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2 D A FINANCEIRIZAÇÃO DA ECONOMIA A RECONFIGURAÇÃO DO MERCADO IMOBILIÁRIO

2.1 A financeirização da economia

2.1.3 O papel do Estado no processo de financeirização

Estado e mercado encontram-se imbricados nesse processo. Nunes (2012) afirma que ambos são instituições que não apenas coexistem como são interdependentes, construindo-se e reformando-se um ao outro em suas relações de interação. Segundo Carnoy (1988), o Estado cresceu em importância à medida que as economias foram se desenvolvendo em todo o mundo, da sociedade industrial avançada à exportadora de bens primários do Terceiro Mundo, e em

todos os aspectos dessa sociedade – não apenas político, como econômico (produção, finanças, distribuição), ideológico (educação escolar, os meios de comunicação) e quanto à força legal (polícia, forças armadas). De modo que se faz necessário discutir essas mudanças e responsabilidades do Estado nesse processo de financeirização da economia.

Parte-se do entendimento de que o Estado se refere a uma instituição de natureza histórico-cultural, fundada pelo homem, que regula as relações sociais, visão esta trazida por Marx. E concorda-se com Dantas (2008), quando afirma que o Estado nem sempre existiu e tampouco sempre existirá, o diferenciando, portanto, de organização política, esta sim sempre presente. Com isso, ressalta-se a relevância de compreender melhor o Estado, e sua imbricação com a com a organização política e com a economia12.

A revolução capitalista produziu uma grande reforma nas características da organização política de até então. De acordo com Bresser-Pereira (2010, p.3-4):

No plano econômico, a revolução capitalista deu origem ao capital e às demais instituições econômicas fundamentais do sistema – o mercado, o trabalho assalariado, os lucros, o desenvolvimento econômico. No plano social surgem as três novas classes sociais: a burguesia, os trabalhadores assalariados e, em uma segunda fase, a classe profissional. No plano político, a revolução deu origem ao Estado Moderno, inicialmente, sob a forma de Estado Absoluto, e, em seguida, de Estado Liberal e finalmente o Estado Democrático, ao mesmo tempo em que se definem sucessivamente os grandes objetivos políticos e as respectivas ideologias das sociedades modernas: a liberdade e o liberalismo, a autonomia nacional e o nacionalismo, o desenvolvimento econômico e a racionalidade instrumental ou o eficientismo, a justiça social e o socialismo, e a proteção da natureza e o ambientalismo.

Funda-se o Estado-Nação, também chamado de Estado nacional ou ainda Estado territorial soberano, que se traduz no conjunto composto por uma nação, um Estado e um território e conforme exposto, organiza-se com vistas ao desenvolvimento econômico13, que se transforma na sua fonte principal de poder e legitimidade (BRESSER-PEREIRA, 2010). Mas, ressalta Carnoy (1988) que durante o século XIX o papel do Estado nas sociedades capitalistas

12 Carnoy (1988), em estudo e análises sobre teorias políticas observa que para Marx e Engels, o Estado surge da contradição entre o interesse de um indivíduo e o interesse comum da coletividade, com a responsabilidade de organização da sociedade, podendo recorrer inclusive à força, independente de estrutura de classe específica. Enquanto que identifica que Hegel, Hobbes, Locke e Rousseau encaravam o Estado como representante da “coletividade social”, para Marx o Estado seria um instrumento de dominação de classes na sociedade capitalista, de modo que ele não estaria acima dos conflitos, mediando eles, mas profundamente envolvido nos mesmos. O que se justifica, uma vez que o Estado é formado pela própria sociedade. E esclarece que não é o Estado que molda a sociedade, e sim a sociedade que molda o Estado que, por sua vez, é moldada pelo modo dominante de produção e das relações de produção inerentes a esse modo.

13 “Definido como processo histórico autossustentado de acumulação de capital com incorporação de progresso técnico e melhorias dos padrões de vida materiais [...] O Estado continua a desempenhar o papel de coordenador geral do sistema social, mas agora, no quadro do Estado-nação, o mercado passa a ter um papel auxiliar importante na coordenação econômica ou na alocação de fatores de produção (BRESSER-PEREIRA, 2010, p. 9)

era ao mesmo tempo significativo, mas relativamente limitado. Uma vez que até os anos 1830 a força propulsora das sociedades capitalistas centrava-se na produção da empresa privada.

Nessa perspectiva, revelam-se as contradições intrínsecas ao Estado Moderno: a ele cabe a responsabilidade de garantir a propriedade e os contratos, mantendo a ordem capitalista com vistas ao desenvolvimento econômico, ao tempo, em que precisa atender os interesses de uma massa de eleitores cujos interesses se identificam com o bem comum ou interesse público sem afetar as liberdades individuais (BRESSER-PEREIRA, 2010).

