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3 D INÂMICAS IMOBILIÁRIAS DE EXPANSÃO E DE VALORIZAÇÃO REESTRUTURANDO O ESPAÇO URBANO

3.2 Valorização imobiliária e reestruturação do espaço urbano no contexto da financeirização

3.2.1 O valor da terra urbana a partir da teoria da Renda da Terra

Entendendo a importância crescente que o espaço urbano assume enquanto mercadoria consumível neste cenário recente, é relevante salientar antecipadamente, que se trata de uma mercadoria diferenciada das demais, em que o seu processo de valorização não é oriundo diretamente de uma forma de trabalho, de uma produção em si, mas das formas de apropriação e uso dessa mercadoria e, por isso, faz-se necessário melhor entender de onde vem e como se dá o valor da terra urbana.

A busca pela compreensão da formação de preço da terra se deu ainda no século XVIII com Adam Smith, David Ricardo e James Anderson, fundando teorias da renda da terra. Ainda que se acredite que o tema da renda da terra envelheceu28, sobretudo, porque os estudos se debruçavam sobre questões vinculadas à produção agrícola sobre a terra e sua fertilidade, há ainda a necessidade de explorar maiores reflexões relacionadas à especificidade do produto terra urbana e fatores como terra-localização, valor e preço da terra urbana.

As teorias fundamentais da renda da terra nasceram a partir da percepção da particularidade da terra no cenário capitalista que se cristalizava, uma vez que a terra não era vista como um produto do trabalho humano, por estar presente na natureza e ter, inclusive, um estoque limitado, precisava-se compreender como então poderia ter um preço e ser trocada

27 Compreendendo que não só a economia é o agente indutor das transformações, como já debatido, mas que essa tem tido seu campo de ação ampliado e que produz mudanças nas relações sociais e políticas e todas essas mudanças refletem e são refletidas pelo espaço urbano, por meio de relações imbricadas e não unívocas. De acordo com Chesnais (2005) a predominância que a economia parece ter sobre todas as outras esferas da vida social se acentua significativamente no contexto da mundialização capitalista contemporânea, baseada no capital financeiro. 28 Villaça (2012) salienta que as preocupações sociais do século XX e XXI são diferentes das discutidas no século XIX, quando das primeiras contribuições para a formulação do conceito. Além disso uma das facetas da renda da terra ligada à propriedade da terra e à produção rural, em que existia uma classe social vinculada a essas propriedades de fato envelheceu. A importância dos estudos se dava por aquelas terras estarem associadas à produção agrícola e se discutia quais terras eram mais férteis e, portanto, capazes de produzir mais.

como mercadoria se não possuía valor29. As principais contribuições daqueles autores dessas teorias apontaram, então, que o preço surgia em virtude do que se era produzido na terra, cada produto cultivado teria um preço, que seria comercializado e influenciaria no preço da terra (Adam Smith), considerando inclusive a fertilidade da terra (James Anderson) e o trabalho envolvido, analisando a diferença entre produtos obtidos mesmo sob quantidades iguais de trabalho e capital – que originou o conceito renda diferencial30 (David Ricardo) (WARD; AALBERS, 2016).

Anos mais tarde, no século XIX, Karl Marx revisa toda a discussão e incorpora para a análise o tempo social do trabalho realizado sobre a terra e o monopólio da renda, em que se considera que o que produz a renda na terra mais fértil não é a apropriação de uma força natural que torna mais produtiva a força de trabalho, mas a apropriação de uma força natural que não está à disposição de todo o capital investido, mas somente daquele que detém certos terrenos (HARVEY, 2013; PAULANI, 2016). Com isso, definia a existência de mais dois tipos de renda: a absoluta e a de monopólio. A absoluta se daria quando, por decisão entre proprietários de grandes quantidades de terra, optassem em não as colocar à disposição da produção até que os preços de mercado fossem satisfatórios. Já a de monopólio se configura quando parte da sociedade se dispõe a pagar preços elevados aos praticados no mercado, em busca de adquirir aquele terreno específico, em face da localização e/ou atributos naturais que possa existir (HARVEY, 2013).

Além disso, Marx apontou que existiam dois tipos de renda diferencial: uma relacionada ao aumento da produtividade atribuída a características inerentes à terra, oferecidas pela sua própria natureza31; e outra atribuída a investimentos sobre a terra (WARD; AALBERS, 2016).

Sinalizando, assim, que um terreno hoje percebido como uma localização ruim poderia se valorizar no futuro.

Posteriormente, Harvey (2013) acrescenta classe e poder no debate da teoria da renda e afirma que o poder do privilégio do monopólio não adiantaria se não fosse o fato de a terra ser uma condição de produção em geral necessária e, portanto, disputada por determinadas classes que detêm mais ou menos poder – ao tempo que a classe de proprietários de terras, juntamente

29 Conforme os conceitos clássicos de Valor, sobretudo por Marx, o valor é obtido em função da quantidade de trabalho socialmente para produção ou reprodução e trocas de mercadorias (HARVEY, 2013). Como se entendia que a terra não era produto do trabalho humano, logo, não poderia gerar valor.

30 O Conceito trabalho, por Ricardo, que acreditava ser essa a única forma de renda trazia luz a fertilidade da terra e também sua distância do mercado em que seria comercializada, impactando no preço do produto final (WARD; AALBERS, 2016).

