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2. REVISÃO DE LITERATURA

2.4 Estratégias de desenvolvimento rural a partir dos debates de gênero

2.4.1 Gênero e desenvolvimento na agenda política

As questões de gênero não eram consideradas nas estratégias de desenvolvimento econômico até os anos 1970. De acordo com Pereira (2015), as organizações responsáveis pelas políticas de desenvolvimento tinham uma visão muito limitada das questões de gênero, considerando apenas os papéis reprodutivos e alguma parcela produtiva ligados às mulheres. Os estudos relacionados ao tema no meio rural, naquele período, estavam mais voltados para avaliar os programas de apoio à mulher rural no seu papel reprodutivo e produtivo ligado à esfera doméstica.

Pereira (2015) cita como exemplo a atuação das economistas domésticas envolvidas com os trabalhos de ATER (discutido no item 2.7.3) no âmbito relacionado à luta contra a pobreza da mulher rural.

Os estudos realizados por Boserup (1970 apud Kabeer, 2006) relacionaram a pobreza e a condição da mulher e evidenciaram, especialmente, a participação econômica das mulheres na produção agrícola, e a importância desse papel no processo de desenvolvimento. Na tese sustentada por Boserup, as mulheres são atores econômicos, mas nas políticas públicas estão sujeitas aos programas de bem-estar social que reforçam a divisão sexual do trabalho (Kabeer, 2006; Pereira, 2015).

Dentro da perspectiva de modernização vigente naquela década, as mulheres das sociedades periféricas formavam, portanto, parte do setor atrasado e, assim, permaneciam à margem do processo de desenvolvimento. Reconhecia-se, assim, que a posição de subordinação da mulher era um obstáculo para o desenvolvimento (Pereira, 2015). Tais estudos influenciaram os planos de desenvolvimento propostos pelas diversas conferências sobre a mulher, realizadas pelas Nações Unidas naquela década de 1970 (Kabeer, 2006).

A partir das ideias propostas por Boserup (1970) foram desenvolvidos enfoques teóricos que Pereira (2015) relacionou como: Mulheres e Desenvolvimento (MED); Gênero e Desenvolvimento (GED); Mulheres, Meio Ambiente e Desenvolvimento (MMD) e Planejamento de Gênero (PG), que têm sido discutidos nas academias, agências internacionais e organizações não governamentais e têm orientado o planejamento de políticas públicas com perspectiva de gênero.

O enfoque principal de MED é a criação de programas específicos para incrementar a participação da mulher no desenvolvimento, mas partindo do pressuposto de que as mulheres são receptoras passivas no processo de

desenvolvimento, necessitando de “ajuda”. Definem os problemas das mulheres em termos das necessidades básicas das famílias. Nesse enfoque não há o questionamento dos papéis de gênero. Apenas incrementam que a mulher é um recurso humano não bem utilizado, podendo ser orientada a sua contribuição econômica ao desenvolvimento (Pereira, 2015).

Portanto, ao não se questionar as relações de gênero, os programas resultantes da teoria de MED priorizaram a produção das mulheres no âmbito doméstico, orientada para atividades tipicamente femininas, como transformação de alimentos e artesanato. Esses programas resultaram na ampliação da carga de trabalho das mulheres, sem, contudo, representarem aumento de renda ou de autonomia econômica. Na verdade, os programas reforçaram a divisão sexual do trabalho, estimulando o trabalho gratuito das mulheres na esfera doméstica, reafirmando seu papel reprodutivo, não contribuindo para mudanças nas relações de poder entre homens e mulheres (Pereira, 2015).

Nesse contexto, a partir da Terceira Conferência Mundial da Mulher, realizada em 1985, feministas questionaram as estratégias de desenvolvimento, reivindicando que os problemas que ocorrem com as mulheres sejam encarados como responsabilidade das relações desiguais de gênero, que submetem as mulheres a papéis de subordinação e marginalização na sociedade. Propõe-se um enfoque voltado para a realidade de um sistema desigual que impede o desenvolvimento da autonomia das mulheres e não para adaptar a vida delas ao modelo de desenvolvimento econômico vigente. A partir daí, surge o enfoque que foi denominado de Gênero e Desenvolvimento (GED) (Pereira, 2015).

