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2. REVISÃO DE LITERATURA

2.6 O Pronaf como forma de autonomia econômica para a mulher rural

2.7.3 A Extensão Rural e o enfoque em gênero

primeiro inciso do artigo 2º, referente ao Capítulo1, que trata da PNATER, entende-se por ATER: “serviço de educação não formal, de caráter continuado, no meio rural, que promove processos de gestão, produção, beneficiamento e comercialização das atividades e dos serviços agropecuários e não agropecuários, inclusive das atividades agroextrativistas, florestais e artesanais” (Brasil, 2010).

Considerando, portanto, a Extensão Rural como um processo educativo continuado que se baseia na dialogicidade e na participação para transformação do meio em que as pessoas vivem, há de se considerar a igualdade de condições na participação dos sujeitos. No entanto, a Extensão Rural, em todos os contextos políticos e socioeconômicos, se manteve com uma postura discriminatória com relação às desigualdades de gênero presentes no espaço rural.

às mulheres, conforme o uso do artigo feminino antes das atribuições do cargo;

enquanto nas propriedades rurais eram reforçadas as responsabilidades femininas com relação ao bem-estar das famílias:

Os Escritórios eram instalados nos municípios em acomodações modestas, com um agrônomo, uma moça treinada em economia doméstica (curso de 2º grau) e uma auxiliar de escritório e um veículo (jipe) [...] fazia demonstrações práticas e palestras visando aumentar a renda das famílias e mostrar às donas de casa como melhorar sua qualidade de vida” (p. 50-51, grifo nosso).

As economistas domésticas reforçavam, portanto, a ideia de que o papel da mulher na sociedade brasileira restringia-se ao privado (Pinheiro, 2016). Nota-se a evidente divisão sexual do trabalho como norma a ser seguida pela Extensão Rural.

Segundo Bourdieu (2002), a divisão sexual do trabalho é a base das desigualdades nas relações de gênero na sociedade. Sua naturalização reforça as desigualdades e as perpetua.

No entanto, Olinger (1996) apresenta em sua obra relatos do trabalho feminino nos anos de 1960, como agricultora, dona de casa e mãe, que ia para o campo com enxada manual para o preparo do solo para o plantio, ou com foice para cortar forragem para o gado leiteiro. Ele afirmou que além dos afazeres domésticos, as mulheres rurais trabalhavam duro no campo e aparentavam idade bastante superior à realidade, devido à vida sofrida que levavam.

Mesmo assim, os treinamentos e capacitações das mulheres rurais eram voltados para os afazeres domésticos, ignorando a sua força de trabalho rural ou tornando-o invisível aos olhos institucionais. Um exemplo foi o projeto Melhoramento do Lar, destinado às “donas de casa”, que aprendiam a confeccionar colchões, prateleiras, cadeiras e outras comodidades para melhoria das habitações. Aprendiam sobre educação sanitária, sobre educação alimentar, a confeccionar peças do vestiário; sobre conservação de alimentos, pequenas criações e hortas; sempre em grupos de senhoras e moças (Olinger, 1996), excluindo as mulheres do acesso aos conhecimentos em tecnologias agropecuárias.

Esse era o modelo americano capitalista a ser seguido pela Extensão Rural brasileira: garantir o bem-estar das famílias e a geração de trabalhadores e consumidores. O modelo feminino a ser reforçado era o de “esposa recatada, boa mãe

e prendada para o trabalho doméstico”, negligenciando sua participação e potencialidade para o trabalho produtivo (Pinheiro, 2016, p. 28).

Essa prática extensionista, iniciado pela ACAR, foi consolidado pela ABCAR e permaneceu com a criação da EMBRATER, e tinha como modelo de equipe “um agrônomo, uma professora e um jipe”, conforme citado por Silva (2010) nos trabalhos de Pinheiro (2016). Essa ideia de equipe defendida pela Extensão Rural da época, se referia, na verdade, a uma hierarquização dos saberes do agrônomo (que, naquela época, era uma profissão para homens) em relação à economista doméstica (profissão que era desempenhada exclusivamente por mulheres). Como o objetivo da Extensão Rural era, então, superar o “atraso econômico”, pelo aumento da produtividade, a função do agrônomo na missão extensionista era elevada em relação à da economista doméstica (Pinheiro, 2016).

No projeto desenvolvimentista do Brasil, a partir da década de 1960, o estado passa a desempenhar o papel de dar suporte à família, atendendo aos interesses das classes dominantes na reprodução contínua do capital. (McIntosh, 1978 apud Pinheiro, 2016). Para o capital, a ideia de família era: o homem como provedor, a esposa e os dependentes, dando suporte às funções da mulher como executora do trabalho doméstico não remunerado, permitindo e reforçando sua função reprodutiva, garantindo o aumento do exército industrial de reserva, num esforço de criar um padrão determinado de relação familiar. Isso determinou as diretrizes da política de Extensão Rural no Brasil, em relação ao atendimento às mulheres rurais (Pinheiro, 2016). Assim, formou-se a base referencial da divisão do trabalho doméstico para a Extensão Rural no Brasil que perdurou por todo o período de modernização agrícola e manteve raízes para o comportamento extensionista atual.

