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CAPÍTULO 1 – Fundamentação teórica

1. Introdução

1.6. A representatividade do ensino de espanhol no Brasil

1.6.1. Aproximação ao passado e à atualidade do espanhol no Brasil

Sobre as questões que mantiveram a língua espanhola num longo período de esquecimento no Brasil, Moita Lopes (1999) menciona fatores como a Guerra Fria entre a então chamada União Soviética e os Estados Unidos, que colocaram o Brasil sob o foco do interesse estadunidense, após o fim da Segunda Guerra Mundial. A divisão do mundo em dois grandes blocos de poder econômico situou o Brasil sob a influência desse país, marcando o aumento de interesse pela língua inglesa. Fatos como esses também explicam a pouca motivação na época pelo espanhol, contrastando, visivelmente, com o momento vivido na atualidade, afirma Moita Lopes.

O autor também cita o relato de Gomes de Mattos e Wigdorsky, intitulado Foreign Language Teaching in Latin America. Nesse relato, segundo Moita Lopes (1999), são apontadas duas justificativas pela falta de interesse pelo espanhol no Brasil: primeiro, as semelhanças com o português; segundo, o relativo isolamento cultural e lingüístico em que se encontraria o Brasil no hemisfério sul43, favorecendo um relacionamento mais próximo com os Estados Unidos que com a América hispânica ou a Europa.

43 Também a esse respeito, será possível observar, no capítulo de análise e discussão dos dados, que diversos artigos do corpus que integra esta dissertação mencionam a mesma razão, de o Brasil se encontrar isolado lingüisticamente na América do Sul, fazendo fronteira a um lado com o Oceano Atlântico e a outro com a

A respeito da primeira justificativa apontada por Gomes de Mattos e Wigdorsky, Celada e González (2000) assinalam que os primeiros manuais destinados ao ensino de espanhol no Brasil (Antenor Nascentes em 1934 e Idel Becker em 1945) apóiam- se no pressuposto das semelhanças entre as línguas, em que está implícito que uma das duas línguas é simplesmente uma versão da outra. Cabe lembrar, aqui, uma crença popular bastante difundida que entende o espanhol como sendo “um português mal falado” e vice- versa, com o qual os falantes de ambas as línguas pressuporiam que, pelo simples conhecimento de uma delas, não precisariam aprender a outra44.

Em relação à segunda justificativa, sobre o suposto isolamento em que se encontraria o Brasil dentro de uma América hispano-falante, o que acarretaria uma aproximação maior com os Estados Unidos, Moita Lopes (2005, p.38) aponta para a necessidade de repensar as relações entre ensino de língua estrangeira e política, no Brasil. A visão de um Brasil colonizado pelo ensino de inglês se justifica em expressões como “me sinto melhor falando inglês do que português”, ou “se fosse nos Estados Unidos...”, diz o autor, muito comuns no meio escolar. Moita Lopes também alerta sobre o ensino da língua inglesa, transformada num veículo de dominação cultural, e, em conseqüência, sobre a necessidade de preservação da identidade cultural brasileira do aluno.

Para ilustrar tais observações, sobre o domínio cultural por meio do ensino da língua inglesa, Moita Lopes (2005, p.43) afirma que “a exigência de uma pronúncia tão perfeita quanto à do nativo e a incorporação de hábitos culturais, ou seja, a cópia xerox do falante nativo, não podem ter outro motivo senão o de domínio cultural (...) com o conseqüente abandono de sua própria identidade cultural”. Existe a crença que, “para subir

língua espanhola. Esse isolamento é apontado como um dos fatores que motivaram a criação e posterior aprovação da lei do ensino de espanhol no Brasil.

