• Nenhum resultado encontrado

1. História, educação e o cuidado

1.4. Heidegger e o cuidado como um modo de ser

1.4.4. A estrutura original do cuidado

O cuidado revela uma unidade do ser. No entanto, esta unidade não pode ser comparada a outra unidade qualquer. O Dasein é fundamentalmente uma unidade que encontra sua essência na manifestação do cuidado. Assim, o ser-em e ser-junta-a manifestam o cuidado através de uma estrutura horizontal91 e contextual. Um círculo de interpretação e compreensão.

O círculo hermenêutico, já é anunciado desde o parágrafo 25 do Ser e Tempo é o círculo da compreensão que se desdobra e se constrói em uma unidade ontológica que se reconhece como cuidado. O cuidado se manifesta em três níveis de compreensão que juntos constroem a noção de círculo de compreensão e que podem desvelar o horizonte da experiência cotidiana e que dão o sentido ao que se procura tornar claro.

O primeiro dos níveis é manifestado pelo pre, ou o aí. O pre e o aí são uma tradução aproximada da noção que o “Da”, do Dasein, em alemão significa. Assim, pre-sença, ser-aí ou

90 HEIDEGGER, 2002, § 29. A palavra responsabilidade é uma tradução portuguesa que reúne conotações

diversas advindas de noções diversas, como nos aponta a nota 47 de Ser e Tempo. As conotações são relativas ao ato de responder por, e até de ser “entregue a” e de “impor a”. Com isso, irrompe uma unicidade relativa ao fato da responsabilidade. É como se o ser-em, jogado a facticidade precisar responder pelo fato do ser. Para maiores esclarecimentos ler também Sobre a responsabilidade, segundo Zeljko Loparic. Especialmente, o capítulo II, onde o professor remonta o contexto do pensamento originário de Heidegger sobre o problema da ética como sendo parte desta unidade originária do pensamento e do ser.

91 Uma das grandes descobertas da fenomenologia hermenêutica é que a experiência do cotidiano acontece de

simplesmente dasein significam a unidade originária da experiência do mundo. Há uma unidade fundamental da compreensão que se auto-funda pela antecipação que o mundo realiza sobre ele mesmo. Este unidade originária revela uma compreensão importante sobre o mundo, por isso, no início do parágrafo 14 até o parágrafo 25 o que acontece é uma análise da

mundaneidade do mundo.

Esta chamada antecipação é fundamentalmente uma descrição das relações ontológicas entre o ser e o mundo. Este pre é um “modelo”, ou para usar uma terminologia heideggeriana chamada estrutura. Esta estrutura se fixa na relação entre compreensão e interpretação. E, assim, nesta estrutura o eixo da compreensão e da interpretação estabelece o método.

E é neste círculo de compreensão que o projeto, para Heidegger, aparece como sendo a possibilidade do próprio sentido. Assim, a possibilidade é a estrutura da própria compreensão, pois é neste momento que, na compreensão, a presença projeta seu ser para a possibilidade, diz Heidegger. Vejamos,

Na compreensão, a pre-sença projeta seu ser para possibilidades. Esse ser para possibilidades, constitutivo da compreensão, é um poder-ser que repercute sobre a pre-sença as possibilidades enquanto aberturas. O projetar da compreensão possui a possibilidade própria de se elaborar em formas. Chamamos de interpretação essa elaboração.92

Percebemos uma linha descritiva do modelo de interpretação heideggeriano, e continuando no texto acima, Heidegger vai dizer que a interpretação se funda existencialmente93 na compreensão e vice-versa. E ainda ele diz que são nas formas que as possibilidades se elaboram que a compreensão se apropria do que compreende.

Assim, aqui parece que Heidegger não descreve como é possível conhecer, mas antes o simples fato da experiência de pensamento. O que ocorre é que o autor parece retomar a ideia do cuidado ser a pre-sença, pois fica claro o uso da descrição da compreensão e interpretação para elaborar uma teoria do conhecimento como fenomenologia-hermenêutica do conhecimento, porque mais adiante diz que: “Interpretar não é tomar conhecimento de que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na compreensão”. (HEIDEGGER, 2002, § 32, p. 204.) Assim, o horizonte que a compreensão atinge não é de uma teoria do conhecimento, menos ainda de uma teoria da consciência. O horizonte é de uma teoria hermenêutica, de uma Filosofia Hermenêutica.

Assim, é importante ressaltar a fundação daquilo que podemos chamar de visão de

92 HEIDEGGER, 2002, § 32, p. 204. 93

Apenas com intuito de esclarecimento, o existencial, para Heidegger, significa que a interpretação é uma via de mão dupla, pois, ao mesmo tempo em que dá acesso à compreensão daquilo que compreende, também realiza temporalmente o homem, porque lhe permite em seu projeto a compreensão de si.

mundo, ou ainda, o mundo-vivido que Husserl vai cunhar é completamente diferente daquilo que Heidegger pretende fundar aqui. É a tentativa de explicar como acontece o pensamento em sua origem, em seu solo ou em seu horizonte. Ao que parece, o pensar para Heidegger precisa se re-instalar a partir de outro horizonte, mais amplo e mais objetivo. Por isso, falar da vida prática é re-estabelecer o sentido a partir da compreensão e esta nos atos. Por isso, “O que está à mão se explicita na visão da compreensão”. (HEIDEGGER, 2002, §32, p. 205.) E assim é re-estabelecido o processo de análise vinculado a uma teoria que re-estabelece nossa relação com o mundo. Desta maneira, continuando o §32, esclarecendo que a compreensão é relativa ao como e que a interpretação revela o para, tais descrições nos revelam uma visão importante, mostram que o autor quer determinar qual é a constituição fenomenológica de um “puro conhecer”, que, no entanto, não chega a ser um conhecimento, mas mais um acontecimento. E completa essa descrição referindo-se a uma espécie de síntese entre as duas estruturas anteriores, na qual a compreensão e interpretação formam o “modo” da, se assim pudermos dizer, percepção.

