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2. REVISÃO DE LITERATURA

2.1.2 Gênero como categoria de análise

participação da mulher no processo produtivo. A hierarquia estabelecida na família patriarcal, determina a divisão dos trabalhos, o acesso à renda e a subserviência das mulheres e filhos ao chefe da família.

A partir do final dos anos 1980, novas reflexões feministas surgem no que Cobo (2018) denomina feminismo pós-moderno ou decolonial. Nesse movimento, o debate sobre gênero se acentua em torno da ideia de que não deve existir a dualidade sexo-gênero, raça-pertencimento étnico cultural, proletário-burguesia; considera a interseccionalidade, reconhece as sexualidades dissidentes. O feminismo decolonial propõe uma luta comum contra o capitalismo.

Nesse período, surgem duas grandes teóricas do feminismo: Joan Scott e Judith Butler. Joan Scott (1995) em sua obra “Gênero: uma categoria útil de análise”

se preocupou em conceituar o termo “gênero” a partir da historicidade. Para Scott, gênero é uma construção cultural e social sobre um corpo sexuado.

Judith Butler (2003) buscou identificar os problemas conceituais e teórico-metodológicos, propondo a liberação do corpo da prisão coercitiva do conceito binário homem-mulher, inclusive nas análises de gênero. Para a autora, há a necessidade de se romper com o paradigma da heterossexualidade, sob risco de restringir os estudos de gênero, negligenciando a existência de outros tipos de manifestações sexuais.

No século XXI, o feminismo incorpora a diversidade intelectual e política dentro do mundo globalizado, mantendo o debate em torno das ideias de igualdade e de liberdade e o reconhecimento de outros feminismos e suas origens culturais (Cobo, 2018). Segundo Cobo (2018, p. 35), todos esses feminismos apresentam em comum

“a consciência de que o capitalismo é a fonte de opressão inesgotável para as mulheres”.

No entanto, a utilização do termo como categoria de análise recebeu conotações diferentes entre os pesquisadores e pesquisadoras em diversas épocas.

Em alguns livros e artigos sobre a “história das mulheres”, a utilização do termo gênero era como sinônimo de mulher, em substituição a este, com o intuito de obter

“reconhecimento político deste campo de pesquisa” (Scott, 1995, p. 79). Conforme a autora, a utilização do termo “gênero” em substituição a “mulher” dava uma conotação mais séria e erudita aos trabalhos por representar um termo mais objetivo e neutro.

No entanto, Scott (1995) pondera que o termo “gênero” se ajustava melhor à terminologia das ciências sociais, mas afastava da política, necessária ao feminismo.

Ao utilizar o termo “gênero” como substituição ao termo “mulher” desvincula a questão da desigualdade e das relações de poder, trazendo apenas a participação da mulher como sujeito histórico, comprometendo a legitimidade acadêmica nos estudos feministas (Scott, 1995). Outra forma do uso do termo “gênero” é para sugerir que quando se refere à mulher, se refere também ao homem, que o estudo de um implica no estudo do outro. Segundo Scott (1995) essa conotação tem o objetivo de enfatizar que o mundo das mulheres faz parte do mundo masculino, rejeitando a separação de ambos, sustentando a ideia de que o estudo isolado das mulheres ratifica e perpetua as diferenças.

Um terceiro uso para o termo gênero é apresentado por Scott para designar as relações sociais entre os sexos, rejeitando o determinismo biológico para a explicação da subordinação feminina ao homem. O termo “gênero” apareceu inicialmente entre as feministas americanas que enfatizavam e rejeitavam a construção social das diferenças entre homens e mulheres baseadas no sexo biológico.

Gayle Rubim, em 1975, sistematizou os conceitos usados nos movimentos feministas, utilizando o termo gênero para designar as construções sociais e simbólicas a partir do corpo sexuado. Ela elaborou o sistema sexo/gênero, no qual analisava que, em todas as culturas, o sexo biológico serve de base para as construções sociais e o gênero é a própria construção social (Scott, 1995).

O termo “gênero”, então, se refere à construção sociocultural da adequação de papéis para homens e mulheres a partir das diferenças sexuais. Ou seja, gênero é

“uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado” (Scott, 1995, p. 75).

Embora esse conceito aborde as relações sociais entre homens e mulheres, Scott (1995) afirma que não é suficiente para ser utilizado como categoria de análise

por não explicar como essas relações sociais são construídas, como funcionam e como podem mudar, não tendo poder analítico para questionar os paradigmas históricos.

Dessa forma, historiadoras feministas abordaram o termo “gênero” como categoria analítica de formas diferentes, que Scott (1995) propôs a organização dessas abordagens em três posições teóricas: a do patriarcado, a marxista, e a psicanalítica.

