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1. História, educação e o cuidado

1.2. Platão: entre um projeto cultural e uma ontologia do ser

Talvez seja interessante saber o que entendemos como “projeto cultural” e “ontologia do ser”. No princípio, precisamos esclarecer o projeto cultural como uma tentativa de estabelecer uma visão mais abrangente sobre a ideia possível da paidéia grega e a interpretação desta mesma a partir de Platão. E, em complemento, com certeza, no seio deste projeto há a vinculação entre a visão de ser e a visão do humano, ou seja, uma ontologia.

Poderíamos demarcar a evolução do pensamento platônico através de alguns de seus diálogos que fundamentalmente estabelecem assuntos predominantes. Há, entre os comentaristas, uma característica comum que é demarcar os assuntos que podem ser estabelecidos dentro dos diálogos. O professor Paviani já mostra a indissociável fusão dos vínculos entre os múltiplos aspectos da filosofia de Platão e os assuntos que são tratados nos diálogos. Por isso, o próprio Paviani diz “Sua Filosofia é essencialmente pedagógica.” (PAVIANI, 2008, p. 23) E mais:

Além dos temas e dos problemas educacionais, sobressai-se o sentido que perpassa o esclarecimento dessas questões. Assim, saber que Platão afirma que o Estado deve orientar a ação educativa implica saber reconstruir os motivos e as

O segundo, a formosura do corpo;

O terceiro, uma fortuna adquirida sem mácula;

circunstâncias sociais e históricas, as razões de tal afirmação.54

Dessa forma, o projeto de Platão demonstra que verdadeiramente a filosofia, o método e o conteúdo se identificam em um mesmo projeto. O que em outras palavras poderia ser dito como um projeto propriamente pedagógico. Em vários momentos nos diálogos de Platão encontramos discussões sobre os mais diversos assuntos e seus possíveis desdobramentos. E a tarefa de resgatar esse processo de pensamento desde sua origem mostra a necessidade de resgatarmos o pensamento em suas fontes.

A compreensão que temos de Platão pode estar vinculada ao problema da educação. Assim, Paviani marca na interpretação de Platão como sendo fundamental o vínculo da filosofia com a educação.55

Não um projeto pedagógico que deriva da filosofia, mas um projeto educacional identificado com a própria filosofia. Nele, a filosofia da educação não é uma disciplina à parte, semelhante às disciplinas atuais de filosofias disso ou daquilo; filosofia da cultura, da linguagem, da arte, etc. Sua filosofia é anterior a todas as distinções entre as disciplinas filosóficas e científicas. Sua filosofia é essencialmente pedagógica.56

Nesse projeto essencialmente cultural e educacional mostra uma filosofia que busca o todo. E nesta busca precisamos mostrar como entender Platão como filósofo completo,57 enraizado em uma tradição filosófica. E uma das marcas da filosofia de Platão é o método dialético que, em Platão, segundo Paviani, é método e filosofia. As origens desse método remontam à filosofia chamada antiga. Inicialmente, a Dialética torna-se uma espécie de disputa heurística desenvolvida pelos eleatas e pelos sofistas. No entanto, Platão torna-a um método de filosofia, uma filosofia que supera a parcialidade e engloba o todo no pensar criticamente. Parmênides, ao negar o ser ao não-ser, parte do princípio da verdade onde o ser é e o não-ser não é. Zenão teria construído múltiplas formas de argumentação por absurdo por exemplo, mas é com Platão que a dialética se torna uma “(...) articulação, num único processo, ser, linguagem, discurso, razão. A dialética não se perde no particular, pois conhece a verdade da realidade na universalidade do pensar, além da percepção sensorial”. (PAVIANI,

54 (PAVIANI, 2008, p. 25). A importância de Platão para a história do pensamento do ocidente é inegável. Até o

próprio Jaspers comenta isso. “Em Platão se encontram e dele provêm quase todos os temas de filosofia. Parece que nele a filosofia encontra seu fim e o seu começo. Tudo o que a precedeu parece servi-la, tudo o que lhe segue parece comentá-la” (JASPERS apud PAVIANI, p. 26). Sabemos que todas as discussões posteriores parecem se fundamentar cada vez mais na capacidade produtiva e intelectual do próprio Platão. Atualmente, discussões ao redor da teoria dos sistemas remetem para Platão um grau elevado de responsabilidade, em construí-las, como nos mostra o professor Cirne-Lima.