31 Smolka (1979) salienta que o terreno é um ente singular em que seus atributos não se repetem, proporcionando diferenciação na forma de apropriação e uso deste produto.

com as instituições, cria escassez artificial, mantendo terras fora do mercado por um lado, e criando exclusividade no uso da terra por outro. De modo que, em síntese, tem-se hoje que a renda se refere a um pagamento feito aos proprietários da terra pelo direito de acessá-la e utilizá- la, gerando então uma disputa pelo acesso a determinadas porções da terra mais que a outras.

Dessa forma, a teoria da renda consegue explicar como a terra – não sendo um produto do trabalho humano – pode ter um preço e ser trocada como mercadoria32. Harvey (2013, p. 471) coloca que “a renda fundiária capitalizada como o juro sobre algum capital imaginário constitui o “valor” da terra. O que é comprado e vendido não é a terra, mas o direito à renda fundiária produzido por ela”. Neste caso, o comprador adquire o direito sobre as receitas futuras de maneira antecipada, direito este que se torna uma forma de capital fictício.

Com isso, Harvey (2013) aponta que a terra deve ser tratada como capital fictício, deve ser um campo aberto para a circulação de capital que rende juros, pois somente assim a contradição entre a teoria do valor e a da renda pode ser superada. De acordo com Paulani (2016), dessa maneira permite-se a coordenação do processo de utilização da terra, a fim de garantir os melhores e mais lucrativos usos, maximizando a produção de valor excedente com investimentos em infraestrutura. Nessa conformidade, os proprietários da terra podem impor novas configurações à produção na terra, a fim de capturar as rendas mais diferenciadas, o que tem sido intensificado em um contexto de economia sob a lógica de acumulação financeirizada. Nesse cenário, há uma transformação nos agentes sociais responsáveis pela produção em que as próprias incorporadoras33 passaram a ser também grandes proprietárias de terrenos,

de modo a transformar o valor da terra em uma fonte significativa de ganho para o capital imobiliário, que antes se assentava apenas sobre o lucro alcançado a partir do uso de mão de obra barata (COSTA; MENDONÇA, 2011).

32 Para outros autores, tais como Villaça (2012) e Gottdiener (2010), dentre outros, a terra urbana é sim vista como integrante do espaço urbano socialmente produzido e, por isso, fruto do trabalho humano, tendo, portanto, um valor. O valor da terra urbana envolveria então outros dois valores: o valor da edificação em si – o qual depende do custo da construção; e o valor da localização na malha da cidade. Apesar das diferentes visões, observa-se que os autores chegam a pontos comuns, no que se refere à importância da localização e dos investimentos realizados sobre a terra, sobretudo, quando Harvey acrescenta para a teoria as relações de classe e poder. Nesta tese, então, considera-se que embora a terra não se sujeite a muitas das características que explicam a dinâmica do mercado, ela é uma mercadoria singular, controlada por agentes sociais e que obedece a uma lógica de funcionamento que depende dos interesses de quem a detém e de quem a quer utilizar.

33 Neste ponto, Smolka (1979) salienta a importância do capital incorporador, que viabiliza a valorização pela incorporação imobiliária e o consequente ganho para o capital imobiliário. O capital incorporador é aquele que investe em rendas fundiárias, criando e ampliando as bases sobre as quais as rendas da terra serão apropriadas, articulando-se para tanto, com o sistema financeiro e como o Estado em suas intervenções no ambiente construído. Está envolvido desde a compra de terrenos até a contratação de consultores, construtores, agentes financeiros e os responsáveis pela comercialização final de imóveis, além de alterar atributos dos terrenos para reequipá-los (SMOLKA, 1979).

Além disso, há aqueles que preferem apenas utilizar a terra, que ser proprietário, como colocado por Arantes (2014) e debatido no segundo capítulo, nessa situação ele também paga com vistas a alcançar a renda fundiária produzida, ou participar dos dividendos obtidos, mas sem deter o estorvo da fixação que a terra sugere, mantendo fluido seu investimento a partir da titularização daquele investimento, questionando a absolutização da propriedade da terra34 – o

monopólio, que ora retira a terra do mercado, até o mesmo se estabilizar e oferecer os ganhos pretendidos, mas que enquanto isso não acontece, o proprietário também não acumula nenhuma renda. Enquanto aquele que investiu, apenas acessou a terra como ativo financeiro, pode retirar seu investimento mantendo a fluidez do seu capital que não está afixado.

Assim, o que há de novo na discussão da teoria da renda da terra (cada vez mais urbana) é a necessidade de entender a enorme concentração de capital no setor de terras, a intensificação da desabolutização da propriedade, a multiplicidade de novos usos que surgem, a velocidade com que se modificam as demandas de determinada área, e com isso, a volatilidade do valor, que pode super valorizar e se desvalorizar em um curto espaço de tempo; além das implicações da tendência da terra, como ativo financeiro, em que a corrida pelos lucros, tanto os que serão reinvestidos, mas, sobretudo, os que serão distribuídos (dividendos) assume uma visibilidade maior que a produção em si, revelando o perigo da intensificação da especulação e as crises inerentes ao capitalismo financeiro, como visto no segundo capítulo.