As teóricas do patriarcado buscaram explicar a origem deste, explicando a subordinação das mulheres a partir da “necessidade” masculina de dominar as mulheres. Nessa teoria, a continuidade geracional seria relacionada a um privilégio da paternidade, reduzindo ou invizibilizando o trabalho da maternidade. As questões reprodutivas e de sexualidade receberam a atenção das teóricas do patriarcado, como sendo os principais pontos de crença na superioridade masculina em relação às mulheres (Scott, 1999).

O conceito literal de patriarcado é “governo do pai” ou direito paterno (Paterman, 1988 apud Miguel, 2017). Miguel (2017) afirma que a ideia do “patriarcado clássico” surgiu no século XVII, com a obra “Patriarcha” de Robert Filmer, cujo propósito era justificar o poder absoluto do rei da Inglaterra, derivando a autoridade política da autoridade paterna e do direito de primogenitura. O argumento utilizado por Filmer era de ordem religiosa, apoiada na narrativa bíblica de que Deus concedeu a Terra para Adão e que seu legado seria herança do filho primogênito. Assim o monarca inglês seria “primogênito dos primogênitos de Adão”, sendo que, portanto, a forma de governar seria como um patriarca governa sua casa: “o pai de uma família governa sem outra lei que sua vontade, não as leis ou vontades de seus filhos ou serviçais” (Filmer, 1680, apud Miguel, 2017, p. 8). Embora a obra de Filmer coloque o poder do pai sobre os filhos, a desigualdade de gênero já era relatada, pois Filmer deixou claro que a origem do poder político está no direito conjugal de Adão sobre Eva e não na sua paternidade. Portanto, o direito político de Adão estaria garantido antes de ele se tornar um pai (Paterman, 1988 apud Miguel, 2017).

Essa teoria clássica do patriarcado serviu de base para a teoria moderna, em que o patriarcado é definido não pela soberania de um indivíduo exclusivamente, mas, sim, pela “igualdade entre os homens e sua soberania coletiva sobre as mulheres”

(Miguel, 2017, p. 8). Para Delphy (2015), o patriarcado é uma organização social em

que os homens são os detentores do poder. E isso resulta na dominação masculina e na opressão de mulheres.

No entanto, segundo Fisher (2012), a dominação masculina no contexto do patriarcado extrapola o domínio doméstico, inclui a dominação dos chefes, a preponderância dos homens nas instituições, na política e na economia. A autora afirma que o termo patriarcado, utilizado por Marx Weber, é definido como uma situação em que a dominação econômica ou familiar é exercida por um só indivíduo, a partir de determinadas regras fixas, legitimadas por uma autoridade baseada em crenças e tradições. O patriarcado é uma ramificação do patrimônio que assegura a dominação masculina pela cultura hereditária, em que a obediência se efetua pela tradição, espontaneamente, sem relação com princípios jurídicos ou administrativos.

Na teoria de Weber, essa espontaneidade está relacionada à passividade dos membros da família. O poder do chefe da família é garantido pelos próprios membros da família que aceitam a dominação. Para Weber, a dominação patriarcal resulta da fidelidade transmitida pela educação e reproduzida nas relações extrafamiliares e pela igreja. “A associação familiar reproduz as relações tradicionais de dominação” (Weber, 1968 apud Girón, 2008). Em outras palavras, o poder delegado ao homem é uma construção social.

Na teoria do patriarcado há uma delimitação de esferas: a pública e a privada, de atuação dos homens e das mulheres, respectivamente, e a valorização dos papéis baseada nas diferenças sexuais, cabendo a mulher o polo dominado. Nesse contexto, as consequências do patriarcado são a divisão sexual do trabalho e o confinamento das mulheres no espaço privado, onde ocorre a dominação masculina e a subordinação feminina (Fisher, 2012).

Com o avanço do capitalismo, as mulheres passam a vivenciar direta ou indiretamente a exploração capitalista. As famílias, que antes eram unidades de produção e consumo, passam a ser unidades de consumo e de fornecimento de força de trabalho. As mulheres começam a atuar no mercado de trabalho e a participar do espaço público. No entanto, elas acumulam seu trabalho externo com o trabalho doméstico, evidenciando ainda mais a desigualdade de gênero e a divisão sexual do trabalho (Fisher, 2012).

Scott (1995) tece críticas sobre a teoria do patriarcado por entender que esta não explica qual a relação da desigualdade de gênero com as outras desigualdades.

Outra crítica tecida por Scott é que se o exercício da dominação masculina está

vinculado aos aspectos reprodutivos e de reificação sexual das mulheres, toda a análise parte do princípio das diferenças sexuais ou biológicas e tais diferenças têm um caráter físico e, portanto, universal e imutável. Por esse aspecto, negaria a historicidade do gênero.