A principal diferença na perspectiva de GED em relação a MED está na postura do primeiro em não interpretar a situação da mulher de forma isolada, mas decorrente de relações desiguais em que a mulher se submete ao homem; questionar as estruturas e instituições sociais, culturais, políticas e econômicas que reforçam a condição de subordinação da mulher em relação ao homem e considera que é possível a mudança nas relações sociais (Hernández, 2009).

Pereira (2015) considera que o enfoque em GED é de conflito, pois afirma que os programas de ajuda à mulher propostos pelo enfoque de MED não teriam eficácia, ou estes seriam muito limitados, se não se atentasse para a resolução dos problemas de igualdade e de subordinação.

O enfoque do paradigma de MMD é dado para a relação das mulheres com a natureza. De acordo com Pereira (2015), essa discussão se iniciou ainda na década de 1970, mas voltou a ser destaque na década de 1980. A tese defendida pelos teóricos da época é de que a própria desigualdade fez com que as mulheres ficassem mais próximas da natureza e de sua conservação do que o homem, uma vez que as primeiras exploram a natureza para sua subsistência e se preocupam com a saúde da família, enquanto os homens mantêm uma relação de exploração capitalista.

Assim, considerando que a sustentabilidade ambiental deve ser objeto fundamental do desenvolvimento, a relevância do papel da mulher nesse processo deve ser enfatizada. Esse paradigma, conforme apresentado por Pereira (2015), é a base da corrente do Ecofeminismo no debate agroecológico, que traz reflexões sobre gênero, meio ambiente e desenvolvimento.

Na interpretação de Pereira (2015), nos três enfoques apresentados, as questões de gênero aparecem subordinadas aos objetivos do desenvolvimento. Já no enfoque de Planejamento de Gênero, essas questões adquirem a dimensão do objetivo, ou seja, o planejamento de desenvolvimento rural se volta para a consecução dos objetivos de gênero. O objetivo principal nesse enfoque, portanto, é corrigir as assimetrias de gênero, proporcionando igualdade e equidade entre mulheres e homens, sendo: igualdade nos papéis de gênero, tanto na divisão do trabalho, quanto na capacidade decisória sobre os recursos domésticos; igualdade de gênero no âmbito produtivo (mercado de trabalho); igualdade política nos diversos níveis de participação. Para o autor, “a diferença entre PG e GED está no fato de que, no paradigma GED, o gênero aparece como estratégia para o desenvolvimento e, no PG, é um objetivo em si mesmo” (Pereira, 2015, p. 34).

A partir da Quarta Conferência Mundial da Mulher em Beijing no ano de 1995, foi adotada a ideia de “transversalidade de gênero” (gender mainstreaming), que trata da incorporação da perspectiva de gênero no processo de formulação, implementação e avaliação de projetos e políticas públicas, como forma de integração de forma igualitária de mulheres e homens no sistema socioeconômico e político (Hernández, 2009; Pereira, 2015)

É essa a ideia que vem orientando as propostas dos organismos internacionais e instituições governamentais, como ONGs internacionais de gênero e o próprio Banco Mundial, que sugerem que os investimentos em políticas públicas considerem as estratégias de gênero, financiando projetos que promovam o

desenvolvimento da mulher e reduzam as desigualdades de gênero (Hernández, 2009; Pereira, 2015).

Assim, Pereira (2015) conclui que de uma abordagem assistencial para a mulher evoluiu-se para uma atuação de gênero inserida no paradigma Gênero e Desenvolvimento. Essa evolução também foi observada nas ideias de desenvolvimento, que também apresentaram reflexos nas políticas públicas, como a de crédito rural, como demonstrado na Figura 1.

A Figura 1 apresenta, de forma sintética e cronológica, a relação entre as ideias de desenvolvimento que nortearam as políticas públicas no Brasil, especialmente as políticas de crédito rural como estratégia de desenvolvimento e a contribuição das ideias feministas na construção dos debates de Gênero e Desenvolvimento que resultaram nas políticas atuais. Observa-se que, embora não se possa determinar a cronologia exata, houve uma interseção de ideias na contemporaneidade.

Até o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, os movimentos feministas se preocuparam mais com o debate da igualdade, com foco na mulher. Iniciou-se a discussão do desenvolvimento de teorias para sustentar o debate feminista.

