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1. História, educação e o cuidado

1.4. Heidegger e o cuidado como um modo de ser

1.4.3. O cuidado e sua característica ontológica

Em seu livro Ser e Tempo, no segundo capítulo da primeira seção, Heidegger estabelece tal achado fenomenológico, e consequentemente hermenêutico, que vai auxiliar na visualização desse ente. O ente é em-um-mundo, e sempre é segundo um modo de

ser-no-mundo o “em”.

Talvez esse seja o ponto mais importante para o desvelamento do modo de ser do ser- no-mundo que é o “em” e demonstra como acontece a possibilidade de interpretar. E essa possibilidade é uma unidade totalizante – um horizonte, apenas o sentido. Porém não é só isso, o mundo é o

(...) lugar da manifestação do possível, do sentido e da linguagem. O mundo é abertura na qual moramos; não é uma entidade física, mas o horizonte de sentido no qual estamos dispostos. O mundo é o passado trazido a mim como herança é o meu projeto de futuro. O mundo é temporalidade que torna possível o tempo, a espacialidade de onde percebo o espaço, a historicidade que propicia a história, é a realidade que esclarece o real.82

Assim, a ontologia que reveste essa questão fenomenológica é fundamental, como diz o próprio Heidegger. E o fundamental é perceber, e esse perceber é uma transformação da visão sobre o nosso conceito de mundo. Tradicionalmente, o conceito de mundo se transforma desde uma concepção da coisa extensa cartesiana para a concepção husserliana de mundo-da-

vida.

No parágrafo 14 do Ser e Tempo, Heidegger começa a analisar o problema da mundaneidade do mundo, sendo que essa parte do tratado inicia por uma discussão bastante importante sobre a questão do mundo: o seu conhecimento, sendo que este é elaborado no parágrafo 13 desta primeira seção do mesmo livro, mas no segundo capítulo, enquanto a discussão sobre a mundaneidade está no terceiro capítulo. São essas duas discussões que são fundamentais para construção do conceito de mundo.

A questão fundamental do parágrafo 13 é a discussão da relação entre o objeto e o mundo. Sendo esta abordada como uma relação não tão óbvia e correspondente quanto se pretende demonstrar em ontologias clássicas. E, aqui, Heidegger estabelece o conhecer como caracterização fenomenal enquanto ser-em e ser-para o mundo. E continua dizendo

Ao se refletir sobre esta relação de ser, dá-se, logo de início, um ente, chamado natureza, como aquilo que primeiro se conhece. Nesse ente não se encontra o conhecimento. Quando “se dá” conhecimento, este pertence unicamente ao ente que conhece.83

E a descrição continua mencionando o conhecimento, não como uma característica externa, mas como uma característica interna. Isso porque o conhecimento não pode ser percebido como uma “propriedade do corpo”. E segue a pergunta que se refere ao fato de o conhecimento ter um objeto. Assim, conhecimento passa a ser um arriscar-se em uma esfera externa.

82 ALMEIDA, 2002, p. 135-136. 83 HEIDEGGER, 2002, § 13.

E, então, o que significa esse interno? É o desvendar do próprio ser, é uma descrição do próprio modo-de-ser. O que revela o caráter ontológico do conhecimento. E, dessa forma, podemos aderir à compreensão de que o conhecer é um modo-de-ser do Dasein enquanto ser- no-mundo, e com isso surge um fundamento ôntico para este conhecer. Assim, esta questão retoma a necessidade de retomar a hipótese construtivista,84 ainda não demonstrada.

Assim, levando em consideração os dados fenomenais, deve-se admitir que o conhecimento em-si se funda previamente em um “já-ser-junto-ao-mundo”.85 No entanto, ainda é ressaltando a questão do “já-ser-junto-a”, não mais como um simplesmente dado, porque ele já admite a antecipação do mundo. “Enquanto ocupação, o ser-no-mundo é tomado pelo mundo de que se ocupa” (HEIDEGGER, 2002, §13), como se pudesse dizer que houve uma deficiência no se fazer presente para que aconteça o conhecimento. Com isso, deixando de lado as formas de presentificar-se pelo ato, o ser-em concentra-se em um único ponto, ou seja, no fato de “demorar-se junto a...” (HEIDEGGER, 2002, §13)

Com base nesse modo de ser o ente intramundano em sua pura configuração () e como modo dessa maneira de ser, é que se torna possível uma visualização explícita do que assim vem ao encontro. Essa visualização é sempre um direcionamento para..., um encarar o ente simplesmente dado. 86

Isto é visualizado como algo direcionado, uma relação. Mostra que a percepção de algo se fornece pela possibilidade de interpelação que se tem desse algo. Contudo, ao interpelar, dá-se, em sentido amplo um processo de interpretação, e as sentenças produzidas nessa interpelação são elas mesmas um modo de ser-no-mundo. Assim, não pode ser interpretação a representação que um sujeito constrói para ele, e sim como o próprio ser que se manifesta na sentença, como se essas representações pudessem ser guardadas para que depois se estabelecesse a concordância com a realidade.