As teóricas marxistas têm uma abordagem histórica baseada na teoria marxista. Elas buscam uma explicação “material” para gênero. Se baseiam na interação do patriarcado e do capitalismo. Marx e Engels explicam as desigualdades a partir divisão social do trabalho e não discutem propriamente a opressão da mulher.

Kollontai e Zetkin, já mencionadas nesta tese, constroem a ideia de opressão das mulheres com base nos postulados de classe de Marx e Engels, sobre a qual as feministas marxistas apresentam suas críticas (Hernández, 2009).

Para Marx, a condição da mulher é uma questão social que varia com as modificações dos modos de produção. Para Engels, a origem da opressão das mulheres está na aparição da propriedade privada e na organização da sociedade de classes (Hernández, 2009), quando o homem necessitou ter a certeza da paternidade para manter a propriedade na família e passou a ser detentor dos meios de produção, incluindo a força de trabalho da família (Delphy, 2015).

Para Marx e Engels, as relações sociais estão fundadas na família, assim, a divisão social do trabalho gera a divisão sexual das funções masculinas e femininas.

Na representação da família, Engels aponta o patriarca como o burguês e a mulher como proletária, fazendo analogia com a estrutura de classe. Sendo assim “a emancipação da mulher e sua igualdade de condição com o homem são e continuarão sendo impossíveis, enquanto ela continuar excluída do trabalho produtivo social e confinada ao trabalho privado doméstico” (Hernández, 2009, p. 46).

Delphy (2015) resume que, a partir do materialismo marxista, para a sobrevivência das famílias, há a necessidade de se criar bens materiais que correspondem ao processo produtivo, como também a criação de seres humanos, relativo ao processo reprodutivo. Segundo a autora, a explicação das feministas marxistas é que a origem da opressão das mulheres está na sua participação específica na produção, pois entendem que os afazeres domésticos e os de cuidados com a família são tarefas produtivas e não reprodutivas. Assim, na análise das feministas radicais, baseada nos princípios marxistas, há a exploração econômica das mulheres nas famílias por ignorarem sua participação econômica, considerando que as mulheres teriam, então, uma relação de produção “comparável à servidão”, já que

tais tarefas domésticas e criação dos filhos caberiam exclusivamente às mulheres e sem o direito à remuneração (Delphy, 2015, p. 101).

Nessa relação de produção, o produto do trabalho das mulheres não teria valor por ser excluído do processo de troca. Os benefícios recebidos pelas mulheres não teriam relação com o trabalho executado, mas considerados como uma doação efetuada pelo marido, cuja única obrigação seria de prover as necessidades da mulher. Essa “obrigação” seria de interesse do marido, como uma forma de manter a força de trabalho da mulher sob seu domínio (Delphy, 2015).

O fato de não produzir mercadorias excluiria as mulheres do “sobreproduto”

ou mais-valia (Bentson, 1970 apud Delphy, 2015). Além disso, as mulheres estariam limitadas a produzirem “valores de uso” e não “valores de troca” (Larguia, 1970 apud Delphy, 2015; Paulilo, 2016) o que predeterminaria a não remuneração. Nesse sentido, Delphy (2015) apresenta uma crítica ao feminismo marxista, pois em sua análise, as relações de produção em uma família não é explicada pela natureza dos trabalhos efetuados pelas mulheres, mas ao contrário, são as próprias relações de produção que resultam na exclusão das mulheres do campo de valor. Ou seja, são as mulheres que são excluídas do mercado e não a sua produção.

Segundo Scott (1999), as relações de opressão já faziam parte da divisão social do trabalho e foi devido ao desenvolvimento do capitalismo que houve a separação das esferas pública (política e econômica) e privada (reprodutiva) para homens e mulheres, respectivamente. Além disso, as normas sociais não estão relacionadas apenas à divisão do trabalho, mas também à representação do masculino e feminino e a hierarquização nas relações de poder derivadas dessa representação. Ou seja, são as construções sociais que ditam normas e valores a partir da condição sexual, que resultam nas relações de produção e de reprodução.

Scott (1999) cita a economista Heidi Hartmann que considera que o patriarcado e o capitalismo são sistemas separados, mas que estão em interação. No entanto, o desenvolvimento das ideias de Hartmann levam à centralização econômica das relações quando o patriarcado se desenvolveve em função das relações de produção.

Scott (1999), em consonância com Delphy (2015), afirma que não são os sistemas econômicos que determinam as relações de gênero, pois a subordinação das mulheres em relação aos homens é anterior ao desenvolvimento do capitalismo e não se modifica em sistemas socialistas.

