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A confluência de interesses dos atores internos e externos na “reforma”

Capítulo 2 A formação do Brasil como um país de capitalismo dependente

2.4 Reforma universitária consentida: refuncionalização da universidade segundo

2.4.1 A confluência de interesses dos atores internos e externos na “reforma”

A conhecida reforma do ensino superior foi de início uma bandeira do movimento estudantil posteriormente incorporada pelo governo e seus representantes, contando com o auxílio de atores externos para a sua formulação (CUNHA, 2007c).

Embora o processo de modernização nessa área já estivesse em curso é necessário destacar o seu aprofundamento no período autocrático burguês e a participação ativa dos consultores externos e dos convênios MEC-Usaid (United States Agency for International Development) (NETTO, 2002).

No período anterior ao golpe de 1964 a influência das universidades norte- americanas era mais reduzida aparecendo por meio do retorno dos bolsistas, dos contratos de assistência técnica e financeira e da USAID. O ensino primário era o que recebia maiores atenções sendo poucos os recursos destinados ao ensino

superior157 (CUNHA, 2007c).

157 “No período 1945-66, dos 65,2 milhões de dólares destinados pela USAID ao setor educacional no

Brasil, 57,4 foram aplicados no ensino primário e apenas 5,5 no ensino superior. Essas quantias não incluem os gastos com bolsas de estudo, mas abrangem os salários de funcionários norte- americanos que trabalhavam no Brasil, nos projetos através dos quais os recursos foram transferidos às instituições brasileiras” (BRASIL, 1969, apud CUNHA, 2007c, p. 155, 156).

Contudo, após 1964 as agências estrangeiras desenvolveram programas maiores e articulados com o ensino superior, sendo o MEC responsável pela contratação de consultores norte-americanos para assistir o governo brasileiro na "reforma" do ensino superior (CUNHA, 2007c).

A influência da USAID a partir de 1964158 aconteceu principalmente em decorrência

da atuação do Higher Education Team, um grupo de 4 norte americanos que chegou

ao Brasil em março de 1964159 para opinar sobre a conveniência ou não da USAID

organizar um programa voltado especificamente para o ensino superior. Esse grupo produziu um relatório (o Gardner Report) defendendo que a agência (USAID) apoiasse o planejamento da "reforma" do ensino superior no Brasil (CUNHA, 2007c).

Segundo Cunha (2077c) as razões político-ideológicas para o maior envolvimento da USAID com o ensino superior estavam relacionadas com o fato de que “a chave para que o Brasil permanecesse uma 'sociedade livre' e um 'amigo próximo' dos Estados Unidos estava no ensino superior, pois o que os brasileiros pensariam nas gerações vindouras dependeria dos professores universitários que formam os dirigentes do país e os próprios mestres” (CUNHA, 2007c, p. 158). Contudo, antes que as sugestões fossem incorporadas pelo governo o regime ditatorial se

empenhou na repressão às universidades160 por meio de censuras, da implantação

de agências de segurança dentro das instituições e até mesmo da violência física

contra professores e estudantes.

De todos os acordos feitos entre a USAID e o MEC sobre o ensino superior, Cunha (2007c) destaca dois importantes projetos: um datado de 1965 que visava organizar uma equipe de assessoria ao planejamento do ensino superior, reunindo técnicos

brasileiros e norte-americanos (conhecido como o Convênio MEC-USAID)161; e o

158

Várias foram às manifestações contrárias à participação da USAID na reformulação do ensino superior. Essas reações se intensificaram em 1967 em virtude do aguçamento das emoções frente aos protestos mundiais, a exemplo do protesto contra a presença das Forças Armadas dos Estados Unidos no Vietnã (CUNHA, 2007c).

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Esse grupo chegou ao Brasil antes mesmo do golpe civil-militar de 1964.

160

Cunha (2007c) relata que em 1965 houve uma grande repressão na Unb resultando no protesto de 210 professores que entregaram seus pedidos de demissão.

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Em junho de 1965 foi firmado um convênio entre o MEC (através da Diretoria do Ensino Superior) e a USAID para a constituição da Equipe de Planejamento do Ensino Superior (EPES) formada por

que pretendia modernizar a administração das universidades pelo envio de consultores norte americanos, pela concessão de bolsas de estudo nos EUA e outras atividades.

