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2. O cuidado heideggeriano e a construção do conhecimento

2.4. A constituição ontológica do conceito de cuidado

O segundo momento é a consideração ontológica ou hermenêutica da elaboração do cuidado. Neste ponto importante, é elucidar o existencial da compreensão em que o cuidado se torna total porque revela a integralidade do ser.

A primeira parte a ser esclarecida é buscar um elemento relevante no problema do ser enquanto ser, pois é exatamente o que é procurado na analítica da pre-sença. E é aqui que

está sendo apresentada a procura da essência deste ser que é sendo. Quando Heidegger aborda o problema da essencialidade, percebe logo a necessidade de estabelecer uma estrutura ontológica para este ser que é sendo. Então, surge o Dasein, o ser que possui o primado ôntico e ontológico. Esse primado mostra a diferença que existe entre esse ser e outros seres, ou seja, a capacidade de compreender-se, como mostra o Ser e Tempo, nos parágrafos 3 e 4.

Contudo, na base desse primado ôntico-ontológico do Dasein, que é um primeiro momento, aparece a busca desse “ser enquanto ser” existente. No livro IV da Metafísica de

Aristóteles, para esclarecer essa base, diz:

Há uma ciência que investiga o ser como ser e os atributos que lhe são próprios em virtude de sua natureza. Ora, esta ciência é diversa de todas as chamadas ciências particulares, pois nenhuma delas trata universalmente do ser como ser. Dizem-no, tomam uma parte e dessa estudam atributos: é o que fazem, por exemplo, as ciências matemáticas. Mas, como estamos procurando os primeiros princípios e as causas supremas, evidentemente deve haver algo a que eles pertençam como atributos essenciais. Se, pois andavam em busca desses mesmos princípios aqueles filósofos que pesquisaram os elementos essenciais e não acidentais do ser. Portanto, é do ser enquanto ser que também nós teremos de descobrir as primeiras causas.145

Assim, a forma de ontologia proposta por Aristóteles é a procura pela causas in- causadas. E a essa forma de investigação denominou de “ser enquanto ser”, e o que Aristóteles antecipa é o conteúdo hermenêutico da compreensão. As variações dessa pergunta repercutiram na história: ser enquanto ser, ente enquanto ente e ser enquanto ente, mas tais variações responderam a uma história que o próprio Heidegger chamou de encobrimento do ser.

No entanto, o ser em questão agora é outro, quer dizer, outro ponto de partida. É aquele que possibilita construir uma compreensão adequada do ser enquanto ser. O primado ôntico/ontológico do dasein o torna uma singularidade que possibilita deixar e fazer ver o ser que é ele mesmo.

Na Carta sobre o humanismo, Heidegger retoma uma frase de Parmênides: 

146

, retomada, depois na conferência do Tempo e Ser, e, na conferência do Tempo e Ser,

procura esclarecer a questão do ser de modo a não ter de responder imediatamente. Pois, como é dito lá, o ser assinalado por Parmênides mostra que tudo que é dito como é revela um ser que “Se-dá” O ser que Se-dá somente é possível porque se fundamenta no Dasein que também é fundamentado pelo Dasein. Assim, a verdade do ser enquanto ser vai se desvelando

145 ARISTÓTELES, Livros IV, 1003 a. 146

Heidegger acentua o  e o , os quais aqui não são acentuados por causa do desconhecimento de software que faça, e por não saber de outro recurso para tal. Contudo, a acentuação é importante porque, segundo Heidegger, revela a intenção de Parmênides que é expor o ser em sua totalidade.

e fundamentando a si próprio, pois o Dasein é sendo. Assim, já no parágrafo 5 do Ser e

Tempo, são apresentados os modos básicos de ser: o “próprio” e o “impróprio”.

A reflexão é a porta de entrada para podermos chegar ao ambiente da metafísica e da ontologia.147 E a investigação ontológica que Heidegger quer empreender o levará diretamente à estrutura básica da ontologia. Posta a estrutura fundamental de manifestação do ser, por causa do primado que ele possui, o Dasein é considerado o passo inicial para essa interpretação e também acrescido a ele o elemento do “ser-em” que vai se desvelar ao passo de algumas manifestações em parágrafos posteriores.

