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CAPÍTULO 1 – Fundamentação teórica

1. Introdução

1.2. A construção social da realidade

Berger e Luckmann (1973, p.38) observam que a realidade da vida diária é apreendida como uma realidade ordenada e objetivada, e que sua objetivação é prévia à apreensão que dela se faz. Segundo esses autores, a realidade é constituída por uma ordem de objetos que antecedem a própria “entrada em cena” de seus participantes. A linguagem utilizada na vida diária5, por sua vez, cumpriria a função constante de objetivar e de determinar a ordem em que essas objetivações da realidade adquirem seus significados. Desse modo, a vida cotidiana passaria a significar para seus participantes, na medida em

5 Berger e Luckmann (1973) fazem referência à linguagem de um modo geral. Entende-se que os autores aludem ao uso da linguagem verbal, principalmente. Destaca-se, contudo, o importante papel que desempenha a linguagem visual nas interações do dia a dia e na representação da experiência (cf. Kress e van Leeuwen, 1996).

que, pela linguagem, os atores sociais apreendem a realidade. Assim, tal como assinalam os autores (idem, p.39), “a linguagem marca as coordenadas de minha vida na sociedade e enche esta vida de objetos dotados de significação”.

Por outro lado, Berger e Luckmann (1973, p.47-52) analisam que a realidade da vida cotidiana também se apresenta como um mundo intersubjetivo, como um mundo em que a participação é partilhada com outros e regida pela interação social, principalmente na relação face a face. Esses autores indicam que os modos como os atores sociais lidam nas interações face a face são determinados por “esquemas tipificadores”, e que todas essas tipificações afetam e modelam continuamente a interação social. Nesse sentido, os autores afirmam que “a realidade social cotidiana é apreendida num contínuo de tipificações, que se vão tornando progressivamente anônimas à medida que se distanciam do aqui e agora da situação face a face”. Esse contínuo de tipificações vai de um extremo em que se situam as interações mais freqüentes, a outro mais abstrato e anônimo, mais incomum da relação face a face.

Para explicar as relações que guardam a linguagem e o contexto social, Berger e Luckmann (1973, p.53-57) destacam a capacidade de objetivação da expressividade humana, pela manifestação em produtos de sua atividade que se estendem além da situação face a face. Como uma forma de objetivação, os autores comentam a produção humana de sinais para a significação, agrupados num certo número de sistemas.

Seguindo essa base social de significação e aliada à base antropológica dos estudos de Malinowski e do lingüista britânico Firth, Halliday desenvolveu uma teoria lingüística denominada Lingüística Sistêmico-Funcional (LSF), que se interessa pelas relações entre contexto social e linguagem6. O potencial lingüístico do indivíduo é

interpretado como o meio pelo qual as diversas relações sociais em que participa se estabelecem, desenvolvem e mantêm no centro da sociedade.

Na perspectiva funcionalista hallidayana, a noção de linguagem como semiótica social (HALLIDAY, 1978a) corresponde à análise dos modos como interagem as pessoas entre si, no dia-a-dia, por meio da linguagem, na construção de significados que são motivados social e culturalmente e negociados nos textos. A LSF adota o critério funcional da linguagem, entende a língua como potencial de significados, em termos do que o falante pode fazer com ela. Desse modo, Halliday (1978a, p.21) assinala que

A linguagem está sendo considerada como a codificação de um potencial de

conduta em um potencial de significado; isto é, como um meio de expressar o que o organismo humano pode fazer, na interação com outros organismos humanos, transformando-o, por sua vez, no que pode significar. O que ele pode significar (o sistema semântico) é, por sua vez, codificado no que ele pode dizer (o sistema léxico-gramatical, ou gramática e vocabulário)7.

Halliday (1978b, p.125) acrescenta que, “se a língua se desenvolveu para atender a certas funções que podem ser chamadas, em sentido lato, funções sociais, isso deixou marcas”. Eggins (2004, p.3) resume os argumentos teóricos da LSF, assinalando

que o uso da linguagem é funcional, que sua função é construir significados, que esses significados são influenciados pelo contexto social e cultural em que são negociados, que o processo de uso da linguagem é um processo semiótico, um processo de construção de significados por escolhas8.

Portanto, a LSF entende que o uso da linguagem é funcional, semântico, contextual e semiótico. Dois são os questionamentos dos quais partem os estudiosos em LSF, segundo

7 Nossa tradução de: “Language is being regarded as the encoding of a ‘behaviour potential’ into a ‘meaning potential’; that is, as a means of expressing what the human organism ‘can do’, in interaction with other human organisms, by turning it into what he ‘can mean’. What he can mean (the semantic system) is, in turn, encoded into what he ‘can say’ (the lexicogrammatical system, or grammar and vocabulary)”.

8 Nossa tradução de: “that language use is functional, that its function is to make meanings, that these meanings are influenced by the social and cultural context in which they are exchanged, that the process of using language is a semiotic process, a process of making meanings by choosing”.

Eggins (idem): “como as pessoas usam a linguagem?” e “como a linguagem é estruturada pelo uso?”.

A linguagem, tal como assinalam Berger e Luckmann (1973, p.56), é o mais importante sistema de sinais da sociedade humana e se origina na situação face a face; mas se separa facilmente dela, por sua capacidade, também, de comunicar significados que não estão presentes na situação face a face ou dos que não se teve nem terá uma experiência direta. Essa característica, dizem os autores, confere à linguagem a capacidade de “tornar presente” uma grande variedade de objetos situados espacial, temporal e socialmente distantes do “aqui e agora”; podendo atualizar, a qualquer momento, um mundo inteiro. A linguagem é, desse modo, “capaz de se tornar o repositório objetivo de vastas acumulações de significados e experiências” (BERGER e LUCKMANN, 1973, p.57). Por outro lado, a linguagem se origina na interação face a face; nesse sentido, fazem notar os autores, a linguagem escrita se constituiria como um sistema de sinais de segundo grau.

