteger os interesses do detentor de capital e do investidor, não pareceram suficientes para alavancar o processo de financeirização do capital imobiliário no Brasil. O que só foi viabilizado, a partir de 2005, quando grupos imobiliários passaram a ofertar suas ações na bolsa de valores (SHIMBO, 2011). Assim como passaram a ganhar maior visibilidade os CRIs e FIIs.

Nesse contexto, cabe apontar a introdução da norma sobre o patrimônio de afetação da Lei Federal nº 10.931/2004, na Lei Federal nº 4.591/1964. Coutinho (2008) coloca que patrimônio de afetação se refere ao regime pelo qual o terreno e as acessões objeto da incorporação imobiliária mantêm-se separados do patrimônio do incorporador. Com isso, quem adquire passa a ter maior segurança jurídica no negócio, inclusive em caso de falência do incorporador. Enquanto a alienação fiduciária confere maior segurança ao credor, a norma sobre o patrimônio de afetação confere maior segurança ao adquirente, o que permitiu maior confiança no sistema financeiro.

Outro ponto diz respeito à recuperação do FGTS e do SBPE em 2005, fontes tradicionais de financiamento de consumo e da produção habitacional, permitindo o aumento de recursos disponíveis para a produção imobiliária, podendo ser direcionada também para a população de baixa renda, que levou, por sua vez, ao crescimento de empresas especializadas nessa faixa de renda, ou setor econômico, como passou a ser identificado, diversificando os investimentos (RUFINO, 2012).

Mas o principal fator nesse contexto de consolidação do processo de financeirização se trata do próprio cenário de crescimento econômico bastante favorável, observado a partir dos anos de 2004. Segundo dados do IBGE, a média da taxa anual de crescimento do PIB entre 2004 e 2013 foi de 3,8%, sendo somente em 2004 a taxa anual de crescimento igual a 5,2%.

23 A alienação fiduciária é a transferência da posse de um bem móvel ou imóvel do devedor ao credor para garantir o cumprimento de uma obrigação. Ocorre quando um comprador adquire um bem a crédito.

Para fins de comparação, Magalhães et al. (2011) aponta que nas duas décadas anteriores (1983- 2003), esta média tinha sido de 2,4%. Segundo Mattos (2007), na medida em que as nações estabilizam e modernizam suas economias, tornam-se lugares seguros para os investimentos globais.

Cardoso e Aragão (2011) apontam que a partir daquele crescimento econômico no Brasil proporcionou-se maior confiabilidade entre investidores e, por conseguinte, ampliação das reservas – também atreladas à ampliação de exportação de commodities (CARDOSO; ARAGÃO, 2013). De modo que no referido período, entre 2004 e 2013, que se pode falar em euforia do capital, citando De Souza e Cavalcanti (2013), observou-se a ampliação dos investimentos no mercado imobiliário brasileiro, com a abertura do capital de incorporadoras na bolsa de valores, baseada na teoria de que os preços imobiliários investidos continuariam em alta, atraindo inclusive construtoras voltadas para baixa renda conforme citado. Ressalta-se, além disso, para esse período entre 2004 e 2013, o aumento de renda de uma camada da população e/ou de acesso ao crédito, o que viria a expandir o mercado consumidor e garantir a solvabilidade da demanda.

Ao mesmo tempo, é importante ressalvar que o contrário também é verdadeiro, na medida em que as economias se desestabilizam, as nações tornam-se lugares inseguros, como já foi abordado neste capítulo sobre os ciclos econômicos. Ainda que se vivencie uma mudança no cenário econômico brasileiro, observada a partir de 2014, que culminou em 2015, entende- se a relevância desse estudo de confluência entre setor financeiro e mercado imobiliário, haja vista que houve uma intensa produção nessa década. Carvalho (2015, p. 14) aponta que:

O fim do ‘superciclo das commodities’, entre os anos de 2002 e 2012, penalizou a economia brasileira pela queda no preço de seus produtos de exportação. A economia mundial manteve seu ritmo baixo de crescimento, influenciando o desempenho da economia doméstica. As dificuldades fiscais do Governo Federal foram ampliadas pela retração nos investimentos privados, pelas denúncias de corrupção e pelo ano eleitoral [...] O setor da construção civil que, por mais de uma década, vinha trabalhando a todo vapor, entrou em desaceleração.

Sobre essa aproximação entre capital financeiro e produção imobiliária, Arantes (2004) inclui também a transformação na forma de adquirir o produto imobiliário, demonstrando modificação da figura do proprietário, uma vez que se torna melhor acessar que ser somente proprietário, a posse de um capital físico passa a ser mais um estorvo do que um ativo produtivo. Afirma o referido autor, que a troca entre comprador/vendedor está sendo substituída pelo acesso em curto prazo, em uma relação entre servidores e clientes, ampliando os procedimentos de locação, concessão, direito de admissão, adesão, de modo que aquele que oferta continua tão proprietário quanto antes.

Segundo Harvey (2013) os papéis dos agentes econômicos foram redefinidos, nesse atual sistema de circulação do capital no ambiente construído, os proprietários são os que recebem renda, os promotores imobiliários recebem os incrementos da renda, os construtores recebem os lucros da empresa, o sistema financeiro proporciona o capital-dinheiro em troca de juros – como já abordado - e o Estado se utiliza dos impostos presentes e futuros, abordagem essa que ainda será melhor discutida nas próximas seções.

E o produto dessa imbricação entre capital financeiro e setor imobiliário na escala urbana local tem sido muitas vezes cristalizados em grandes projetos urbanos, em processos de enobrecimento de áreas, bairros, competição entre cidades e coalizões para o crescimento (AALBERS, 2015).

A fim de ampliar a compreensão dessas reformulações, essa seção subdivide-se a seguir, para demonstrar como o poder público, o setor privado e a crescente parceria entre ambos tanto se apropriam dessa aproximação entre capital financeiro e produção imobiliária, quanto buscam meios ora para incentivar a manutenção, ora para restabelecer o quadro econômico crescente a fim de evitar que os aportes de capital sejam retirados.