Desde o parágrafo 28, Heidegger analisa o ser-em como em sua manifestação da propriedade,148 mas são os parágrafos 31, 32 e 34 bastante relevantes para explorar o próprio do “ser-em”.

De maneira igualmente originária, a compreensão também constitui esse ser. Toda disposição sempre possui a sua compreensão, mesmo quando reprime. Toda compreensão está sintonizada com o humor. Interpretando a compreensão como um existencial fundamental, mostra-se que esse fenômeno é concebido como modo fundamental do ser da pre-sença. [...] um modo possível de conhecimento entre outros, que se distingue, por exemplo, do “esclarecimento”,[ ...]149

Quando se remete a compreensão como uma forma de conhecimento, este se manifesta como sendo o mais originário dos conhecimentos; é a sua propriedade. Dessa maneira, a concepção de disposição para o mundo e para os outros é fundamental, do ponto de vista ontológico, que esteja bem explicitada.

Do ponto de vista da propriedade, a disposição é a implicação completa e irrestrita do ser em sua essência, existir. Com isso, a disposição também se torna uma abertura e se torna a possibilidade de compreensão. Diz Heidegger mais adiante:

Dizer que a pre-sença existindo é o seu pre significa, por um lado, que o mundo está “pre-sente”, a sua pre-sença é o ser-em. Este é e está igualmente “presente” como aquilo em função do que a pre-sença é. Nesse e, função de, o ser- no-mundo existente se abre como tal. Chamou-se essa abertura de compreensão.150 A abertura é a condição original para a que o “ser-em” torne-se, propriamente,

abertura. E é nesta abertura, enquanto função, não apenas enquanto condição que mostra o

fundamento da significância. Assim, “Significância é a perspectiva em função da qual o

147 Em Aristóteles, os conceitos são usados de maneira diversa. É a ontologia que leva a metafísica, ou seja, é a

ontologia que leva à fixação de princípios. Ao que parece, Aristóteles diferencia da seguinte forma: o argumento é ontológico, que leva a uma metafísica e que desvenda certos elementos dos princípios primeiros: teologia.

148 Karl Rahner usa um conceito similar bastante interessante que assinala a problemática da propriedade como

teológica, também a autopossessão. Isso é apresentado por ele no § 3 do livro Curso fundamental da Fé, 2004, onde Rahner vai apresentar elementos epistemológicos para o desenvolvimento de seus argumentos teológicos.

149 HEIDEGGER, 2002, §31. Os cortes são nossos. 150 Idem.

mundo se abre como tal”.151 E é na elaboração da compreensão de seu “pre” que a pre-sença se elabora em projeto152. Não é uma compreensão puramente imanente, mas é uma compreensão que pertence ao ser. Sim, enquanto uma condição ôntica a pre-sença pode desconhecer-ser e em suas possibilidades que encontra a possibilidade de ser.

Compreender é o ser existencial do próprio poder-ser da pre-sença de tal maneira que, em si mesmo, esse ser abre e mostra a quantas anda seu próprio ser. Trata-se de apreender ainda mais precisamente a estrutura desse existencial.153 Assim, assumindo seu caráter existencial de projeto, “(...) a compreensão constitui o que chamamos de visão da pre-sença” (idem). Estar junto aos modos originários da pre-sença, constitui a estrutura de implicação da transparência da pre-sença. E, assim, a visão não como ato, puramente, imanente ou simplesmente abstrato, mas um ver no sentido originário, da procura e da descoberta. Assim, o ver que é, dá acesso ao ente e ao ser154.

Com isso, a interpretação se funda ontologicamente na compreensão enquanto a compreensão se funda onticamente na interpretação. “O projetar da compreensão possui a possibilidade própria de se elaborar em formas. Chamamos de interpretação essa elaboração”. (HEIDEGGER, 2002, §32) e, assim, é a partir da significância que abre na compreensão de mundo, sua ocupação. E a circunvisão da ocupação interpreta o mundo já compreendido.