No início do século XX, percebe-se o declínio da democracia liberal, que pregava a não intervenção do Estado nas questões econômicas, cabendo ao mesmo regular e observar a adequabilidade aos marcos legais. O Estado vai assumir caráter mais intervencionista durante o já citado regime de acumulação fordista, responsabilizando-se sobre vários setores de serviços, como saúde, educação e habitação, até apresentar sinais de esgotamento dos fundos públicos na década de 1970.

Conforme exposto, as mudanças nos modos de produção e nos consequentes regimes de acumulação implicam em reformulações nas relações entre Estado e mercado, de modo que com o advento da globalização em sua fase recente e o retorno às ideias de liberdade individual e autonomia com o neoliberalismo, o Estado abandona várias funções assumidas, principalmente a partir de 1930, e se reorganiza para lidar com a economia globalizada, seguida por uma crescente lógica de acumulação financeira (DANTAS, 2008).

No novo cenário, Harvey (2011, p.161) aponta que o sucesso do Estado – tanto nacional, como local – passa a ser medido pelo “grau em que capta os fluxos de capital, cria as condições favoráveis à acumulação do capital dentro de suas fronteiras e garante uma elevada qualidade de vida diária a seus habitantes”. Com isso, abrem-se as competições entre Estado em busca dessa captação de maior volume de capital. Neste contexto, o papel do Estado torna-se cada vez mais ambivalente, revelando-se mais intensamente as suas contradições.

Harvey (2013) sugere que se unificam os interesses entre os capitalistas industriais, capitalistas financistas e parte do aparato do Estado, que passam a participar da mesma maneira e com interesses semelhantes da circulação de capital que rende juros, ou seja, visando o lucro. Acrescenta-se, ainda, citando Hilferding, que a unidade entre o capital industrial e bancário é conseguida dentro do Estado-Nação, de modo a revelar novos problemas, porque as finanças internacionais são às vezes de base nacional, mas às vezes, supranacional em sua forma de organização, demandando a interação de bancos centrais de diferentes nacionalidades para lidar com determinadas questões (HARVEY, 2013).

Mas a ambivalência no papel do Estado se reflete mais fortemente a partir de um dos princípios pragmáticos que surgiu na década de 1980, conforme cita Harvey (2011), o de que o poder do Estado deve proteger as instituições financeiras a todo custo, sendo a política: privatizar os lucros e socializar os riscos das pessoas, as quais se tornam os consumidores por excelência, fonte de lucro dessa lógica financeira.

Quando o sistema financeiro entra em crise, quando a liquidez se acaba e as empresas são empurradas para a falência, na ânsia em salvar o sistema se recorrem às desvalorizações, que costumam a atingir de maneira mais intensa o bem-estar social, uma vez que são as políticas e instituições sociais que perdem a prioridade (HARVEY, 2005b). Contrariando, assim, os princípios de interesses da coletividade.

Nesse sentido, observa-se que o Estado assume novos interesses, adequa seu papel, mas de certo modo mantém suas contradições entre o interesse do indivíduo e o da coletividade, já observados na origem do Estado Moderno, mas que talvez se acentua, prevalecendo os interesses privados. Lenin (apud HARVEY, 2013) afirma que isso se deve a força do capital financeiro em suas relações econômicas, pois é capaz de sujeitar a si mesmo, até mesmo Estados com maior independência política.

Ou seja, o Estado muda de uma posição entre controlador e controlado nesse processo de circulação do capital, de maneira que essas polaridades variam de acordo com a circunstância. Mesmo sendo a base para o controle estratégico do capital financeiro e da interação entre o capital bancário e industrial, o capital financeiro vem se demonstrando autônomo para circular de modo a direcionar Estados-Nação para a sua finalidade (HARVEY, 2013).

Harvey (2005b) chama atenção para se observar que o processo atual se assemelha às condições estabelecidas no início do capitalismo, por meio da acumulação primitiva. As inovações financeiras, o próprio sistema de crédito, a securitização dos ativos financeiros, podem levar a valorizações fraudulentas de ações, esquemas falsos de enriquecimento imediato, destruição de ativos por meios de inflação, além da chamada “destruição criativa do espaço”14.

E o poder do Estado estaria sendo usado com frequência, assim como anteriormente já o foi, para impor processos mesmo que contrários aos interesses da coletividade, podendo levar inclusive a perda de direitos outrora adquiridos.

Nesse sentido, Paulani (2010) salienta que o capitalismo rentista, aqui entendido como capitalismo financeiro, é o avesso da ausência do Estado, e lembra que na época da acumulação

primitiva quando os Estados nacionais se formavam como grandes negócios e a acumulação capitalista passava pelo poder desses Estados. Mas como já ficou claro, estabelece-se uma relação contraditória de autonomia entre o Estado e o sistema financeiro. Contradições de papel do Estado que se somam as contradições da própria circulação do capital financeiro, intensificando as já conhecidas crises do capitalismo, as quais são abordadas na seção seguinte.