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2. O cuidado heideggeriano e a construção do conhecimento

2.6. O cuidado em sua estrutura efetiva

Uma constituição efetiva do cuidado é necessária para podermos daí derivar uma compreensão do mundo de forma adequada. No parágrafo 63, da segunda parte de Ser e

Tempo, mostra uma análise do sentido ontológico e metodológico do cuidado, que pode ser

dessas primeiras. Dependem da pesquisa interdisciplinar das áreas fundamentais do conhecimento humano”

(p.53)

169 Usamos o termo técnica no mesmo sentido que Heidegger, em muitas passagens de sua obra Cartas sobre o

humanismo na qual se refere a uma técnica que seja apenas a resolução de problemas, colocando uma série de

jovens que almejam tanto um diploma acadêmico como desempregado.

170 O termo tem uma carga histórica enorme; por isso, o sentido em que foi usada é o mais próximo da educação

relevante aqui, pois apresenta a abertura como sentido ontológico e que se tornará metodológico, pois será o guia das interpretações realizadas pelo Dasein.

No entanto, no parágrafo 45 da mesma obra, acontece uma retomada da analítica existencial tentando explicitar como o cuidado pode se tornar a totalidade das significações do dasein no mundo. E, assim, a primeira conclusão significativa para a fundamentação de uma estrutura ôntica e ontológica do cuidado está no fato de que “ (...) afirmou-se que cura é a totalidade do todo estrutural da constituição da pre-sença”. (HEIDEGGER, 2002, §45). Essa posição é confirmada também no parágrafo 41 da primeira parte.

O sentido originário que o cuidado visa a manifestar é uma condição ontológica para um ente e de uma condição ôntica para um ser. É uma estrutura circular que, por ser circular e dar compreensão, mostra um vínculo com a estrutura originária da disposição. Assim, o cuidado pode ser considerado uma pré-ocupação em sentido bem lato, pois, realmente, enquanto disposição, o dasein, a pre-sença pode se antecipar na sua circunvisão a suas ocupações. No entanto, essa forma da pre-sença se manifestar corre o rico de, em seu contexto de manualidade, encobrir a própria possibilidade da pre-sença ser quem é.

Voltando ao parágrafo 41 da primeira parte, encontramos uma condição de circularidade do cuidado sim, mas também a condição de totalidade das múltiplas estruturas do dasein, como diz Heidegger. O parágrafo 42 revela a fábula do cuidado e de como este era compreendido dentro do clima clássico. Ali vemos que “ (...) o termo cura em que ele não significa apenas um “esforço angustiado”, mas também “cuidado” e “dedicação”. (HEIDEGGER, 2002, §42)

A condição do cuidado é uma dimensão também de unidade e de totalidade que reflete a possibilidade da compreensão. Quando a compreensão alcança a interpretação de si, revela uma disposição de, uma abertura, um projeto. Esse projeto que se lança para frente permite que a possibilidade se torne o ser deste poder-ser que é a pre-sença em seu existencial mais fundamental: a compreensão. Assim, em um primeiro momento, a cura significa simplesmente estar-aí.

De um segundo ponto de vista, a condição de universalização do cuidado mostra-o como base do ente, uma espécie de a priori existencial. Dessa forma, a chamada destinação do ser, uma espécie de construção ética dá o fundamento do ser-junto a e do ser-em. Com isso, todos os comportamentos dos homens são, ou teriam-que-ser dotados de cuidado e guiados por dedicação, parafraseando Heidegger.

Por fim, uma terceira dimensão do cuidado é o da abertura. E, com isso, podemos nos remeter à possibilidade de interpretar. A universalidade enquanto transcendental também é

um projeto, abertura, para a interpretação e para a compreensão.

A “universalidade” transcendental do fenômeno da cura e de todos os existenciais fundamentais tem, por outro lado, a envergadura que subministra preliminarmente o solo em que toda interpretação da pre-sença se move, baseada numa concepção ôntica de mundo, quer se compreenda a pre-sença como “cuidado com a vida” e necessidade ou ao contrário. 171

Com isso, apesar do círculo, precisamos explicitar a questão do real, do fora. O estabelecimento da realidade como uma possível problematização da compreensão do mundo torna a necessidade do cuidado ainda mais urgente.

Primeiramente, observa que Heidegger parte de um argumento kantiano, quando fala sobre a possibilidade do mundo externo. Kant diz que: “A simples consciência de minha própria presença, determinada empiricamente, comprova a presença dos objetos no espaço fora de mim”. (HEIDEGGER, 2002, §43). E a primeira observação de Heidegger é em relação ao termo pre-sença que serve tanto para o dado da consciência quanto para o dado da coisa.