Esse referencial de relações de gênero no contexto rural permaneceu naturalizado até mesmo na academia, no ensino de Extensão Rural. Segundo Callou et al. (2008), ao avaliar o estado da arte do ensino em Extensão Rural no Brasil, observaram que as ementas da disciplina de Extensão Rural ainda privilegiavam a difusão tecnológica como prática extensionista, persistindo “uma forte referência ao caráter tecnicista e individualista e não problematizador da disciplina” (p. 105). Os autores afirmam que, apesar de ter havido um esforço em romper velhos paradigmas, muitas dificuldades no campo do ensino da Extensão Rural ainda permanecem, como a inexistência da abordagem dos temas “Gênero, Geração e Etnias”.

De acordo com os estudos de Hernández (2009), os agentes mediadores da extensão rural nem sempre são sensibilizados pelas questões de gênero, atuando, na maioria das vezes, como perpetuadores das relações sociais desiguais, em especial as de gênero, devido à construção social em que estão inseridos seus valores e vivências.

Siliprandi (2002) afirma que tais mediadores possuem dificuldades em incorporar a temática de gênero em suas ações e reconhece que os profissionais de Extensão Rural fazem parte de uma sociedade machista, sendo um reflexo da mesma.

Para uma mudança na conduta dos extensionistas, haveria a necessidade de se desconstruir os preconceitos, tornando horizontal as relações entre homens e mulheres extensionistas e, entre estes, os agricultores e agricultoras.

A nova PNATER veio contribuir para a ruptura do paradigma da Extensão Rural dentro da perspectiva difusionista e machista. A nova proposta traz conceitos, estratégias e metodologias aplicados a um processo de intervenção de caráter educativo e participante, que permitem o desenvolvimento de uma práticasocial onde os sujeitos do processo buscam a construção de conhecimentos sobre a sua realidade (Siqueira, 2008).

De acordo com a PNATER, a Extensão Rural deve adotar os princípios da agroecologia como critério para o desenvolvimento e seleção das soluções mais adequadas e compatíveis com as condições específicas de cada agroecossistema e do sistema cultural das pessoas implicadas em seu manejo, objetivando alcançar um modelo de desenvolvimento socialmente equitativo e ambientalmente sustentável (Siqueira, 2008).

No entanto, a PNATER orienta a atuação da ATER pública (governamental ou contratada a partir de chamadas públicas) e não das consultorias particulares. E, além disso, Silva et al. (2017), analisando a representação de extensionistas rurais da região central do Espírito Santo, sobre as relações de gênero no meio rural e sobre os princípios e diretrizes da PNATE, relacionados à valorização de gênero, concluiu que os extensionistas rurais não se encontram preparados para trabalhar com essas questões.

O Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PRONATER) estabelece diretrizes e metas para os serviços públicos de ATER no país. Dentre elas, está a formação continuada dos agentes de ATER para atuar com as mudanças propostas na PNATER, incluindo as atuações relativas a gênero.

Conforme Caporal e Ramos (2008), apesar das capacitações de formação de agentes de ATER para atuarem segundo os princípios da PNATER, realizadas na década passada, ainda existe uma certa inércia por parte das instituições e dos extensionistas, que permanecem na prática difusionista. Certamente, devido ao comportamento organizacional que resiste à mudança do papel difusionista da Extensão Rural, ainda arraigado nas universidades e nas instituições de ATER. Dessa forma, para os autores, a mudança nas estratégias de atuação extensionista nos moldes da PNATER deve partir desde a academia, que forma os futuros profissionais extensionistas, até as instituições de ATER, onde devem receber formação continuada.

Para Burg e Lovato (2007), para que o desenvolvimento sustentável ocorra há a necessidade de um conjunto de mudanças sociais e políticas, em busca da equidade, da solidariedade, da inclusão econômico-social, bem como das mudanças nas relações de gênero.

Siliprandi e Cintrão (2015) atribuem o comportamento dos agentes implementadores das políticas públicas a fatores naturalizados de visões androcêntricas e patriarcais que influenciam na interpretação e execução das leis e que refletem em suas atitudes. Estes fatores impedem ou dificultam que as mulheres sejam efetivamente atendidas no exercício de sua autonomia. Essas autoras afirmam que as mulheres dependem do rompimento de barreiras pessoais, familiares e institucionais para serem reconhecidas como sujeitos autônomos.

Não somente ocorre uma deficiência de formação sobre as questões de gênero da parte dos extensionistas rurais para atuarem com mulheres, como também há o agravante de essa ATER não chegar até as mulheres. De acordo com o Censo Agropecuário (IBGE, 2006), apenas 22% dos agricultores familiares brasileiros afirmaram ter acesso a algum tipo de assistência técnica. Nobre (2012) afirmou que apenas 11% dos estabelecimentos agropecuários que têm as mulheres como responsáveis receberam algum tipo de assistência. Dentre estes, em quase 54% dos casos, a assistência técnica tem como origem os governos federal, estadual ou municipal.