Rudolph Atcon162 também teve um papel central entre os atores externos que

atuaram no sentido da "reforma" universitária. Em seu relatório (conhecido como Relatório Atcon) o consultor sugeria que as universidades brasileiras deveriam fazer sua reforma administrativa baseada nos princípios da eficiência da empresa privada adotando princípios tayloristas. Para ele a universidade deveria ser legalmente independente e privada. Nesse mesmo relatório foi proposta a criação de um

Conselho de Reitores das Universidades brasileiras (CRUB)163(CUNHA, 2007c).

Em seu relatório, Atcon evocava a autonomia universitária em uma perspectiva de entrelaçamento da universidade ao mercado. Vejamos alguns fragmentos de seus escritos:

[...] antes que essa autonomia institucional possa ser implantada com realismo e eficácia, a própria universidade tem que sofrer modificações administrativas para desenvolver mecanismos de controle internos, que lhe permitam exercer, com juízo e segurança, uma independência acadêmica e

membros brasileiros e norte-americanos, cujo trabalho teria duração de 2 anos. À EPES competia ações muito amplas. Essa equipe deveria confrontar a realidade diagnosticada do ensino no Brasil com o ideal de ensino superior para o país, definindo a direção da transformação segundo as necessidades brasileiras, além de fazer sugestões sobre os currículos, métodos didáticos e programas de pesquisa, estrutura da instituição, dentre outras. De acordo com Cunha (2007c) a equipe do EPES não teve tempo de fazer quase nada, principalmente em decorrência da demora na escolha dos nomes que deveriam integrar a equipe, sendo que esta atividade foi “atropelada” por um novo convênio em maio de 1967 instituindo a Equipe de Assessoria ao Planejamento do Ensino Superior (EAPES). Enquanto a EPES era composta por brasileiros e americanos a EAPES era composta apenas de quatro educadores brasileiros, os mesmos que integrariam o grupo permanente de Planejamento da Diretoria do Ensino Superior do MEC. Contudo, a EAPES não atuava sozinha, ela poderia contar com assessores norte-americanos contratados pela USAID. Embora a EAPES devesse funcionar até junho de 1969, seu fim aconteceu um ano antes em decorrência das reações contrárias à interferência da USAID. Contudo, a partir das atividades realizadas foi elaborado um relatório datado de 1968 onde constava uma parte escrita pelo grupo brasileiro e uma parte pelos assessores norte-americanos. Com relação à parte escrita pelos brasileiros, Cunha (2007c) ressalta que eles demonstraram a necessidade do aumento de vagas nas instituições de ensino superior e, afirmaram que o estudante que tivesse recursos, deveria pagar pelo ensino público nas escolas oficiais, além de outras questões. Já os participantes norte-americanos destacaram: a questão dos excedentes, a falta de flexibilidade das universidades e o controle centralizado ao nível federal, dentre outros.

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Rudolph Atcon foi um consultor norte-americano contratado em junho de 1965 pela Diretoria do Ensino Superior do MEC para propor as alterações que julgasse necessárias para as universidades (FÁVERO, 2006). Cunha (2007c) afirma que havia uma articulação entre Atcon e os consultores da USAID.

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A criação do Conselho de Reitores foi aprovada no VII Fórum de Reitores ocorrido no Rio de Janeiro em 1966. Este deveria ser formado pelos reitores como indivíduos e não pelas universidades como entidades jurídicas. Seria mantido pela contribuição das universidades e por doações e atuaria na realização de estudos na área. O primeiro presidente foi Miguel Calmon da Universidade Federal da Bahia e tinha Atcon como secretário executivo (CUNHA, 2007c).

financeira que no momento não existe, por estar tudo controlado, em última instância pelo Poder Executivo do Estado (ATCON, 1966, p.13). [...] que se conceda um maior grau de autonomia à instituição. Uma reforma administrativa, que se dirigisse exclusivamente à relativa melhoria dos procedimentos vigentes [...] um planejamento dirigido à reforma administrativa da universidade brasileira, no meu entender, tem que se dirigir ao propósito de implantar um sistema administrativo tipo empresa privada e não do serviço público. [...] porque é um fato inescapável de que uma universidade autônoma é uma grande empresa e não uma repartição pública (ATCON, 1966, p. 82).

Nesta mesma direção em 1968 o general Meira Mattos, a convite do Presidente da República, criou uma comissão incumbida de “estudar e propor soluções para o bloqueio das atividades do movimento estudantil” (MACHADO, 2006, p. 02). Ao fim de três meses (de janeiro a abril de 1968) surgiu o Relatório Meira Mattos. Esse relatório, além de trazer medidas repressivas ao movimento estudantil, também apontou medidas propiciadoras da expansão e modernização do ensino superior (CUNHA, 2006c).