Paralelamente, a ideia do papel desempenhado pela mulher na sociedade capitalista se reforçava como reprodutivo para manter o “fornecimento” de mão de obra sadia e educada para o mercado de trabalho (Kabeer, 2006). As políticas para as mulheres eram centradas no atendimento às suas necessidades básicas como forma de redução da pobreza (Pereira, 2015). A política desenvolvimentista era voltada para o crescimento econômico por meio da modernização financiada pelo fornecimento de crédito de forma seletiva, ampliando a desigualdade social (Mattei, 2014).

Fonte: elaborado pela autora a partir das ideias de Ellis e Biggs (2001); Mattei (2014); Pereira (2015) e Sen (2000).

Figura 1 – Evolução das ideias de desenvolvimento em relação aos debates de gênero e à trajetória das políticas de crédito no Brasil.

Nos anos 1980/1990, o enfoque de desenvolvimento se voltou para o social, como desenvolvimento humano. O debate de gênero se iniciava, mas sem força política suficiente para mudanças nas instituições no Brasil (Siliprandi, 2015). A crise econômica do período comprometeu as políticas de crédito subsidiado. E, finalmente, a partir da metade dos anos 1990, houve maior envolvimento social nas reivindicações por políticas públicas que atendessem às populações historicamente excluídas do processo (Grisa e Schneider, 2015).

O desenvolvimento foi entendido como um processo e passou-se a debater o papel das relações de gênero, inclusive no desenvolvimento rural. Assim,

Debate de Gênero

Discussão da desigualdade entre os

sexos, tendo como referência a subordinação das

mulheres

Gênero como categoria de análise e defesa da igualdade de gênero

Gênero como categoria de análise, defesa da

igualdade e transversalidade.

Políticas de Desenvolvimento

Políticas de desenvolvimento entendidas como progresso e crescimento econômico.

Políticas para mulheres com propósito de bem-estar da

família e sustentação do capitalismo

Discussão sobre desenvolvimento humano.

Participação do terceiro setor.

Primeiras discussões internacionais sobre GeD. No

Brasil, influenciou na elaboração da Constituição Federal de 1988, com relação

ao direito à cidadania das mulheres

Desenvolvimento como processo. Busca da erradicação da pobreza.

Discussões sobre a igualdade de gênero e entrada na agenda política da ONU e do

Brasil

Crédito Rural no Brasil

Crédito como forma de financiamento da modernização para o

crescimento econômico. Não se discutia a participação feminina nas políticas de crédito no Brasil

Crise do crédito agrícola. Discussão de

gênero sem influência nas políticas agrícolas, especialmente sobre as políticas de crédito

Criação de políticas afirmativas que

orientavam a participação feminina nas políticas públicas em geral e criação de políticas de crédito para mulheres a partir

dos anos 2000 Até os

anos 1970

1995 em diante 1980/1995

acompanhando a tendência, políticas de crédito foram orientadas para as populações marginalizadas, houve o reconhecimento da agricultura familiar, bem como foram criadas políticas de ações afirmativas para estimular a participação de mulheres como beneficiárias, além da criação de políticas de crédito exclusivamente para elas, como forma de contribuir para seu empoderamento (Hernández, 2009).

O foco das ações de desenvolvimento rural no Brasil, na visão dos estudiosos atuais, deve ser o combate à pobreza e às múltiplas vulnerabilidades das populações rurais. Para Schneider (2010), os estudos sobre desenvolvimento rural na perspectiva de processo de mudança social devem manter uma interface crítica e construtiva em relação aos seus interlocutores, que o autor cita especialmente como sendo o Estado e as políticas públicas para o meio rural, analisando os papéis dos atores envolvidos no processo de desenvolvimento. Entre os estudos que Schneider propõe está justamente a necessidade de se conhecer a ação das forças externas, como as políticas públicas, sobre as relações intrafamiliares de poder, de trabalho e de gênero e quais os recursos e estratégias utilizados pelos atores sociais para o desenvolvimento.

Dessa forma, conhecer o debate de gênero e desenvolvimento, com enfoque no empoderamento de mulheres, a partir de políticas públicas, torna-se importante para compreender a inclusão das questões de gênero na elaboração das políticas de crédito e de extensão rural.