Já nas informações preliminares do Censo Agropecuário de 2017, apesar de não contemplar informações referentes à agricultura familiar, foi possível observar que apenas 12% das mulheres rurais recebem algum tipo de ATER no Brasil e 17,8% no estado do Espírito Santo. Dentre essas mulheres que recebem ATER, apenas 14,8%

tem origem na ATER pública em nível nacional, enquanto que no Espírito Santo, a ATER pública só está vinculada a 10% dos casos (IBGE, 2017).

Jalil et al. (2017) reconhecem que, com as novas exigências metodológicas e políticas propostas pela PNATER, houve, inicialmente, uma resistência por parte das instituições e técnicos, presos à forma de fazer ATER ainda centrada na família, representada por seu “chefe”, e voltada para a produção. Mas, a partir de 2003, houve também avanços na discussão intersetorial de gênero proposta pelos I e II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que, dentre outras diretrizes, propôs o acesso das mulheres rurais aos serviços de ATER, como forma de contribuir para a sua inclusão econômica.

Reconhece-se, portanto, uma sensibilização para o tema, resultando na criação de Chamadas Públicas de ATER para atendimento exclusivo para as mulheres rurais. A região nordeste foi a mais beneficiada por tais chamadas públicas.

O Estado do Espírito Santo não foi contemplado.

Em algumas regiões onde foram executadas as Chamadas Públicas de ATER para as mulheres, foi incorporada a perspectiva feminista nas práticas metodológicas de campo, envolvendo questões políticas, econômicas, sociais, produtivas e culturais.

No entanto, segundo Jalil et al. (2017), houve a necessidade de se superar os preconceitos e qualificar as organizações na formação feminista, reconhecendo a existência de um espaço patriarcal opressor e a necessidade de se desenvolver um trabalho emancipador para a mulher rural, despertando nelas e na sociedade seu papel como sujeito político. Assim, em consonância com a própria PNATER, Santos (2017) e Moraes et al. (2018) propuseram como forma de atuação extensionista para a redução das desigualdades de gênero no meio rural, a adoção de uma pedagogia feminista nessa nova visão da ATER.

A pedagogia feminista está relacionada à educação para a libertação, assim como proposto por Freire (1983), mas com enfoque em estratégias que ressaltem a consciência das mulheres para o diálogo sobre seus direitos e sobre seu lugar na sociedade. A educação, assim entendida, tem como um dos propósitos a problematização, o questionamento e a modificação das práticas e representações sociais impostas pela sociedade, as quais se caracterizam como patriarcais, capitalistas e fundamentalistas, e que invisibilizam, oprimem e reprimem as reações e atitudes das mulheres. Assim, a pedagogia feminista utiliza de estratégias, métodos e

ferramentas coletivas que apontem para a construção de relações sociais emancipatórias, visando a autonomia das mulheres. (Korol, 2007).

A partir da pedagogia feminista constrói-se, então, a ATER feminista, que diz respeito às ações extensionistas que aplicam metodologias e estratégias com o propósito de romper com a lógica difusionista, hierarquizada e androcêntrica, reconhecendo, potencializando e valorizando a troca de saberes, histórias e vozes das mulheres rurais, a partir de suas realidades, bem como romper com as desigualdades de gênero e contribuir para a emancipação das mulheres para o desenvolvimento de sua autonomia (Moraes et al., 2018).

Essa “nova forma de fazer” a ATER (Moraes et al., 2018, p.9) com um olhar feminista, exige o desenvolvimento de novos saberes pelos extensionistas, além da desconstrução dos paradigmas androcêntricos arraigados ao saber acadêmico e prático que permeiam a Extensão Rural brasileira. A abordagem para esses novos conhecimentos deve partir de questões como: a divisão sexual do trabalho, rompendo com os padrões estabelecidos que restringem o espaço privado às mulheres e estendem o espaço público aos homens; o direito da mulher de gerar, acessar e gerir a renda da propriedade, dentre outros. Deve refletir e questionar as políticas públicas a partir de um olhar feminista, contribuindo para sua reformulação, implementação e efetividade. Há, portanto, a necessidade da formação política e feminista dos agentes de ATER, como forma de influenciar a sua concepção de mundo e, consequentemente, em suas ações, contribuindo para promover a transformação social e reflexiva dos agentes promotores da mudança (Moraes et al., 2018).

Portanto, a partir do contexto da PNATER e das proposições das autoras feministas, a ATER se destaca como uma importante ferramenta de fortalecimento da atuação das mulheres no espaço rural. Mas, para tanto, é necessário que a formação dos agentes de extensão seja feita de uma forma crítica e que seja vivenciada na prática. Há a necessidade de se romper com a visão androcêntrica e dominante, naturalizada sobre a hierarquia de gêneros associada à divisão sexual do trabalho existente nas famílias rurais, especialmente. (Villwock et al., 2016)

Desta forma, Hernández (2009) afirma que os projetos de crédito dependem da lógica de operacionalização, podendo repercutir nas relações sociais dos grupos domésticos. O processo de desenvolvimento da autonomia das mulheres e seu empoderamento não depende apenas de acesso ao crédito, mas, também, das condições em que se inserem, incluindo a mediação extensionista.