Assim, a observação é um poder provar o mundo externo. E comprovar este mundo externo é uma questão com problemas de formulação. Para Heidegger, a questão deveria ser formulada a partir da investigação da presença e, desse modo,

O que se deve não é provar o fato e como um “mundo exterior” é simplesmente dado, e sim de-monstrar porque a pre-sença, enquanto ser-no-mundo, possui a tendência de primeiro sepultar epistemologicamente o “mundo exterior” em um nada negativo para então permitir que ele ressuscite mediante provas.172

Por isso, a estrutura prévia do cuidado expressa no parágrafo 41 assegura um cuidado que seja uma unidade ôntica-ontológica prefigurando uma identidade que conserva a diferença. Assim, a identidade que o cuidado gera é uma estrutura que é capaz de se articular sobre o si e sobre o mundo. Assim, em um primeiro momento, é preciso re-estabelecer a questão mesmo sobre o problema do mundo externo. E re-colocando a pergunta sobre o mundo, vemos a necessidade de colocar o problema em um nível mais ontológico.

Heidegger, assim, com a perspectiva de uma análise, esclarece o ser dos entes intramundanos. Dessa forma, é através da manifestação do mundo que o ser intramundano vem à tona e, por isso, é que a estrutura fundamental do ser-no-mundo acaba se tornando cuidado.

Com isso, em outras palavras, o mundo somente pode ser compreendido como resistência e, do ponto de vista de conjunto, elabora de certa forma, um conjunto de

171 HEIDEGGER, 2002, §42. 172 HEIDEGGER, 2002, §43.

resistências que serve para atentar dois pontos: 1) mesmo que resistência caracterize o mundo externo, para poder compreendê-lo, pressupõe que sua abertura seja autêntica; 2) e que, sendo sua probabilidade de existência, aconteça como uma “relação ontológica”.173

Com isso, as cogitationes não são desenraizadas do mundo, mas nascem da manualidade enquanto ocupação da pre-sença. Assim, a estrutura do cuidado torna-se a nova fórmula da existência. O que antes era “cogito ergo sum” agora é “cuidado”. Assim, o novo princípio de fundamentação recai sobre o cuidado, e este cuidado reverte também a forma de entendermos o nosso próprio princípio de racionalidade. Assim, este novo princípio vai reverter nossa relação com a verdade.

Com isso, a realidade somente pode ser como ente diante da possibilidade da pre- sença enquanto cura. É na possibilidade de compreensão da pre-sença que este ser intramundano chamado realidade chega a nós e pode tornar-se ele mesmo. E aí, na pre-sença que encontramos o sentido da realidade, por isso, a substância do homem é existir, como diz Heidegger.

Neste primeiro momento o que acontece é uma busca por aquilo que possa ser determinado como verdade. Inicia com uma análise de uma frase de Aristóteles e chega a duas conclusões: Primeiro, a verdade tem um lugar, a proposição. A segunda é a ideia de uma verdade como adequação. A verdade matemática cartesiana promove uma comparação e, pressupondo a extensão, pode conhecer e provar a realidade. Quando Heidegger analisa a proposição e mostra a que elas não podem representar, sendo que esse é o conceito fundamental dela, ela é o próprio ente. Então:

A proposição é um ser para a própria coisa que é. O que se verifica através da percepção? Somente o fato de que é o próprio ente que se visava na proposição. Alcança-se a confirmação de que o ser que propõe para o proposto é uma demonstração daquele ente, o fato de que ele descobre o ente para o qual ele é. Verifica-se o ser-descobridor da proposição. 174

Dessa maneira, o ser-descobridor mostra outra postura no olhar do cuidado, pois, quando procuramos algo, precisamos nos adequar à égide do conceito de verdade enquanto procura. No entanto, sendo a proposição o próprio ser que deixa e faz ver o ente como é, dessa forma é que o Logos permanece na procura pela verdade. Então, é por isso que Heidegger a define como -, desvelar. Com isso, a definição da verdade passa a ser descoberta.

O significado da verdade precisa de uma elucidação em relação aos problemas anteriormente postos. Dessa forma, a própria compreensão é fundamento para a verdade. No

173 HEIDEGGER, 2002, §43. 174 HEIDEGGER, 2002, §43.

entanto, podemos perceber como o estabelecimento de uma nova instância, ou para usar uma nomenclatura usada por Stein, um novo standard de racionalidade, é estabelecido como um novo paradigma, e esse como o de uma transcendentalidade que é prática e, por isso, ligado ao ser-descoberto.

E diz Heidegger:

Descobrir é um modo de ser-no-mundo. A ocupação que se dá na circunvisão ou que se concentra na observação descobre entes intramundanos. São estes o que se descobre. São “verdadeiros” num duplo sentido. Primordialmente verdadeiro, isto é exercendo a ação de descobrir, é a pre-sença. Num segundo sentido, a verdade não diz o ser-descobridor (o descobrimento), mas o ser-descoberto( descoberta).175 Com isso, é demonstrado o como do problema da verdade, em outras palavras, fica

clara a diferenciação que existe entre o conceito de verdade, chamado por Heidegger de

tradicional, e o conceito de verdade como desvelar que, para nosso autor, vislumbra uma nova dinâmica do ser.

Contudo, nem a clareza dessa dinâmica pode ser dada como evidente, por isso, o elemento transcendental e recuperado ganha uma nova dinâmica nessa teoria da experiência.176 E, por isso, nos resta perguntar: O que significa esse transcendental em Heidegger?

