• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 – Fundamentação teórica

1. Introdução

1.6. A representatividade do ensino de espanhol no Brasil

1.6.2. O momento atual do ensino de espanhol no Brasil

A situação do ensino da língua espanhola no Brasil, algumas décadas atrás, em nada se compara com o momento vivido na atualidade. Segundo Moreno Fernández (2005, p.18-19), o espanhol goza de um momento de auge e de prestígio no início do século XXI, vivendo um crescimento da demanda de cursos e trazendo, em conseqüência, a necessidade de materiais didáticos e de professorado. As afirmações são do então diretor do Instituto Cervantes de São Paulo e representam o pensamento expresso em diversas publicações sobre o assunto, advindas principalmente da Espanha. Entre as justificativas sugeridas para enquadrar esse momento de mudança, alguns fatos são citados com mais recorrência, em função dos impactos na vida econômica, social e cultural do país. São eles a criação do MERCOSUL (Mercado Comum do Sul), a aparição de grandes empresas de origem espanhola e o processo de integração latino-americana (MORENO FERNÁNDEZ, 2005; DAHER e SANT’ANNA, 1998; IRALA, 2004; MOITA LOPES, 1999).

Tanto as relações econômicas com os países hispano-americanos, como também questões de índole política e cultural, despertaram o interesse pelo ensino da língua espanhola no Brasil, aumentando sua procura. Uma mostra do aumento da presença desse idioma pode ser observada na seguinte citação:

a partir do final dos anos 70, a FBPF (Federação Brasileira de Professores de Francês) tem tido um papel importante na atualização dos professores de francês no Brasil, enfrentado o desafio de lutar para manter a língua francesa nos

currículos escolares apesar da hegemonia do inglês e da presença, cada vez maior, do espanhol. (MOITA LOPES, 1999, p.426)

Se bem o número de docentes habilitados para lecionar espanhol ainda representa um problema pela escassez, o mercado editorial soube como captar o momento de interesse, mobilizando-se e dispondo uma grande diversidade de materiais. Fernández (2000, p.61) aponta que, se num passado não se sabia onde escolher materiais para o ensino de espanhol, hoje não se sabe como nem o que escolher. Dada a diversidade de materiais, “professores e centros de ensino se encontram perdidos”, diz a autora.

Num estudo sobre as atitudes de professores de espanhol como língua estrangeira, Daher e Sant’Anna (1998) constatam que, pela própria estrutura do sistema educativo, para os alunos, os professores se constituem em representantes oficiais da cultura socialmente construída de um lugar, em porta-vozes de conceitos, preconceitos e discriminações, conscientes ou não. As autoras acima citadas apresentam, entre outros resultados, que “as manifestações da cultura espanhola aparecem num nível hierárquico superior às da América Hispânica” (idem, p.110). As atitudes culturais de privilégio de uma determinada variante sobre outra, observadas em professores de 3º grau, demonstram que dificilmente esse quadro não se repita na prática dos futuros formadores.

Irala (2004), fazendo referência tanto aos professores como aos materiais didáticos, dicionários e gramáticas, argumenta sobre a tendência reducionista de subdividir o intricado espaço da língua espanhola em Espanhol da Espanha e Espanhol da América. A autora manifesta que, apesar dos avanços da lingüística e dos estudos sobre o funcionamento variável das línguas, ainda prevalece a visão de homogeneidade da língua gerada pelas gramáticas normativas, “desconsiderando aquilo que estiver fora da norma institucionalizada, inclusive alimentando preconceitos sobre as variantes ausentes ou pouco presentes nos meios reguladores” (idem, p.104). Mais adiante, Irala observa que a justificativa usada por muitos professores e também por futuros professores, ao optarem

pela variante conhecida como Espanhol da Espanha, é que este “está culturalmente em situação favorável, pois remete à tradição européia secular...” (idem, p.116). A esse respeito cabe o comentário de Bagno (2004, p.30) “é nosso eterno trauma de inferioridade, nosso desejo de nos aproximarmos, o máximo possível, do cultuado padrão ideal, que é a Europa”49.

A partir da minha própria experiência enquanto professor de espanhol e tradutor, em diversas instâncias e instituições brasileiras, observa-se a pertinência das afirmações de Irala (2004). No contexto do ensino de espanhol no Brasil, são em número muito superior os materiais que legitimam a variedade peninsular da língua espanhola frente a suas variedades hispano-americanas, como se aquela fosse a língua por excelência e estas fossem variações daquela. Com freqüência, as diversas culturas e variedades hispano-americanas ficam restritas a ocupar, nos livros didáticos, um espaço marginalizado, reduzido a ilustrar tópicos culturais geralmente estereotipados e sempre abordados desde a perspectiva do espanhol em sua modalidade européia.