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Aqui não cabe uma definição de educação, mas, ao que parece, tanto Paviani quanto Jaeger entendem educação como um processo maior. Em seu livro Problemas de Filosofia da Educação, Paviani mostra como a noção de educação passa por um processo de criação identitária e que é condição de possibilidade da ciência.

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PAVIANI, 2008, p. 23.

57 O termo usado é para demonstrar como Platão consegue apresentar todos os problemas possíveis da Filosofia

2008, p. 20) A dialética constrói um aceno histórico, fundada no próprio desenvolvimento do espírito do ocidente. Assim, a dialética platônica revela um universo cultural distinto que exige de nós uma aproximação lenta e gradual. Dizer também que a dialética em Platão mostra níveis de conhecimento, e que ela mesma é utilizada para que o praticante desse método seja capaz de superar o nível inferior, a doxa, e passar para um nível superior a

epistemé.

Platão tem como projeto, no plano filosófico, demonstrar uma ampla gama de recursos e de compreensão do todo. Assim, os vários diálogos são formas dramáticas que Platão encontrou para expressar a ampla gama da sua compreensão filosófica. Alguns autores dizem que os diálogos são apenas uma introdução esotérica ao problema da verdadeira filosofia, mas, mesmo assim, as colocações são fundamentais para que se possa adentrar, mesmo que propedeuticamente, ao átrio de sua filosofia.

Os diálogos adentram a várias problemáticas, como, por exemplo, Menon, que demonstra que o projeto pedagógico/filosófico de Platão é a superação, por assim dizer, do conhecimento sensível para assegurar um conhecimento inteligível. Podemos mencionar, então, o escravo, que precisa lembrar, reminiscências, daquilo que havia contemplado no mundo das ideias para então chegar ao conhecimento verdadeiro.

Platão recorre a uma categoria58 imprescindível ao problema do conhecimento e, por consequência, ao problema da realidade, que é o cuidado de si. Em várias passagens remete à necessidade da passagem do senso comum para o conhecimento inteligível. Já no Fédon, Platão, apresenta a necessidade de a alma olhar para os objetos que a cercam, caso contrário ficaria cega. E no Menon, introduz o conceito de opinião verdadeira, sendo essa a única capaz de elevar os incapazes até a arete. E como assevera Paviani, ao interpretar a questão do Menon “(...) há, nesse caso, uma diferença entre ter uma opinião que corresponde à verdade e uma verdade que corresponde à ciência”. (PAVIANI, 2008, p. 59) A diferença entre uma característica da visão de um diálogo e a do outro é que, simplesmente, aquele que possui um saber, episteme, sempre chega ao seu objetivo, enquanto aquele que possui uma opinião verdadeira nem sempre chega ao seu objetivo. E aqui encontramos sua maior referência com relação ao problema acima citado, pois é onde se encontra exatamente o conflito entre o indivíduo e a cidade. Devido à relação entre o individualismo e o egoísmo resulta na tentativa pedagógica de produzir uma sociedade capaz de, no mínimo, dialogar entre si.

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Aristóteles é quem usa esse termo, mas, pela compreensão que se quer gerar aqui, o significado é semelhante. Assim, esse conceito que é utilizado para análise é conhecido como categorias. Platão eleva as categorias a um nível ontológico, não somente a um nível lógico.

Quase como consenso, podemos entender os diálogos como: a) aqueles que seguem uma forma de exposição; e b) aqueles que se apresentam sob a forma de investigação. Os dois que passaremos a analisar são de características investigativas: Laques e Alcebíades Maior (primeiro). E a opção por tais diálogos está localizada no fato de que seus assuntos internos de investigação dizem respeito à Educação.

Podemos perceber que o diálogo Alcebíades Maior caminha pelo método dialético de unidade e multiplicidade. Platão procura identificar a necessidade de Alcebíades conseguir encontrar a essência de sua atividade, do seu ser político, com sua própria essência. Dessa forma, Platão consegue mostrar que, dentro de seu processo de racionalização da ação, cada etapa corresponde a uma parte de seu autoconhecimento.