E, esta mesma compreensão se manifesta em três acepções da proposição. A primeira proposição é da disposição que se converte em compreensão. A segunda é da disposição e da compreensão como elemento originário da interpretação e, com isso, manifesta certo modo da interpretação. E o terceiro é o da simples declaração. Contudo, Heidegger nos assegura que “O fundamento ontológico-existencial da linguagem é o discurso”. (HEIDEGGER, 2002, §34) E mais:

O discurso é a articulação dessa compreensibilidade. Por isso é que o discurso se acha à base de toda interpretação e proposição. Chamamos de sentido o que pode ser articulado na interpretação e, por conseguinte, mais originariamente ainda, já no discurso. 155

151 Ibidem. Em outro texto de Heidegger em: Os conceitos fundamentais de Metafísica: Mundo –finitude –

solidão, no parágrafo 17, analisa a condição do ser-ai enquanto ser-aí e explicita a condição de abertura enquanto

uma disposição, mas lá usa um termo tonalidade afetiva o que em certo sentido se parece com o termo humor usado em Ser e Tempo. No entanto, nos Conceitos fundamentais, Heidegger, dá uma noção de uma ontologia que perpassaria a própria condição de ser-humano. Transformando, com isso, a tonalidade afetiva se tornaria uma forma de aprender e de manifestar o mundo. O que não se tornaria propriamente uma Gestalt, pois, para Heidegger, é um modo-de-ser.

152O projeto é compreendido enquanto estrutura existencial da compreensão. Em outras palavras, é a

compreensão que colocando a pre-sença em jogo a projeta.

153

HEIDEGGER, 2002, §31.

154 Na Metafísica de Aristóteles, já na segunda frase do primeiro livro, encontramos uma referência à visão e sua

importância para o conhecimento: Todos os homens, por natureza, desejam conhecer. Sinal disso é o prazer que

nos proporcionam os nossos sentidos; pois, ainda que não levemos em conta a sua utilidade, são estimados por si mesmos; e, acima de todos os outros, o sentido da visão.

Com isso, se a compreensão se articula no discurso que é fundamento para a linguagem parece evidente que o sentido é a articulação da compreensibilidade e de toda interpretação. E, por isso que o discurso se acha à base de toda interpretação e proposição. Assim, a compreensão do ser-no-mundo se pronuncia em discurso, e a totalidade significativa da compreensibilidade vem à palavra. E por isso que das significações brotam as palavras. E as palavras não são coisas dotadas de significado. Dessa forma, linguagem é o pronunciamento do discurso, e o discurso é a articulação significativa da compreensão.

Aqui se abre uma condição fundamental para o ser-junto-a, que é o escutar este, é a possibilidade de compreender. Essa possibilidade se firma em um exemplo simples do cotidiano, pois dizemos que não compreendemos bem quando não escutamos. Então, diz Heidegger: “Escutar é o estar aberto existencial da pre-sença enquanto ser-com os outros”. (HEIDEGGER, 2002, §34)

O discurso pode manifestar-se de maneira im-própria, mas o que acontece é um não reconhecer-se da pre-sença em suas possibilidades. Contudo, se levarmos em consideração apenas o modo próprio e da existência de fato da pre-sença. A pre-sença vai se desdobrar em outro elemento de complementação para que o primado esteja efetivado em uma estrutura que manifesta o Dasein como tal: o cuidado. Então, complementando a definição de cuidado:

A cura não pode significar uma atitude especial consigo mesmo porque essa atitude já se caracteriza ontologicamente como preceder a si mesma; nessa determinação, porém, já se acham também colocados os outros dois momentos estruturais da cura, a saber, o já ser-em e o ser-junto a.156

Aqui se completa a visão do primado ôntico-ontológico do Dasein, em que sua constituição, enquanto cuidado, se manifesta de maneira ôntica, revelando uma dimensão epistêmica, na qual o cuidado é ser-junto, e uma dimensão ontológica em que o cuidado se manifesta como se-junto-a. Dessa forma, o método (fenomenológico-hermenêutico) revela imediatamente a manifestação da pre-sença.