Ainda em alusão ao potencial da linguagem na construção de significados, uma de suas funções mais gerais, na perspectiva hallidayana, é a de possibilitar aos falantes a representação tanto externa quanto interna da experiência. Halliday (1976, p.136-137), ao examinar o potencial de significado da própria linguagem, destaca as redes de opções que respondem a certas funções básicas da linguagem, a saber: a linguagem serve (1) para manifestar e estruturar as experiências do falante, (2) para estabelecer e expressar os diversos papéis sociais assumidos na sociedade, e (3) para estabelecer vínculos com a própria linguagem, isto é, para possibilitar a construção dos textos. Halliday denomina essas funções da linguagem, respectivamente, ideacional, interpessoal e textual. Esta dissertação se concentra no componente experiencial da função ideacional.

Berger e Luckmann (1973, p.60-61) enfatizam a capacidade de a linguagem transcender completamente a realidade da vida cotidiana, sendo possível fazer referência a

experiências pertencentes a áreas específicas de significação, compreendendo esferas da realidade separadas. Ao ser relatado qualquer fato da realidade, esse fato passa a integrar lingüisticamente a realidade da vida diária. Com isso, a linguagem cria uma espécie de enclave que se localiza numa realidade e, ao mesmo tempo, faz referência a outra.

Retomando as epígrafes que iniciam este capítulo, tanto Berger e Luckmann como Halliday recorrem à metáfora do “edifício” para ilustrar o modo como a linguagem, enquanto sistema e instituição social, edifica uma representação simbólica da realidade. Essa concepção que contempla a linguagem e o social ocupando um mesmo espaço, ou como uma sendo a realização do outro, vai de encontro à visão reducionista de linguagem como simplesmente reflexo da realidade. Desse modo, entendendo a linguagem como um dos sistemas semióticos (entre outros) que constituem uma cultura ou realidade social, o estudo de linguagem não pode ocorrer a não ser no contexto da cultura.

Halliday (1978a, p.191), após indicar que a linguagem representa a realidade tanto de forma referencial como metafórica, também aponta o seguinte:

Mas, assim como a linguagem se torna uma metáfora da realidade, pelo mesmo processo, a realidade se torna uma metáfora da linguagem. Sendo que realidade é um construto social, somente pode ser construída por meio de um intercâmbio de significados. Portanto, os significados são vistos como constitutivos da realidade. Essa, pelo menos, é a conclusão natural para a época atual, quando o intercâmbio de informação tende a substituir o intercâmbio de bens e serviços como modo primário de ação social. 9

A LSF, ao propor um modelo estratificado que abarca o sistema lingüístico e o contexto sócio-cultural de forma integrada, considera que ambos os estágios, contextual e lingüístico, compreendem uma série de subsistemas ou estratos vinculados entre si por uma relação hierárquica e lógica de realização. Segundo Halliday (1978a, p.183), “a relação da

9 Nossa tradução de: “But as language becomes a metaphor of reality, so by the same process reality becomes a metaphor of language. Since reality is a social construct, it can be constructed only through an exchange of meanings. Hence meanings are seen as constitutive of reality. This, at least, is the natural conclusion for the present era, when the exchange of information tends to replace the exchange of goods-and-services as the primary mode of social action”.

linguagem e o sistema social não é simplesmente uma relação de expressão, mas uma dialética natural mais complexa, em que a linguagem simboliza ativamente o sistema social, criando-o, então, e sendo criado por ele”10.

O significado de sistêmica deriva, portanto, desse conceito de sistema de redes de opções interconectadas, em níveis hierárquicos e constitutivos de estratos, que se realizam de forma integrada e simultânea. Considerando o princípio funcional do uso da linguagem como uma ferramenta que realiza propósitos comunicativos dos falantes, surge a necessidade de estabelecimento das relações entre os usos sociais da língua e o sistema.

Berger e Luckmann (1973, p.101), ao introduzir a teoria dos papéis, argumentam que os indivíduos “podem ser compreendidos como executantes de ações objetivas, geralmente conhecidas, que são recorrentes e repetíveis por qualquer ator do tipo adequado”. Há uma correlação necessária, segundo os autores, entre a construção de tipologias dos papéis e a institucionalização da conduta. Por meio dos papéis, as instituições se incorporam às experiências dos indivíduos, representando, assim, a ordem institucional e uma necessidade institucional de conduta.

Berger e Luckmann destacam que os papéis, ao representarem as instituições, tornam possível a existência destas continuamente. Por um lado, afirmam os autores (1973, p.109), “a ordem institucional é real apenas na medida em que é realizada em papéis executados; por outro lado, os papéis são representativos de uma ordem institucional que define seu caráter”. Segundo Halliday (1978a, p.14-15), uma sociedade não é composta de participantes, mas de relações, e essas relações, por meio da linguagem, definem papéis sociais. Os membros de uma sociedade não desempenham somente um, mas muitos papéis sociais ao mesmo tempo.

10 Nossa tradução de: “the relation of language to the social system is not simply one of the expression, but a more complex natural dialectic in which language actively symbolizes the social system, thus creating as well as being created by it”.

Os princípios básicos da teoria de Berger e Luckmann (1973) são incorporados ou discutidos pelas abordagens da LSF11 e da ACD, principalmente pela teoria da representação dos atores sociais (VAN LEEUWEN, 1996), como será estudado na próxima seção.