O transcendental em Heidegger, ao qual nos referimos até agora, traz, de um lado, alguns elementos do transcendental Kantiano – a pretensão da universalidade, necessidade, verdade – e traz em si, ao mesmo tempo, elementos do universo empírico, também kantiano. Em lugar, porém, de colocar o eu transcendental e o eu empírico separados, para depois se produzir uma síntese, Heidegger já define sinteticamente o Dasein.177

Dessa forma, o transcendental é, de certa forma, o próprio modo-de-ser da compreensão e da interpretação que o dasein, ou pre-sença, opera como ser-no-mundo. Assim, a formulação da verdade acaba trazendo, por causa da formulação inicial do Dasein, em-si as mesmas características que o próprio dasein traz consigo. Contudo, retomando a questão da verdade, podemos perceber um novo paradigma, mas também uma nova articulação do ser com o mundo que é o objeto central aqui, o cuidado. Com isso, para desenhar melhor a questão da verdade, poderíamos dizer com Heidegger que:

(...) “a pre-sença é e está na verdade” através das seguintes determinações:

1. A abertura em geral pertence essencialmente à constituição ontológica da pre- sença. Abrange a totalidade da estrutura ontológica que se explicitou no fenômeno da cura. (...) 2. O estar-lançado pertence à constituição ontológica da pre-sença como constitutivo de sua abertura. Nele, desentranha-se que a pre-sença já é minha e isso num mundo determinado e junto a um âmbito de determinações de entes

175 HEIDEGGER, 2002, §43. 176

A teoria da experiência de Heidegger é debatida nos Seminários “Sobre a Verdade”, de Stein, na Lição 16, quando, então, recupera a relação entre a experiência e o conhecimento e a experiência e a teoria.

intramundanos determinados. (...) 3. O projeto pertence à constituição ontológica da pre-sença: do ser que se abre para o seu poder-ser como compreensão. (...) 4. A de- cadência pertence à constituição ontológica da pre-sença. De início e na maior parte das vezes, a pre-sença se perdeu em seu “mundo”.178

É por isso que Heidegger, ao colocar a questão da verdade, primeiro questiona o nexo

existente entre o sujeito e o objeto na teoria da verdade tradicional, onde verdade significa concordância. Para isso, ele, através do transcendental, demonstra a descoberta e não a concordância. Por isso, a verdade, como Parmênides dizia, tem dois caminhos. Eles, como dizia Heidegger, podem ser articulados entre a “verdade” e a “não verdade”. Com isso, nos transportamos a um elemento primordial que é a perspectiva de uma verdade que surge tendo como condição o dasein e não o contrário. Em outras palavras, é dizer que a verdade não existe separadamente ao Dasein, mas, ao contrário, a verdade existe por causa do Dasein.

Com isso, a verdade passa a ser um elemento de a-ser-pensado como o próprio Heidegger coloca em textos como Tempo e Ser. Porém, a possibilidade principal é que, nesse sentido, não há mais verdades absolutas sim, nem relativismos, somente um a ser-descoberto, cujo critério de descoberta é estabelecido pelas ciências regionais179 desses mesmos entes que elas pesquisaram.

Aqui, revela-se a “verdadeira” importância do cuidado enquanto seja capaz de dialogar com as disciplinas e suas ciências, enquanto seja capaz de fundamentá-las e enquanto seja capaz de desvelar um sentido ao ser-no-mundo. Assim, o cuidado se mostra cada vez mais como substituto do princípio ontológico cartesiano. Assim, diz Heidegger: “A estrutura da cura chegou à seguinte formulação existencial: preceder-a-si-mesmo em (um mundo) enquanto ser-junto-a (um ente intramundano que vem ao encontro”. (HEIDEGGER, 2002, §63)

Assim, o cuidado se torna totalidade e diferença na mesma estrutura. Ao contrário de tudo que tenha acontecido na história do pensamento, esse princípio se torna fundamental pela sua própria determinação inicial. Ele é capaz de congregar em-si elementos do transcendental e do empírico, sem necessitar de uma síntese como em Kant, e, talvez, esse seja o grande elemento de transformação de paradigma.

Com isso, questionando os elementos fundamentais da teoria do conhecimento, hoje

178

HEIDEGGER, 2002, §44. Os cortes feitos são para enfatizar a articulação que a verdade desmembra e, mesmo assim, seu núcleo estrutural de articulação encontra-se no conceito de cuidado.

179 O termo em questão, ciências regionais, é nosso e foi criado em paráfrase a Heidegger, parágrafo 10 do Ser e

Tempo, quando usa o termo “(... ) regiões de fenômenos(...)” e “(...) ciência destas disciplinas (...)”. Isso para

designar a possibilidade de um estudo, sim, de várias ciências, mas que seu objetivo é delimitar uma ontologia que subsista a todas as ciências, que as perpasse, ou que seja uma ontologia fundamental.

epistemologia, podemos pensar as condições de possibilidade do próprio conhecimento, das formulações de verdade e das relações éticas. Dessa forma, o cuidado assumiria como princípio máximo da unidade do Dasein, pre-sença, preservando elementos da diferença, ou seja, sem cair em totalitarismos.