Kabeer (1998) critica também a teoria feminista marxista sob o ponto de vista de que a ênfase excessiva sobre as estruturas de produção não leva em consideração a capacidade de escolha e consciência dos atores sociais. A opressão da mulher ocorre tanto no âmbito político, quanto privado e o homem se beneficia dessa opressão. A mulher ocupa, atualmente, ambos os espaços, sendo oprimida tanto no espaço político-econômico, quanto no espaço privado, acumulando dupla ou tripla jornada de trabalho e ainda tendo sua função econômica invisibilizada.

Para Scott (1999), a teoria marxista já se encontra articulada, remetendo as relações entre os sexos às relações de produção, limitando a análise das desigualdades para questões histórica e econômica da sociedade, sendo uma desvantagem. Como vantagem, Scott (1999) considera que a teoria marxista evita divergências agudas de posição.

Finalmente, a terceira abordagem teórica apresentada por Scott (1999) se refere à psicanalítica. Esssa abordagem pode ser dividida em duas outras teorias a partir da origem de suas escolas de psicanálise: a francesa (pós-estruturalista) e a anglo-americana (teoria de relação do objeto). Ambas visam explicar a produção e reprodução da identidade de gênero.

Segundo Scott (1999), ambas as teorias se preocupam em explicar como a identidade de gênero é formada. No entanto, enquanto a primeira se baseia na experiência concreta para a formação da identidade do sujeito; a segunda centra-se na linguagem de ordem simbólica na comunicação, na interpretação e na representação de gênero.

Scott (1999) considera que a teoria da relação do objeto limita o conceito de gênero às experiências domésticas familiares e não o relaciona a outros sistemas sociais e econômicos. Essa teoria se mostra frágil quando se analisa indivíduos que viveram experiências diversas de estrutura e organização familiar em termos de divisão sexual do trabalho. Scott aponta a necessidade de atenção aos sistemas de significados implicados na experiência vivida. Para a autora “sem significado não há experiência; sem processo de significação, não há significado” (p. 82).

Já para a teoria pós-estruturalista, a linguagem é a chave de acesso à ordem simbólica. Nessa teoria, a relação da mulher com o falo é diferente do homem. O falo demonstra o poder e a lei. Há um conflito na oposição entre o ser feminino e o ser masculino em uma tendência à bissexualidade que acaba por reprimir e tornar instável a identificação de gênero. É o simbolismo em torno do falo e das relações que a ele

são atribuídas que constitui a identificação do sujeito. Assim, o masculino e o feminino são constructos subjetivos (Scott, 1999).

Scott (1999) critica a exclusividade que essa teoria dá ao indivíduo, bem como a tendência em reificar o antagonismo produzido entre homens e mulheres. A autora considera que há a necessidade de pensar a construção da subjetividade dentro dos contextos sociais e históricos, conceber a realidade social em termos de gênero.

Para Butler (2003), os sujeitos não agem sempre da mesma forma, sendo mutáveis a partir do contexto em que vivem. Sendo assim, não se pode pensar em gênero de forma fixa, mas dentro de um espectro de múltiplas vivências.

Retomando o termo gênero como categoria de análise, aplicado nesta tese, adotou-se o conceito preconizado por Scott (1999, p. 86) de que “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”. Ou seja, o gênero, “além de permear a construção do que é feminino e do que é masculino, estabelece uma relação de poder entre os sexos” (Tavares e Parente, 2015, p. 249).

Scott (1999) entende que o gênero apresenta a inter-relação entre quatro elementos: os símbolos, os conceitos normativos, as instituições e organização social e a identidade subjetiva. Culturalmente, a sociedade desenvolve símbolos que evocam representações simbólicas e que influenciam no comportamento dos atores sociais. Scott (1999, p. 86) apresenta como exemplo Maria e Eva como símbolos de conduta feminina, sendo que a primeira representa a santidade, a pureza, o exemplo de conduta, enquanto a segunda representa a luxúria, a mentira, a corrupção. Assim, a partir da interpretação dos significados desses símbolos são construídos os conceitos normativos que são expressos nas doutrinas, sejam elas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas, que determinam a oposição categórica do significado de homens e mulheres, do masculino e do feminino. Esses conceitos normativos se fixam nessas doutrinas que passam por gerações como se fossem um consenso social não conflituoso, ou seja, sem ser contestado.

Com relação às instituições e à organização social, Scott (1999) pondera que não se deve analisar gênero somente a partir da família como uma organização social, a partir de um sistema de parentesco, mas extrapolar para o mercado de trabalho, a educação, o sistema político. Scott (1999) sugere, então, que a forma como são construídas as identidades de gênero deve ser estudada relacionando-a às representações sociais em diversos contextos.