Da mesma forma que Sócrates afirmava, a cura de si é uma forma de compreender a si dentro daquilo que faz. Assim, nesse diálogo, temos a unificação de duas formas, advindas das noções eleatas: o cosmos e a physis, o devir e a ordem como uma unidade essencial que assim, pode operar sobre o real, pois possuímos as formas essenciais para isso, através da cura de si. Assim, esse ordenamento é também ético e moral, pois, é pelo cuidado de si, aprender- se, e com isso ordenar o todo em uma unidade absoluta, a vontade individual. Desse modo, o verdadeiro político se organiza pelo cuidado, lembrando que a principal questão que o próprio Sócrates retoma várias vezes é o problema do conhecimento da alma, do cuidado da alma.

Assim, o problema que o cuidado-de-si retoma é o de si mesmo, do “conhece-te a ti mesmo” de Sócrates. No entanto, tal princípio é fundamentalmente uma iniciativa ontológica de criar uma ordem que pudesse transferir a teoria, a capacidade reflexiva e avaliativa, para a

a prática. Stein, na Lição 3 do Seminário sobre a verdade, mostra como a filosofia prática é

importante para a interpretação heideggeriana, diferente da interpretação que Foucault vai realizar sobre o mesmo problema.

Contudo, é no Laques que o cuidado alcança o ponto máximo do empreendimento cultural, educacional e filosófico. Além disso, Laques estabelece uma questão das mais profundas: “É preciso procurar um artista no cuidado da alma”. (PLATÃO, 185 e) Assim, o procedimento, a técnica, torna-se uma forma ontológica de podermos interferir no real,59 e, sobretudo, ao que parece, torna-se um modo-de-ser, de vivenciar o real. Tanto que Nícias aceita o desafio e diz: “(...) dar razão sobre si mesmo, sobre seu modo de viver atual e porque viveu a vida que viveu”. (LAQUES, 188a; LAQUES, 187e-188a) E assim, de certa maneira,

59 No seminário Sobre a verdade, do professor Ernildo Stein, acontece uma afirmação semelhante, quando expõe

o argumento de Paul Ricoeur, falando sobre um artigo de Franco Volpi, comparando o cuidado de Heidegger e o conceito práxis de Aristóteles. Para maiores esclarecimentos, ver lição 3 do Seminário sobre a Verdade, lições sobre o parágrafo 44, 2006.

Laques retoma a discussão feita no Alcebíades Maior da unidade na multiplicidade, até porque esse é o cerne da dialética platônica, mas aprofunda transformando o cuidado-de-si, que no Alcebíades é ontologicamente ordenador, em logos e ordem do real no Laques, pois é ele que modela o modo-de-ser no mundo dos indivíduos, efetivando, ao que parece, a passagem da bios teóricos para a vida prática, sendo que a visualização dessa passagem é o aparecimento da outra vida entre os gregos, da vida virtuosa, a areté.

Assim, uma das traduções correntes do cuidado de si é o conceito de Paidéia, que se identifica com a educação, com a cultura e, principalmente, com a formação, sem contudo mostrar a multiplicidade de culturas existentes entre os gregos naquela época. E esse aspecto, o da necessidade de uma cultura uniforme, ampla e civilizada, vai levar Platão a uma investigação sobre os temas da educação, sua força e sua forma.60

Para tanto, é importante ressaltar que o cuidado é re-interpretado por dois autores que já foram mencionados acima: Heidegger e Foucault. Cada um realiza uma interpretação sobre as consequências e o alcance crítico do conceito de cuidado. Mesmo que cada um realize essa interpretação dentro do seu projeto individual, é importante compará-las, para que assim cheguemos a visualizar aquele que mais se aproxima do conceito grego e de seu potencial crítico. O primeiro que nos concentraremos é Foucault e seu conceito de cuidado-de-si enquanto tecnologia do eu. O segundo é Heidegger, tentando demonstrar como se aproxima do ideal grego de cuidado, e como este tem um potencial crítico mais amplo.