44 Há um texto, bastante difundido no ambiente de ensino de língua espanhola para brasileiros, que aborda justamente essa questão de falantes de espanhol ou de português não precisarem estudar a língua do outro. O texto relata os infortúnios pelos quais passou um falante de espanhol no Brasil, ao cometer o erro de pensar que o português era apenas una “versão desossada do castelhano”, algo assim como um “dialeto do espanhol”. O título desse texto é Eu não falo português, de Daniel Samper Pisano, e está disponível em: http://matandoneuronas.blogspot.com/2006/11/eu-no-falo-portugus.html. Acesso em 12/01/2008.

socialmente, é preciso estudar a língua do colonizador, isto é, a língua do imperialismo norte-americano, que é a língua do império no Brasil do século XX”45 (idem, p.50).

Rajagopalan (2003), analisando os fatores que motivam, quase sem exceção, a querer aprender uma língua estrangeira e a relação que isso guarda com a auto-estima, também destaca, entre outros, o acesso a um mundo melhor e a ascensão na vida. Neste momento, em função da situação de mudança sócio-cultural no Brasil em torno da língua espanhola, e tal como se pode observar no caráter entusiasta das notícias locais e do estrangeiro que representam o assunto, não estranharia um movimento em direção a essa língua, como uma nova forma de promoção social.

Tornando o foco da atenção para a realidade do espanhol no Brasil, como uma forma de compreender o hispanismo brasileiro46, Morejón (2000, p.17-18) assegura que o hispânico abrange todo o complexo mundo ibérico, “confinando, sob sua esfera semântica mais entranhável, a realidade, a vocação e o destino das variantes européias e americanas, e ainda orientais e austrais, que sentem como próprio o espanhol e o português, começando pela linguagem, veículo do pensar”47.

Morejón também cita as palavras do sociólogo e escritor Gilberto Freyre em Brasil: uma interpretação (1947), que relata sua experiência pessoal na circunstância de ter cursado seus estudos universitários em ambientes anglo-saxônicos. Diante da tentação de sucumbir à idéia de superioridade nórdica, Morejón (2000) observa que Freyre se aferrou à condição básica de ser hispano, sentindo-se partícipe, através das línguas

45 Este assunto será retomado na próxima seção, quando será abordado o momento atual da língua espanhola no Brasil.

46 O Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos (ABEH), em comemoração ao seu décimo aniversário de publicação, e com a justificativa dos quinhentos anos do Brasil, preparou um volume extraordinário intitulado El hispanismo en Brasil. Essa publicação inclui artigos que abordam aspectos históricos do hispanismo no Brasil, questões lingüísticas, literárias, culturais, e outras relacionadas à elaboração de material didático específico para o ensino de espanhol no Brasil.

47 Nossa tradução de: “Abarca todo el complejo mundo ibérico. Encierra, bajo su esfera semántica más entrañable, la realidad, la vocación y el destino de las variantes europeas y americanas, e incluso orientales y australes, que sienten como propio lo español y portugués, comenzando por el lenguaje, vehículo del pensar”.

espanhola e portuguesa, de uma cultura rica em valores humanos, chegando a reconhecer a língua espanhola como sua verdadeira cultura materna.

Freyre (1975), em seu livro O brasileiro entre os outros hispanos, analisa o que há de hispânico na cultura brasileira e, também, o que há de transnacional na cultura hispânica. O sociólogo entende que o Brasil é duplamente hispânico, e que nada do que é hispânico lhe é estranho. Freyre sustentava a tese de que “todo brasileiro culto possui duas línguas, a portuguesa e a espanhola”.

Segundo Pedrero-Sánchez (2000, p.121), para o brasileiro comum não é tão clara essa consciência de pertencer ao mundo hispânico. Apesar da proximidade geográfica, predominou o desconhecimento mútuo entre o Brasil e os países vizinhos, cujas relações se mantiveram mediadas pela Europa ou pelos Estados Unidos, tal como apontado acima, na disputa pela hegemonia no continente americano. A autora assinala dois aspectos que teriam contribuído para tal afastamento: o processo diferenciado da emancipação colonial e as teorias cientificistas e nacionalistas do século XIX.