Em outras palavras, a estrutura-como, para usar termos de Heidegger, revela uma compreensão e interpretação livre, uma simples visão de. O que torna o “como” uma transposição, assim o “como” visualiza-se na construção de um sentido para, pois simplesmente ter um objeto a sua frente “(...) uma coisa é somente fixá-la como uma não compreensão”. (HEIDEGGER, 2002, §32.) Assim continua dizendo que o fato de o “como” não ser pronunciado onticamente não deve levar a desconsiderá-lo enquanto constituição existencial a priori da compreensão”. (HEIDEGGER, 2002, §32.)

Com isso, Heidegger mostra a razão pela qual tenta restabelecer a visão integradora do conhecimento, assim o como da compreensão torna-se algo semelhante às categorias kantianas. No entanto, segundo Heidegger, o como é uma versão específica das categorias, pois elas são voltadas à compreensão do homem e não somente das coisas.

Interpretação e compreensão são momentos de uma mesma unidade originária que é a preocupação, o cuidado. Assim, a descrição de uma interpretação pode acontecer em dois momentos: 1) a interpretação deixa de ser um momento dentro da estrutura do cuidado e passa a ser guia, mesmo que configurando apenas uma a necessidade de estabelecer um parâmetro; 2) toda interpretação funda-se em um recorte que assume a possibilidade determinada de interpretação. Com isso, vincula à construção uma espécie de circularidade que vincula o “todo” à “parte” em uma simples possibilidade. E assim, o compreendido estabelecido em uma visão prévia torna-se conceito através de uma interpretação, diz Heidegger.

prévio dessa visão prévia que no §32 é tão importante. Para isso, procura descrever um nexo existente entre a compreensão e a interpretação no projeto. Então,

(...) no projeto da compreensão, o ente se abre em sua possibilidade. O caráter de possibilidade sempre corresponde ao modo de ser de um ente compreendido. O ente intramundano em geral é projetado para o mundo, ou seja, para um todo de significância em cujas remissões referenciais a ocupação se consolida antecipadamente como ser-no-mundo. Se junto com o ser da pre-sença o ente intramundano também descobre, isto é, chega a uma compreensão, dizemos que ele tem sentido.94

Assim, Heidegger nos aponta uma visão necessária sobre o problema, o conceito de sentido é o nexo formal entre aquilo que acontece na interpretação e na compreensão. Aquilo que é compreendido não é o sentido, mas o ente e o ser. E, desa forma, o sentido é a perspectiva pela qual se articula uma visão prévia, em função da qual se estrutura o projeto de compreensão. Assim, “Sentido é um existencial da pre-sença e não uma propriedade colada sobre o ente, que se acha por “detrás” dela ou que paira não se sabe onde (...)”. (HEIDEGGER, 2002, §32, p. 204.)

Pode-se ainda argumentar que o círculo seja vicioso, mas a questão não é essa, e sim a questão é como entrar no círculo hermenêutico de maneira adequada. Em outras palavras, é adentrar à compreensão e à interpretação através das “hipóteses”. São elas que podem guiar nossa compreensão e interpretação ao sentido. E, assim, destacar que o círculo da compreensão pertence à estrutura do sentido.

O próprio Heidegger chama atenção para um fato, o de que essa estrutura é apenas a descrição do fenômeno da compreensão descrito como possibilidade e caminho pelo qual uma clareira pode aparecer, que é o sentido. Assim, o circulo só existe quando está claro o envolvimento entre compreensão e interpretação como sendo parte da estrutura do sentido, que somente é assim por causa da pre-sença que tem sua possibilidade fundada na estrutura da compreensão.

No parágrafo posterior, o33, Heidegger vai discutir a proposição como modo derivado da interpretação, mostrando com isso como acontecem as associações, ou o acesso desse ser- no-mundo ao mundo pelas proposições. E são estas proposições que podem ser sintéticas, ou não.

No parágrafo 34, o autor explora o discurso e a linguagem como condições para que as proposições possam existir. Que, no entanto, há o aparecimento de um discurso e de uma linguagem como disposição deste ser sobre seu aí, que é sua própria antecipação. Então, do parágrafo 34 até o parágrafo 39, Heidegger vai explorar as condições autênticas e

inautênticas95 de existência desse ser-aí.

O salto realizado por alguns parágrafos foi feito apenas para assinalar uma espécie de conclusão que mostra, no parágrafo 39, uma unidade originária do pre da pre-sença que é o cuidado. E esse cuidado é condição para a compreensão. Então aparece um cuidado, um compromisso, que é fundamental para uma existência autêntica desse ser finito. Assim, o cuidado supera a própria condição epistemológica antecipada por Platão.

1.5. O cuidado heideggeriano como radicalização da opção da vida