Del Valle e Villa (2005, p.217) observam que, para o estabelecimento das relações empresariais entre Brasil e Espanha, é necessário que haja um fortalecimento e consolidação dos vínculos culturais entre esses países, e que o elemento responsável por estabelecer esse vínculo é o idioma, isto é, que os brasileiros estudem espanhol. Esses autores, com base num referencial teórico diferente do assumido nesta dissertação, analisam um corpus formado por relatórios publicados pelo Instituto Cervantes, pelas atas do II Congresso da Língua Espanhola (Valladolid, 2001) e por notícias do jornal El País em sua edição digital. Os autores chegam à conclusão que tanto setores do governo como empresas espanholas, contando com o apoio de profissionais da linguagem e do ensino de línguas, colaboram no que chamam de “promoção do ensino de espanhol no Brasil”.

49 Ao longo do corpus, foram observadas diversas ocorrências, como se poderá apreciar no capítulo de análise, em que se faz essa distinção entre espanhol da Espanha e espanhol da América, e em que se ressalta a supremacia de um sobre o outro.

Moita Lopes (2005, p.50), em alusão à língua inglesa como a língua do império no Brasil do século XX, menciona a célebre afirmação do filólogo espanhol do S.XV, Antônio de Nebrija, “la lengua es compañera del Imperio”. Nebrija teria proferido essa frase, ao apresentar sua Gramática Castelhana à rainha Isabel a Católica, explicando que era preciso fixar a língua, que seria a “companheira do Império”, que nasceria após a Reconquista de Granada e a chegada de Colombo ao Novo Mundo. A Gramática de Nebrija foi publicada em agosto de 149250.

Estas últimas observações, assim como as próximas duas citações, ocorrem em função de diversas referências feitas ao período da conquista e colonização da América51 e observadas no corpus de análise desta dissertação. Morejón (2000, p.24), reforçando a necessidade de o Brasil se integrar ao mundo hispânico, faz a seguinte observação:

Se o Brasil quer amar seus irmãos hispânicos deverá entendê-los bem, primeiro. É necessário que os seres, para se entenderem, falem o mesmo idioma. E os ibéricos de um e outro lado do Oceano possuem, para isso, o veículo comum ou muito semelhante da fala, que é um primeiro passo para essa compreensão interna dos espíritos a que quisemos nos referir. A melhor forma de nos amarmos uns aos outros, como diria o grande mestre don Miguel de Unamuno, apregoador da Hispanidade, é a de enfrentar mutuamente, com sinceridade, invadindo-nos as almas, ou as culturas. Que o demais virá por aditamento. E o melhor modo de proselitismo, entendido em seu mais alto sentido moral, é o que se leva a cabo deixando-se um invadir pelas almas de todos aqueles aos que evangelizamos52 (nossa ênfase).

Esse mesmo autor ainda assinala, aludindo a uma voz vinda do além e a uma missão evangelizadora, que

50 Informações recolhidas de: http://www.antoniodenebrija.org/biografia.html. Acesso em 20 de dezembro de 2007.

51 Essas alusões serão abordadas especificamente numa seção no capítulo de análise.

52 Nossa tradução de: “Si el Brasil quiere amar a sus hermanos hispánicos deberá entenderlos bien primero. Es necesario que los seres, para entenderse, hablen el mismo idioma. Y los ibéricos de uno y otro lado del Océano poseen, para ello, el vehículo común o muy semejante del habla, que es un primer paso para esa comprensión interna de los espíritus a que quisimos referirnos. La mejor forma de amarnos unos a otros, como diría el gran maestro don Miguel de Unamuno, pregonero de la Hispanidad, es la de enfrentar mutuamente, con sinceridad, invadiéndonos las almas, o las culturas. Que lo demás vendrá por añadidura. Y el mejor modo de proselitismo, entendido en su más alto sentido moral, es el que se lleva a cabo dejándose uno invadir por las almas de todos aquellos a los que evangelizamos”.

Espanhóis e hispano-americanos têm que ouvir com sinceridade a voz de seu destino e cumprir sua missão de evangelização ibérica, se quiserem arredondar seu próprio espírito. O mesmo há que dizer de portugueses e brasileiros. Dar e receber. Integrar-se no que tão urgentemente nos aperta no mundo de hoje. Eis a consigna do hispanismo brasileiro ou da lusobrasilidade espanhola e hispano- americana (MOREJÓN, 2000, p.20)53 (nossa ênfase).

Estas duas últimas citações revelam, sobretudo, uma grande preocupação por parte da Espanha de não permanecer alheia, ou com um papel secundário, e participar ativamente no processo de integração latino-americana, agora com a inserção do Brasil nesse contexto. Por outro lado, algumas das escolhas lexicais nessas passagens deixam entrever uma visão imperialista, quando o assunto em questão é a referida integração.

O próximo capítulo apresenta o corpus de análise que compõe a presente pesquisa e os passos metodológicos seguidos para sua realização.

53 Nossa tradução de: “Españoles e hispanoamericanos tienen que oír con sinceridad la voz de su destino y cumplir su misión de evangelización ibérica si quieren redondear su propio espirito. Lo mismo hay que decir de portugueses y brasileños. Dar y recibir. Integrarse en lo que tan urgentemente nos aprieta en el mundo de hoy. He aquí la consigna del hispanismo brasileño o de la lusobrasilidad española e hispanoamericana”.