Em seu modo-de-ser, a pre-sença está sempre fora , “(...) junto a um ente que lhe vem ao encontro no mundo já descoberto” (HEIDEGGER, 2002, §13.) Porém, com isso, não significa que aconteça um abandono, mas Heidegger assinala que este estar fora deve ser bem entendido, pois, nesse sentido, a pre-sença nunca esteve fora e sim sempre dentro, pois é ela mesma que, como ser-no-mundo, conhece.

Quando em sua atividade de conhecer, a pre-sença percebe, conserva e mantém, ela, como pre-sença, permanece fora. Tanto num mero saber acerca do contexto ontológico de um ente, num “mero” representar de si mesmo, num “puro”

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Aqui se encontra uma questão não muito discutida por Heidegger, mas que tem elementos primários no fim do § 23.

85 HEIDEGGER, 2002, § 13. De certa maneira Heidegger estabelece um diálogo com a tradição epistemológica

ligada ao problema do empirismo. Sem, contudo, esquecer-se das hipóteses construtivistas que adentram a uma situação de um conhecimento situado, contextualizado e que possui muitas relações.

“pensar” em alguma coisa, como numa apreensão originária, eu estou fora no mundo, junto ao ente. 87

O que fica evidenciado claro é que, ao conhecer, a pre-sença se constitui a si mesma como capacitada ontologicamente para o conhecimento, de si e do mundo. E essa tarefa pode se tornar autônoma, conhecer, tornar-se direção, uma ciência. Assim, conhecer “(...) é um modo da pre-sença fundado no ser-no-mundo”. (HEIDEGGER, 2002, §13.)

Essa posição é aprofundada quando, no seminário sobre Heráclito do verão de 1943, Heidegger, no § 1 da primeira seção, inicia procurando uma definição da lógica das coisas e do pensamento. Ele diz que epistemologia, ou epithemé é

(...) colocar-se diante de alguma coisa, ali permanecer e deparar-se, afim de que ela se mostre em sua visão.  significa também permanecer diante de algo numa permanência tenta, , propicia e encerra em si o fato de nós nos tornarmos e sermos cientes daquilo diante do que assim nos colocamos. Sendo cientes podemos, portanto, tender para (vorstehen) a coisa em causa, diante da qual e na qual permanecemos na atenção. Poder tender para a coisa significa entender-se com ela. Traduzimos , episthemé, por “entender-se com-alguma-coisa”88 Assim, a postura que Heidegger vai exigir é a construção de uma nova noção de conhecimento. Quando em Ser e Tempo ele se refere ao conhecimento como uma forma de entender-se, como um modo-de-ser no mundo, é, em certo sentido, o mesmo que dizer que nos entendemos com o que nos cerca. É a construção de uma espécie de identidade, ou em antecipação do mundo pela pre-sença e da pre-sença pelo mundo. E é dessa mesma maneira que, no § 2 deste mesmo texto, encontramos uma concepção interessante para o que nos propomos.

Se a episthemé significa entender-se com algo, técnica em seu lócus originário, grego trata da construção, da criação, da pro-criação, dar à luz. O que significa conduzir, colocar no mundo. Em outras palavras, a sentença é a própria pre-sença que se manifesta integralmente, uma possibilidade ontológica que vem ao mundo pela técnica, a lógica que descreve “acertadamente” o algo com o qual queremos nos entender.

Assim, resta ainda re-construir o que Heidegger pensa sobre a segunda parte da estrutura do cuidado, o “ser-junto a...”89

A disposição é uma estrutura aparente que revela em si a própria situcionalidade do ser esta é a temática da disposição, do temor, da compreensão e da interpretação.

Este ser-em indica uma abertura fundamental para o mundo do ser. Esta abertura revela algo que não foi conhecido como tal, em outras palavras o ser-em se torna abertura pela

87

Idem.

88 HEIDEGGER, 2002, §1. 89 HEIDEGGER, 2002, § 41.

cotidianidade do pre.

(...) fato de ser, caráter ontológico da pre-sença, encoberta em sua proveniência e destino, mas tanto mais aberto em si mesmo quanto mais encoberto, chamamos de estar-lançado em seu pre, no sentido de, enquanto ser-no-mundo, esse ente ser sempre o seu pre. A expressão estar lançado deve indicar a facticidade de ser entregue à responsabilidade.90

Assim, o fator do ser-em emerge como uma totalidade unificada de desdobramentos que são simplesmente abertura e esta abertura que revela o ser do pre, e este identifica o ser-em e o ser-junto-a designado pela responsabilidade em um único conceito: cuidado.

Desta forma, a abertura revela uma disposição que um modo existencial básico em que a pre-sença é o seu pre. E, somente, desta maneira que a compreensão também pode ser mostrada como outra estrutura da constituição da pre-sença, assim, também, como acontece com a interpretação. Dessa maneira retomamos o modo original revelado por Heidegger no § 13, quando demonstra que há uma unidade que fica expressamente caracterizada não pela dicotomia, mas pela unidade integral de todas as dimensões do ser humano.