Ao longo desse século reforçaram-se teorias racistas e até climáticas, que estabeleciam a superioridade dos nórdicos e a morbidez dos trópicos. Reconhecia-se tacitamente a inferioridade de três raças: a latina, a indígena e a africana. O povo brasileiro, como todos os denominados, agora, “latino- americanos” eram mestiços e, como tais, incapazes de liderança nos destinos dos povos, segundo rezava o dogma científico. Brasil, como também o fazia Argentina, por exemplo, queria “ser Europa”, predominando o mimetismo cultural que, é claro, somente podia ser reproduzido entre as elites. O modelo passou a ser a França, que desde a Corte Imperial, presidida por D. Pedro II, imprimiu uma orientação cultural de inspiração francesa. (PEDRERO- SÁNCHEZ, idem, p.121)

Contestando tais teorias racistas e sobre a tentativa de unificação da identidade nacional em torno da raça, Hall (2005, p.62-63) afirma que, “contrariamente à crença generalizada, a raça não é uma categoria biológica ou genética que tenha qualquer validade científica”. Mais adiante, o autor descreve a raça como categoria discursiva, organizadora

das formas de falar, dos sistemas de representação, das práticas sociais, que permitem, como “marcas simbólicas”, diferenciar socialmente um grupo de outro.

O estudo da língua espanhola no Brasil, ao longo dos últimos cinqüenta anos, tem passado por diferentes momentos. Somente foi incluída como língua opcional no ensino médio, a partir de 194248, ao lado do francês e do inglês, que já eram estudadas desde 1855. Essa inclusão do espanhol aconteceu, mas com um número reduzido de aulas, portanto, ocupando um lugar de mínima relevância. Por outro lado, em textos legais da época, a língua espanhola nem sequer era citada, especialmente por razões de ordem político-econômica (FERNÁNDEZ, 2000, p.59-60).

As línguas estrangeiras, nos níveis fundamental e médio, tornaram-se optativas, a partir da reforma educacional de 1961, cabendo a cada instituição a escolha do idioma que incluiria em seu plano de estudos. Com essa medida, Fernández (2000) afirma que a língua espanhola se viu ainda mais restrita. Com o ensino regular centrado na língua inglesa e o mercado de trabalho oferecendo mais oportunidades a professores de inglês, raro seria seguir outra carreira como professor de línguas, a não ser a da língua inglesa, afirma essa autora. Conseqüentemente, poucas instituições superiores mantiveram a licenciatura em língua espanhola.

O panorama de ensino de idiomas pouco se viu alterado com as mudanças provindas da lei 5692/71. Com a inclusão obrigatória de uma língua estrangeira no ensino médio, embora não se esclarecesse qual seria essa língua, o inglês foi novamente favorecido, segundo Fernández (2000, p.60). Somente com a lei 9394/96, o ensino de línguas estrangeiras modernas se tornou obrigatório a partir da 5ª série do ensino fundamental. Mas, as dificuldades que surgiram, devido ao pouco interesse dado ao ensino

48 A esse respeito, Celada e González (2000, p.50) apontam que em 1942 ocorre a reforma realizada pelo ministro Gustavo Capanema, em que o espanhol entra como disciplina obrigatória, com um ano de duração, para o colégio de nível secundário da época (ensino médio). Tal regulamentação permanece até 1961, ano em que é legislado o projeto da “Lei de Diretrizes e Bases”. Nesse momento e até 1971, as línguas estrangeiras não foram incluídas entre as disciplinas obrigatórias, constando como optativas e complementares.

do espanhol no passado, durante as décadas de 60, 70 e começo dos anos 80, acarretaram uma notada carência de professores, como era possível prever, já que poucos se licenciaram durante esses anos. A essa situação também se deve somar a falta de materiais didáticos para o ensino do idioma, afirma a autora.