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2. REVISÃO DE LITERATURA

2.2 Gênero no contexto rural

2.2.2 A construção da cidadania da mulher rural

A partir das lutas dos movimentos sociais que se fortaleceram no período pós-ditadura, especialmente na segunda metade da década de 1990, surgiram movimentos de mulheres e movimentos feministas no campo. A participação gradativa das mulheres nos movimentos sociais proporcionou não somente o seu reconhecimento como cidadãs trabalhadoras e sujeitos de direitos, como também possibilitaram conquistas relacionadas ao acesso às políticas públicas e, também, ao desenvolvimento de políticas exclusivas para as elas (Siliprandi e Cintrão, 2015).

à propriedade. Porém, o Estatuto ainda manteve a liderança masculina na família, reconhecendo a mulher com um papel secundário, como uma colaboradora no lar (Siqueira, 2008).

O mesmo ocorreu no meio rural, onde ainda é possível observar o não reconhecimento da mulher na produção de trabalho e renda. Quando da vinculação de sua imagem ao trabalho remunerado no campo, a mulher era vista como dona de casa, agregada, raramente como assalariada. Com a criação da lei da Agricultura Familiar em 2006, em que se conceituou “agricultura familiar”, a mulher passou a ser vista também como agricultora, embora sem reconhecimento ou com valorização secundária de seu trabalho na propriedade rural (Cruz, 2013).

Mas, de acordo com Saffioti (2013), as mulheres, em todas as épocas e lugares, contribuíram para a subsistência de sua família para criar a riqueza social. A tradição de submissão da mulher ao homem e a desigualdade de direitos entre os sexos não podem ser vistas isoladamente. Para essa autora, a luta pelos direitos da mulher não pode ser vista como criação de novos direitos, pois esses direitos já existem ao reconhecer a mulher como cidadã.

Saffioti (2013) e Strathern (2006) apresentam o trabalho feminino, na perspectiva capitalista, considerados sob a forma de alienação por estar na base da conversão de valor. O produto resultado de transações comerciais, considerados como dádivas por Strathern (2006), mesmo que originalmente produzido pela mulher, servem para elevar o nome do marido. Para essa autora, qualquer crédito que advenha para a mulher é secundário. E, para Carvalho (2009, p. 10) “se os direitos civis garantem a vida em sociedade, os direitos sociais garantem a participação na riqueza coletiva”. Ele afirma que os direitos sociais contribuem para reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo, se baseando na ideia central da justiça social.

Brumer (2002) e Butto (2011) apontam que somente a partir da Constituição Federal (CF) de 1988 a mulher rural passou a ter direitos previdenciários como as trabalhadoras urbanas. No entanto, vários entraves ocorreram para a consolidação desses direitos, como vetos presidenciais à regulamentação, dentre outros. O trabalho da mulher não foi considerado como um trabalho regular por muito tempo. Mas, segundo as autoras, um dos valores simbólicos importantes que contribuiu para o acesso das mulheres à previdência social como beneficiárias diretas foi a própria

percepção de que elas participam das conquistas da família, assim como os maridos.

Essa percepção social aumenta a consciência sobre seus direitos.

A partir dos vários movimentos sociais, nos quais tem havido a participação crescente das mulheres rurais, políticas públicas, programas e projetos de incentivo ao acesso e de garantia dos direitos foram implementados nos últimos anos. São políticas que garantem os direitos e o acesso à documentação, à terra, ao crédito, à organização produtiva, à produção, transformação e comercialização, aos serviços de assistência técnica e extensão rural, à participação na gestão, ao resgate cultural e dos conhecimentos tradicionais. A inclusão das mulheres como beneficiárias diretas das políticas públicas ocorreu a partir do reconhecimento social e político do seu protagonismo na agricultura familiar e da necessidade de sua autonomia econômica (Butto, 2011).

Conforme Santos (2015), a Constituição Federal busca igualar os direitos dos cidadãos, mas a morosidade no desenvolvimento de instrumentos legais de operacionalização desses direitos retardou a inclusão das mulheres como cidadãs de fato. Um dos entraves para o exercício da “cidadania plena” das mulheres rurais foi o acesso à documentação básica. A tradição da apresentação do homem como representante da família fez com que as mulheres permanecessem alheias aos seus direitos como cidadãs. Isso influenciou na dificuldade de acesso das mulheres às políticas públicas, como as políticas de crédito.

A partir da demanda dos movimentos feministas no campo, em 2003 foi instituído o Programa de Documentação da Trabalhadora Rural, que facilitou a emissão de documentos básicos, como CPF, Carteira de Identidade e Carteira de Trabalho às mulheres rurais de todo o país (Butto, 2011).

Outro documento importante que comprova a profissão de agricultora familiar às mulheres rurais e que influencia no acesso aos direitos previdenciários é o “bloco de notas do produtor”, que consiste em notas fiscais referentes às transações comerciais e de transporte da produção rural, sobre as quais incide a contribuição previdenciária. Tradicionalmente, o documento é emitido em nome do titular da propriedade da terra, geralmente o homem. Por ser um documento de regularização dos Estados da Federação, a inclusão do nome do cônjuge é variável (Siliprandi e Cintrão, 2011).

No estado do Espírito Santo, somente no ano de 2013, por meio do Decreto nº 3353-R que o governo do Estado passou a considerar a inclusão do nome da

mulher no “bloco do produtor rural”. A divulgação do decreto no portal do governo do Estado declarava que o objetivo da iniciativa era “promover a independência, a qualidade de vida e a inclusão social das mulheres do Espírito Santo” e que, com esse decreto, “a mulher produtora/trabalhadora rural que divide o trabalho com o companheiro poderá ter seu nome incluso no bloco de notas”. A divulgação do decreto afirma, então que, a partir de sua publicação, a mulher rural poderá “comercializar, expandir sua produção agrícola, melhorar seus empreendimentos e renda e, ainda, emitir o documento fiscal” (Espírito Santo, 2013). Em outras palavras, o próprio Estado reconhece que, antes, a mulher não podia exercer a liberdade de produzir e de comercializar, ou que, ainda, mesmo que ela trabalhasse e comercializasse, o Estado não a reconhecia como agricultora, de fato.

Com relação ao direito à propriedade para os cônjuges, este foi garantido pela Constituição Federal. No entanto, na legislação da Reforma Agrária, até 2003, não havia referência à posse conjunta, ficando a titularidade com o companheiro. Em casos de separação e divórcio, a propriedade ficava sob a responsabilidade do homem. A mulher, muitas vezes, voltava para o acampamento, aguardando uma oportunidade de assentamento. Somente a partir de 2003, a política de reforma agrária inseriu o conteúdo de gênero em seu programa, implementando iniciativas de ampliação dos direitos econômicos e políticos das mulheres rurais (Cintrão e Siliprandi, 2011).

Brumer (2002) afirma que, apesar da participação crescente das mulheres nos movimentos sociais, apesar das conquistas de direitos e da própria percepção desses direitos, as mulheres ainda permanecem acríticas ou inativas quanto à contestação das relações de gênero desiguais presentes no cotidiano das famílias rurais.

Embora as políticas públicas tenham buscado uma releitura da agricultura familiar a partir da incorporação da temática de gênero, de igualdade social, do enfoque de bem-estar e de soberania alimentar (Guelber Sales, 2012), ainda persiste uma invisibilidade sobre as questões das mulheres na agricultura familiar em geral (Guelber Sales et al., 2010). Sua participação não é valorizada e as suas reivindicações específicas acabam ocupando um espaço marginal, ou mesmo não sendo contempladas nas pautas políticas das organizações locais e regionais.