O Relatório Meira Mattos apontava para a supressão da gratuidade do ensino superior público; a transformação das universidades em fundações; criticava a autonomia administrativa e disciplinar das universidades instituída pela Lei de Diretrizes e Bases de Educação Nacional de 1961; argumentava em favor da limitação do poder do Conselho Federal de Educação (CFE); propunha a reforma da estrutura do Ministério da Educação; problematizava até os valores altos cobrados pelos cursinhos.

Os documentos produzidos pelos atores externos de fato contribuíram para a formulação da lei 5.540/68. Essa lei é um marco, tanto que, para Netto (2002) a política de educação teve dois momentos no período ditatorial: um entre 1964 e 1968 (em que a ditadura operou um esforço para erradicar as experiências democratizantes) e outro a partir de 1968/69 no qual houve uma intervenção com vistas a modelar o sistema de ensino conforme as exigências do projeto "modernizador".

Para a formulação da lei 5.540/68 foi instituído no MEC, por meio do decreto nº 62.937/68 do presidente Costa e Silva, “um grupo de trabalho composto de onze membros, a serem designados pelo Presidente da República” (CUNHA, 2007c, p.

220). Esse grupo de trabalho (GT) deveria estudar a "reforma" universitária em um prazo de 30 dias.

O GT da Reforma Universitária (ou GTRU) contou com Seminários e fóruns realizados pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) no qual foram estudados o Relatório Atcon e o Relatório Meira Mattos que influenciaram o projeto de Lei da Reforma Universitária (GHIRALDELLI JÚNIOR, 2009).

O GT da Reforma Universitária organizou um relatório164 completamente imbuído

pela ideia da racionalização que segundo Cunha (2007c, p. 236) “é o princípio básico da reforma universitária proposta, dela derivando as demais diretrizes: eficiência, eficácia, produtividade”. Nesse relatório havia também a preocupação em eliminar a existência dos excedentes, mas também conter a expansão das vagas, uma vez que se o aumento da formação de profissionais não encontrasse correspondência no mercado de trabalho, esses insatisfeitos poderiam se transformar em importantes agitadores da ordem.

Dentre as várias críticas realizadas por Fernandes (1975) ao GTRU há de se destacar: a proposta de organização da universidade em fundações sugerindo a integração de docentes e pesquisadores como consultores das empresas privadas; a cobrança de mensalidades nas instituições superiores de ensino públicas e a instituição do regime de bolsas para alunos carentes em instituições privadas; e, apesar da extinção das cátedras o GTRU não avançou no que diz respeito às condições de trabalho dos docentes mantendo o tempo parcial de trabalho, recomendando também o fim da estabilidade no serviço público.

Em seguida, “o anteprojeto de lei foi retocado pelo governo e enviado ao Congresso, onde sofreu toda a sorte de emendas em razão dos grandes e contraditórios interesses” (CUNHA, 2007c, p. 219) o que deu origem a lei 5.540 promulgada em 28 de novembro, apenas 15 dias antes do AI 5, que sufocou as fortes resistências que poderiam surgir.

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O GT instituído em junho de 1968 apresentou no prazo de um mês um relatório e anteprojetos de lei culminando na lei de reforma universitária (CUNHA, 2007c).

A lei nº 5.540/1968 reconhecia a autonomia didático-científica, disciplinar, administrativa e financeira das universidades, mas, ao mesmo tempo limitava esses princípios por meio de alguns de seus dispositivos ou através dos atos de exceção e da prática política ditatorial, a exemplo do AI-5. A autonomia universitária prevista no artigo 3º era semelhante ao artigo 80º da lei nº 4.024/1961 (LDB), porém, se diferenciava ao expor que a autonomia seria exercida na forma da lei e de seus estatutos, ao contrário da LDB onde a autonomia seria exercida somente na forma dos estatutos, não contendo a palavra lei. O parecer nº 514/1969 do Conselho Federal de Educação reconheceu a omissão da lei nº 5.540/1968 no que tange à regulamentação da autonomia universitária e indicou que a fixação deste princípio seria feito pelos estatutos até que novas normas sobre esse assunto fossem baixadas. No entanto, as normas que se sucederam a este episódio foram instituídas na perspectiva de controle e contenção da autonomia universitária. Dois exemplos desse controle podem ser observados no Decreto nº 68.065 de 1971 que tornou obrigatório o ensino da disciplina “estudo de problemas brasileiros” nas universidades sem levar em consideração a autonomia didático-científica e a lei nº 6.420 de 1977 que alterou o 16º artigo da lei nº 5.540/1968 determinando a apresentação de listas sêxtuplas para a escolha dos dirigentes das escolas oficiais (FÁVERO, 1997; RANIERE, 2013). Em adição, Ghiraldelli Júnior (2009, p. 118, 119) aponta que:

A Lei 5.540/68 criou a departamentalização e a matrícula por disciplina, instituindo o curso parcelado através do regime de créditos. Adotou-se o vestibular unificado e classificatório, o que eliminou com um passe de mágica os excedentes, aqueles que, apesar de aprovados no vestibular, conforme a média exigida, não podiam efetivar a matrícula por falta de vagas. O chamado ‘problema dos excedentes’ – este era o jargão da época, na mobilização estudantil -, na verdade, ficou longe de ser resolvido, uma vez que a nova lei apenas usurpou o direito de matrícula dos estudantes já aprovados no vestibular. De fato, o problema do acesso ao ensino superior foi equacionado pela Ditadura Militar com o incentivo à privatização do ensino – na década de 1970 o governo colaborou com a abertura de cursos de terceiro grau de duvidosa idoneidade moral. [...] Os princípios de taylorização, presentes nas teorias de administração de empresas aninhadas nas mentes dos teóricos das AID e de brasileiros responsáveis pela reforma universitária, sustentaram a introdução da sistemática do parcelamento do trabalho na universidade. A 'racionalidade, a eficiência e a produtividade', desejadas em qualquer empresa – em função do que se introduziu o parcelamento do trabalho em consonância com o taylorismo ou variantes -, foram exigidas da universidade, desconsiderando-se as especificidades da educação e das atividades de ensino e pesquisa em geral.

A política educacional da ditadura no que tange ao ensino superior vivenciou o que Cunha (2007c) chamou de perspectiva de contenção: as medidas racionalizadoras impostas com a "reforma" universitária (departamentalização, regime de créditos, vestibular unificado, etc) propiciou não só uma economia de recursos, mas diminuiu o risco de criar um aumento do contingente de profissionais demandando

emprego165.

É nesse sentido que Fernandes (1975) aponta que a burguesia brasileira ao direcionar esse processo de "reforma", aliado à burguesia estrangeira, acabou dando feição a uma "reforma universitária consentida". Para o autor a burguesia “ao tomar uma bandeira que não era e não poderia ser sua, corrompeu a imagem da reforma universitária e moldou-a a sua feição” (FERNANDES, 1975, p.167). Assim, a reforma universitária consentida indicaria “o conjunto de reformulações conduzidas pelas classes dominantes brasileiras que não alteram, contudo, o padrão dependente de educação superior vigente em nosso país” (LIMA, s/d, p. 1).

A autocracia burguesa no que se refere à reforma universitária de 1968 concentrou- se em três importantes ações:

A primeira foi preparar uma reforma universitária que era uma anti-reforma, na qual um dos elementos atacados foram os estudantes, os jovens, os professores críticos e militantes. (...) Além disso, a ditadura usou um outro truque: o de inundar a universidade. Simulando democratizar as oportunidades educacionais no nível do ensino de terceiro graus, ela ampliou as vagas no ensino superior, para sufocar a rebeldia dos jovens, e expandir a rede do ensino particular (...). Por fim, um terceiro elemento negativo foi introduzido na universidade: a concepção de que o ensino é uma mercadoria. O estudante não saberia o valor do ensino se ele não pagasse pelo curso. Essa ideia germinou com os acordos MEC-USAID, com os quais se pretendia estrangular a escola pública e permitir a expansão do ensino comercializado (FERNANDES, 1989, p. 106).

165

No ensino médio ocorreu o que Cunha (1985 apud Netto, 2002, p. 63) denominou como perspectiva de liberação com a ampliação das matrículas e um direcionamento profissionalizante. Segundo Netto (2002, p. 63) “o saldo mais significativo, aqui, da política educacional da ditadura foi à acentuada degradação da rede pública, paralela a uma inédita escalada privatizante”. Netto (2002) aponta que a perspectiva de contenção e liberação eram ações que se imbricavam e que serviam ao processo de afirmação do regime autocrático burguês, pois, providenciava mão-de-obra qualificada e semiqualificada além de assegurar a existência do exército de reserva.

Capítulo 3 A contrarreforma do Estado: aprofundamento da condição